Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Quando Pedro Passos
Coelho, Paulo Portas e Cavaco Silva entraram no Mosteiro dos Jerónimos, para a
missa do novo cardeal patriarca, toda a fina flor do regime aplaudiu,
entusiasmada, os salvadores da estabilidade política. Depois da mais
desenvergonhada palhaçada, eles fizeram-se de novo amigos, trocaram ministros e
ministérios, pequenos poderes e vaidades, e impediram a pior das tragédias:
eleições. A coisa manteve-se, como se deve manter, entre pessoas civilizadas.
Porque, já se sabe, eleições obrigam a eleitoralismo, o eleitoralismo leva ao
populismo e o populismo leva a escolhas erradas. Ou seja, as eleições são,
em qualquer democracia decente, um problema a evitar. Fazem-se, quanto muito,
na data marcada para manter as aparências.
A opinião mediática
condicionou, através da chantagem e do medo, qualquer decisão que pudesse levar
a eleições. Tudo devia ficar como se nada tivesse acontecido. Para além da
manutenção de um governo que já ninguém respeita, todas as possibilidades foram
postas em cima da mesa: cozinhava-se um governo qualquer, juntavam-se os três
partidos responsáveis (responsabilíssimos, como temos visto), mudava-se a
liderança do PSD ou do CDS, arranjava-se alguém que estivesse disposto a
governar sem o apoio da opinião pública, fazia-se um governo minoritário que
estivesse em queda iminente desde do dia da tomada de posse, escolhia-se um
governo de Salvação Nacional que, como é evidente, não iria salvar coisa
nenhuma. Desde que se evitasse a participação da turba, sempre muito
perturbadora da "estabilidade política" e dos mercados, tudo, por
pior que fosse, seria aceitável. Muitos dos que o defenderam não pensaram
o mesmo nas vésperas de se assinar o memorando da troika, percebendo-se que o
valor da estabilidade depende, em muitos casos, de quem tenha a maioria no
momento.
Os argumentos para
a não realização de eleições foram três: a nossa credibilidade junto da troika,
a nossa imagem junto dos mercados e a ausência de qualquer solução estável
depois das eleições. Vou ignorar aqui, por decoro, o argumento do preço
das eleições. Porque descer a este nível é conspurcar o debate político.
Quando à
credibilidade junto da troika (da Alemanha), tenho uma novidade: nenhuma
solução que não passe pelo que Vítor Gaspar fez nos dois últimos anos, com os
resultados que teve para a nossa economia, tem credibilidade junto da troika.
E nem isso chega. Quando tudo se mostrar inútil a troika dirá, como já começou
a dizer, que Portugal não está a cumprir. Penso que o guião da Grécia é
suficientemente conhecido para não termos ilusões.
A democracia nos
países periféricos não tem credibilidade junto da Comissão Europeia, BCE e FMI.
Se quisermos realmente agradar-lhes suspendemos todos os atos democráticos,
incluindo as eleições, obrigamos os três partidos a assinar um acordo
inviolável e vitalício em torno de tudo o que está decidido e extinguimos o
Tribunal Constitucional e o Estado de Direito. E, mesmo assim, será dito, no
fim de tudo, que fomos nós que não fizemos as coisas como deve ser. Porque,
insisto no que escrevo há dois anos, o objetivo deste "resgate" não
é, nunca foi, salvar Portugal. É, sempre foi, sacar o máximo possível do que
devemos para depois abandonar a carcaça na beira da estrada. A Europa é, nos
dias que correm, esta selva. E ser "credível" é aceitar morrer
sem resistir.
Tudo o que façamos
para resolver os nossos problemas enfurecerá a troika. Que, como fez na
semana passada com o dinheiro que virá com a 8ª avaliação, fará a mais
descarada das chantagens à mínima tentativa de restaurar a normalidade
democrática no País. Ou queremos sair desta crise e vivemos com os riscos que
isso implica ou aceitamos morrer calados. É a escolha que temos pela frente.
