quinta-feira, 18 de julho de 2013

Portugal: E AGORA, ANÍBAL?




Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião

São três os equívocos fatais que atravessaram a intervenção do Presidente da República, e que explicam os confusos e agitados debates que ela suscitou. O primeiro é um equívoco sobre a condição política hoje. O segundo é o equívoco sobra a própria figura presidencial que Cavaco Silva tem incarnado. E o terceiro é o equívoco sobre o que são as expectativas políticas dos cidadãos, neste momento da crise.

A condição política, primeiro. A política vive hoje, por todo o lado, um período de acentuado descrédito e de crescente deslegitimação. São muitos os fatores que têm contribuído para isso, as idiossincrasias nacionais contam certamente muito, mas as principais causas têm sido a globalização, o financismo, as novas tecnologias e o individualismo contemporâneo. Todos eles contribuem fortemente para a erosão da representação e da soberania, que são valores estruturais em política, tanto do ponto de vista simbólico como da ação. E estes traços reforçam-se muito na União Europeia, com a Zona Euro a viver as paradoxais consequências de uma situação em que, cada vez mais, quem tem poder não tem legitimidade, e quem tem legitimidade não tem poder.

A descredibilização da política e da classe política decorre pois hoje, no essencial, desta crescente desconexão entre a política e o poder, entendida a política como a capacidade de decidir, e o poder com a capacidade de agir.

Mas é um erro crasso pensar-se, como às vezes parece acontecer, que o descrédito da condição política atinge apenas os partidos políticos e os seus aparelhos. Não, ele atinge por igual todos os protagonistas políticos, sejam eles autarcas, deputados, governantes ou presidentes, e todas as instituições políticas sem qualquer exceção. E também os "media", não só na vertente jornalística como na do comentário, que aparecem aos olhos dos cidadãos, como dando forma a um magma político mediático mais ou menos cúmplice e homogéneo.

Como aqui lembrei na semana passada, este descrédito desvitaliza brutalmente a própria democracia, que se vê cada vez mais reduzida a um conjunto de formalidades pouco relevantes e nada consequentes, ao mesmo tempo que o espaço político e o espaço mediático se fundem num dispositivo de coproduções de eventos que, mais do que esclarecer, atordoam os cidadãos.

O segundo equívoco é o da própria figura presidencial, que hoje não só não escapa à generalizada degradação da condição política, como - pelo contrário - se colocou nos últimos dois anos no centro dessa mesma degradação. Basta olhar para os estudos e indicadores de opinião para se constatar que, em todos eles, pior do que Aníbal Cavaco Silva em termos de credibilidade junto dos portugueses... só mesmo Pedro Passos Coelho!

O que não admira. Depois de um primeiro mandato a muitos títulos falhado, Cavaco Silva começou o seu segundo mandato de um modo crispado, de que os Portugueses não gostaram. E depois de pôr fim ao governo de José Sócrates, ziguezagueou constantemente: começou por espaldar acriticamente o governo do PSD/CDS para mais tarde - no começo do ano - vir alertar para o desnorte e para a espiral recessiva que ameaçavam o País. Logo a seguir, contudo, no 25 de Abril, exprimiu ao mesmo governo um apoio sem reservas, para agora, três meses passados, o colocar a prazo e acorrentar a um compromisso de salvação nacional altamente inverosímil. Foi tudo isto, mas foram também as infelizes declarações de Cavaco Silva sobre as suas pensões, e as suas lamentáveis opções nesta matéria, que o lançaram no abismo da impopularidade e da falta de credibilidade. Daí, a meu ver, que ele tenha sentido necessidade de recorrer à hipótese de uma "personalidade de reconhecido prestígio" como mediador da sua proposta.

Mas não faltou só autoridade ao Presidente, nesta sua proposta de um compromisso de salvação nacional. Faltou também o "kairos", ou seja, a coincidência do bom argumento com o bom argumento. Esse "kairos" existiu, foi há dois anos, defendi-o então como um imperativo de "legislatura patriótica", que deveria ter começado por fazer três coisas muito simples: manter o PS ligado à execução do memorando, impedir que o PSD/CDS o radicalizassem, procurar que todos contribuíssem para reforçar o peso, e a margem de manobra, do País na União Europeia. Tão fácil, tão óbvio, que não se percebe como é que o Presidente da República lhe preferiu dois anos de deriva e de fiasco governamental, dois anos de constante marginalização do PS, dois anos a pisar ovos na Europa. O resultado aí está... mas agora é, talvez, tarde demais.

Agora, o Presidente da República só podia, ou ter convocado eleições, e seria fácil encontrar soluções para se encurtarem todos os prazos que ele tanto dramatizou na sua intervenção. Ou ter dado continuidade ao governo, com a remodelação proposta ou outra. Ou apontar, mas já, para uma solução de um governo de iniciativa presidencial.

O que de modo nenhum o Presidente da República podia fazer era ter ficado calado durante cinco dias perante uma proposta de solução da crise da coligação e de remodelação do governo, que lhe tinha sido transmitida e tornada pública.

O que de modo nenhum o Presidente da República podia fazer era chamar compromisso de salvação nacional a uma proposta de mera salvação de um memorando cuja execução nos trouxe aqui, pela mão do agora arrependido Vítor Gaspar.

O que de modo nenhum o Presidente da República podia fazer era fixar um calendário eleitoral que, associado ao tal compromisso de salvação nacional, condicionaria a discussão e as opções do povo português aos limites de uma tutela degradante para a democracia.

O Presidente da República não devia ter feito nada disto, mas fê-lo. E fê-lo porque labora num equívoco - é o terceiro - sobre as expectativas dos cidadãos. Elas apontam, é fácil reconhecê-lo, para a vontade de convergência e de consenso. Mas ninguém quer hoje consensos "a martelo" que, a pretexto da crise, substituam a diversidade das opiniões e da sua expressão por um qualquer garrote unanimista.

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