Alfredo Leite –
Jornal de Notícias, opinião
É provavelmente
exagerado admitir que as manifestações violentas na Turquia possam significar a
chegada da primavera árabe ao país fundado por Kemal Ataturk. Mas é igualmente
um embuste tentar reduzir a revolta popular iniciada na mais europeia e
cosmopolita das cidades turcas, Istambul, a um simples protesto contra a
construção de um shopping center no verde parque Gezi junto a Taksim, a moderna
zona comercial da cidade. Se dúvidas houvesse, elas seriam rapidamente
dissipadas pelo rastilho aceso no Bósforo e espalhado num ápice pelas
principais cidades do país. A razão da revolta é naturalmente mais profunda e o
parque Gezi apenas a gota de água que levou parte significativa da sociedade
turca (esmagadoramente muçulmana) a dizer ruidosa e violentamente
"basta" às políticas do primeiro-ministro Recep Erdogan e do seu
Partido Justiça e Desenvolvimento, de raízes islâmicas. Não cabe aqui
questionar a legitimidade democrática do executivo de Erdogan, eleito para o
cargo em 2003, uma semana antes do início da guerra no vizinho Iraque. O que se
discute é a islamização progressiva de um Estado que se diz laico, mas que não
esconde as suas afinidades com um certo radicalismo que as elites muçulmanas
liberais do país recusam. Dois exemplos recentes: Erdogan aprovou leis
restritivas ao consumo de álcool (cultural e religiosamente aceite na Turquia)
e criminalizou manifestações de afeto na via pública como, por exemplo, um
perigoso beijo de um casal de namorados. Sinais de radicalização que a Turquia
mais moderna e urbana não parece disponível para aceitar passivamente.
Esta moralidade
duvidosa que Erdogan pretende impor terá sido a faísca da revolta que agora
enfrenta, embora a instabilidade turca seja mais complexa e extravase as
fronteiras do país. Enquanto internamente Erdogan procede a uma islamização
encapotada, no plano exterior não esconde a ambição de transformar o país na
potência regional que tanto agrada aos Estados Unidos e aos restantes parceiros
de Ancara na NATO.
Outrora aliado de
Damasco, Recep Erdogan rompeu com Bashar Assad acentuando dessa forma ainda mais
o isolamento da Síria em guerra face ao mundo ocidental. Mas ao hostilizar
Assad, Erdogan deixa igualmente de contar com a Síria para o controlo dos
independentistas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão. Mais: como
represália, os sírios podem potenciar a preparação de ataques dos curdos do PKK
contra a Turquia.É esta espécie de utopia que está a encurralar Erdogan, pese
embora o milagre económico que o seu Executivo conseguiu operar no país,
colocando-o como uma das economias mais robustas do Mundo. Um trunfo que os
defensores da integração turca na União Europeia não se cansam de exibir, mas
que pouco ou nada diz aos turcos laicos.
Este texto talvez
devesse ter começado com uma declaração de interesses. Fui detido e expulso da
Turquia algumas semanas depois de Erdogan ter chegado ao poder. O crime, com
direito a ida ao tribunal: reportar as condições de vida numa aldeia curda onde
tinham sido recrutados alguns operacionais do PKK entretanto mortos. Ilibado e
obrigado a sair do Curdistão turco, sobram as memórias de uma Polícia que, na
Turquia mais remota, usa carros blindados para apagar as fogueiras com que os
meninos curdos brincam nas ruas. A mesma Polícia e os mesmos carros que agora
estão nas imediações de Taksim à espera de uma ordem do chefe de Governo.
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