A regulamentação do
IGF pode definir com clareza cristalina que sua incidência atinja tão somente
aqueles que apresentam grandes fortunas, estimados em cerca de 10 mil famílias
e, principalmente, dentro desse universo de contribuintes, as cinco mil famílias
que teriam um patrimônio equivalente a 40% do PIB.
Washington Araújo* –
Carta Maior
A ordem do dia é
ouvir o clamor das ruas. A presidenta Dilma Rousseff diz que ouviu e vem
pontuando gestos, atitudes e ações em consonância com o que se escuta do
meio-fio. Destes sobressai a reforma política, sendo resgatado até mesmo a
convocação de consulta plebiscitária. O mesmo acontece com o Congresso
Nacional, onde projetos que tramitavam a passo de tartaruga ganharam a
agilidade de coelhos e vêm sendo aprovados ao ritmo tic-tac das ruas. O Supremo
Tribunal Federal também não se faz de morto e já foi expedito em mandar prender
o deputado federal de Rondônia Natan Donadon, por corrupção.
Por enquanto, dois gritos ainda não tomaram forma de gritos unânimes por
mudanças: a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) e a
regulamentação que trata da democratização dos meios de comunicação.
Longe de ser “mais um” imposto, o IGF poderia estipular parâmetros visando
excluir com robusta folga as classes média e média alta, como também um
conjunto de famílias que podem ser consideradas ricas, mas não milionárias. A
regulamentação do IGF pode definir com clareza cristalina que sua incidência
atinja tão somente aqueles que apresentam grandes fortunas, estimados em cerca
de 10 mil famílias e, principalmente, dentro desse universo de contribuintes,
as cinco mil famílias que teriam um patrimônio equivalente a 40% do PIB.
A colocação da tributação da riqueza novamente na agenda política nacional
reflete a tomada de consciência gradativa de que as iniqüidades geradas pela
adoção de políticas que glorificam o Deus-Mercado, acentuadamente de extrações
neoliberais, nas últimas décadas, agora se defrontam com o clamor crescente das
ruas.
A cobrança de imposto sobre grandes fortunas, prevista no artigo 153 da
Constituição de 1988 e nunca regulamentada, voltou ao debate nacional após as
manifestações de rua exigindo melhorias na qualidade de vida da população.
É uma demanda antiga. E nunca conseguiu eficácia por sempre esbarrar nos velhos
corporativismos:
- A classe política não tem interesse em regulamentar porque, quando não
alcançaria boa parte da riqueza dos senhores parlamentares e chefes dos
executivos estaduais e municipais, abocanharia parte dos rendimentos dos
empresários que em grande medida financiam as campanhas políticas no país ao
longo de sua história. Constatação: os titulares de grandes fortunas, se não
estão investidos de poder, possuem inegável influência sobre os que exercem.
- Os meios de comunicação, dentre estes, aqueles com maior audiência televisiva
e maior número de tiragem impressa – revistas e jornais – nunca demonstraram
permeabilidade ao reclame da sociedade por uma singela motivação – qual seja,
dado o grau de extrema concentração da propriedade dos veículos de comunicação
(canais de tevê, canais de tevê a cabo, revistas semanais, jornais diários,
emissoras de rádio, e portais na Internet), eles próprios integrariam um
público-alvo de 907 indivíduos e empresas que detêm patrimônio igual ou
superior a R$ 150.000.000,00 e, além de levar a própria carne ao corte, iria
contrariar frontalmente interesses de suas principais fontes de receita
publicitária, o cobiçado mercado publicitário, que inclui conglomerados
financeiros, grupos econômicos transnacionais diversos. indústria da construção
civil, agronegócio, segmento automotivo;
- Os principais nós a serem desatados tem a ver com a definição para “grande
fortuna”, a base de cálculo e a alíquota por faixa de riqueza patrimonial.
É fato que se trata de um imposto de grande impacto para a realização de
justiça social no Brasil, pois sua existência e regulação possibilita a
redistribuição de renda em favor dos segmentos da população mais vulneráveis
social e economicamente.
própria inclusão deste artigo em nossa Constituição Cidadã de 1988 está
colocada de forma cristalina e assertiva nos Atos e Disposições Constitucionais
Transitórias que, em seu art. 80, inciso III, estipula:
"Art. 80. Compõem o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza:
[...] III – o produto da arrecadação do imposto de que trata o Art. 153, inciso
VII, da Constituição".