Uma escolha que chegou a este limite: há quem, fora de Portugal, pense que
nos pode impedir de exercer os direitos democráticos e nós achamos normal que
isso seja sequer uma posição a ter em conta. Se a tivermos em conta seremos
obrigados a reconhecer que a existência de Portugal, como Estado soberano, é
uma anedota. E mais vale acabar de uma vez por todas com esta Nação. Porque um
País que julga que a independência não comporta enormes perigos não merece essa
independência.
Quanto aos
mercados, respondi na última sexta-feira e mais nada há
dizer. Basta, aliás, ver como a "tragédia económica e financeira
irrecuperável" que teríamos vivido a semana passada, deixou de ser assunto
para especialistas, comentadores e políticos para perceber a função que
realmente cumpriu a histeria que foi lançada. O aumento dos juros da nossa
dívida (que não estamos a pagar) e as gigantescas perdas para as empresas
portuguesas (que não aconteceram) desapareceram, de um dia para o outro, do
debate público. Devemos estar a nadar em dinheiro para tamanha hecatombe já não
preocupar ninguém. Ou, mais provável, a hecatombe não aconteceu.
Quanto à solução
política que sairia das próximas eleições, só por humor negro, depois daquilo a
que assistimos na semana passada, alguém pode falar de estabilidade e credibilidade. Não
há soluções política estáveis e, em simultâneo, democráticas, na atual situação
social e económica. Porque este "ajustamento" é incompatível com
a democracia. Nunca houve estabilidade política com instabilidade social. É dos
livros. E nenhum governo, enquanto isto durar, terá uma esperança de vida
muito longa. A questão é saber se, dentro da instabilidade que é
estrutural a esta crise, Portugal tem quem represente um pouco melhor (mesmo
que mal) os sentimentos do País. A começar por não ter a dirigir o governo
a única pessoa que ainda acredita que a loucura imposta pela troika é
a saída para esta crise. A democracia é isso mesmo: garantir, o melhor
possível, a representatividade da vontade popular. Não é um arranjo onde os
cidadãos são um "problema" que podemos ignorar.
Podemos continuar a
brincar com o fogo. Podemos continuar à procura de atalhos para adiar a
clarificação política. Até as eleições chegarem, haver um terramoto eleitoral
que não deixe pedra sobre pedra no nosso sistema partidário. Até poderia ser
bom, mas acho que os arautos da "estabilidade política" (aqueles que,
como Marques Guedes, a consideram "um valor em sim mesmo") não têm
razões para se entusiasmar com este cenário. E podemos continuar eternamente a
achar que se pode governar sem dar grande importância à opinião dos cidadãos,
meros destinatários passivos de inevitabilidades. Até ser mais difícil
encontrar um português que acredite na democracia do que um governante que
junte a coragem à competência.
Que a troika se
esteja nas tintas para a viabilidade da nossa economia e da nossa democracia
não me espanta. Eles não vivem aqui. Não terão de conviver com o Inferno
político e social que andam a alimentar. Eles não são eleitos. Não
terão de pagar o preço dos seus disparates. Que políticos, comentadores e
jornalistas portugueses julguem que se pode levar a degradação da democracia e
das condições sociais de vida muito para lá do limite do que é sustentável é
que me espanta. Julgarão que estarão a salvo das suas consequências? Não estão.
Quando surgirem os populistas salvadores da Pátria, prontos para
"limpar" o País e "regenerar" a política, podem esquecer a
liberdade de imprensa, as eleições e a fiscalização do poder. Quando isto
acontecer, estes cúmplices da destruição da democracia, que desprezam o que
lhes permite exercer as suas funções em liberdade, apenas estarão a colher os
frutos que semearam.
As coisas vão
correr bem se houver eleições? Não. Como não vão correr bem se elas não
existirem. E, em qualquer um dos casos, haverá, com este ou com outro nome, um
segundo "resgate". Basta olhar para os números das finanças e da
economia, mesmo ignorando todo o contexto político, para o saber. A vantagem
das eleições é só esta: ter no governo alguém que, governando bem ou mal
(não sei que governo sairá do sufrágio popular), ainda represente algum português.
Em democracia, isso faz alguma diferença. Ou não?
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