A discussão e também a adoção do Imposto sobre Grandes Fortunas não é nossa
primazia nem possui o ineditismo da nossa jabuticaba. Com o chamado Éden do
capitalismo mundial em crise acentuada, o fato é que a tributação sobre grandes
fortunas voltou à agenda de discussão dos povos de que nunca o adotaram, como
os EUA, ou em países que o revogaram e agora discutem sua reintrodução, como a
Alemanha.
Existe em alguns países, como os Estados Unidos e alguns países europeus. No
exterior, tem sido comum que este IGF passa a ser exigido apenas sobre os
ganhos auferidos no ano, enquanto que no Brasil todos os debates apontam para a
necessidade de se regulamentar o IGF de forma a que este incidiria sobre a
totalidade do patrimônio dos indivíduos.
A fragilidade argumentativa dos que se opõem ao IGF é gritante:
- a sonegação fiscal no Brasil seria incentivada, ao fazer com que
contribuintes não declarassem seu patrimônio por receio do imposto;
- seria uma forma de o governo criar mais um imposto, diminuindo o patrimônio
dos contribuintes, sem garantias que o dinheiro seria usado diretamente na
saúde (como a CPMF também não era integralmente aplicada na saúde);
- seria injusto optar por incidir sobre a totalidade do patrimônio já
acumulado, algo que atingiria indivíduos que já haviam pagado todos os impostos
para sua acumulação.
A contraargumentação parece-nos sólida, robusta. E madura. Se não, vejamos:
- sonegadores contumazes existirão sempre, assim como existem os sonegadores
habituais do Imposto de Renda, portanto, com a criação do IGF neste momento, a
Receita Federal detêm todos os meios necessários para acessar dados e cifras do
patrimônio real de cada brasileiro, de forma estabilizada, mas ainda assim,
parece-nos óbvio que os donos de grandes fortunas a serem tributados - e que
viessem a sonegar o pagamento do IGF - há muito vêm sonegando também o Imposto
de Renda; portanto, a existência ou não do IGF teria impacto nulo no aspecto
sonegação fiscal;
- inferir que a existência de um imposto – qualquer que seja - tenha relação
direta com sua correta aplicação é não mais que diversionismo tosco e
instrumentos de fiscalização precisam ser aprimorados - ou criados - para
assegurar a aplicação dos recursos de acordo com o que prevê o texto
constitucional; no caso do IGF seriam aplicados para fortalecer políticas
públicas de erradicação da pobreza.
- não seria injusto, sob quaisquer aspectos, que o IGF incida sobre o
patrimônio acumulado do indivíduo e não sobre os ganhos anuais destes, porque é
até do conhecimento vegetal a falta de lisura, a corrupção e o mau uso do
próprio poder econômico visando auferir e acumular ao longo do tempo tanto
ganhos de capital quanto ganhos patrimoniais.
Economistas e tributaristas informam que caso seja criado esse imposto o país
terá aporte adicional de, pelo menos, R$ 14 bilhões, dinheirama que poderia ser
facilmente direcionado para a saúde. E recursos que viriam, em grande parte, de
apenas 907 contribuintes com patrimônio superior a R$150 milhões.
Resta saber se a imprensa que tanto se diz alinhada na missão de amplificar o
grito das ruas, estádios, avenidas, praças e também das redes sociais, estaria
disposta a encampar em sua seletiva agenda noticiosa a criação do IGF, assim
como fez com a demanda por uma reforma política e o arquivamento da PEC
37/2013.
Caso nossos principais defensores da liberdade de expressão, guardiães
autonomeados da liberdade de imprensa, optem por uma sintonia realmente fina
com os anseios populares, logo nos habituaremos a ver a regulamentação do Imposto
sobre Grandes Fortunas nas capas da revista Veja, carro-chefe do
conservadorismo; matérias alentadas na revista Época; editoriais inflamados nos
jornais O Globo, Folha de S.Paulo e o Estado de São Paulo. E também, não
ficaremos surpresos se ao mudarmos de canal de tevê em uma tarde de domingo
qualquer nos depararmos com a voz rouqenha e os olhos esbugalhados do global
Faustão clamando pela imediata existência do Imposto Robin Hood. E daí será um
passo para ouvirmos os sermões em forma de vitupérios e sandices do Arnaldo
Jabor, além das habituais gracinhas cínicas do Jô Soares.
*Washington Araújo é
jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil, Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org Email - wlaraujo9@gmail.com
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