Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
São três os
equívocos fatais que atravessaram a intervenção do Presidente da República, e
que explicam os confusos e agitados debates que ela suscitou. O primeiro é um
equívoco sobre a condição política hoje. O segundo é o equívoco sobra a própria
figura presidencial que Cavaco Silva tem incarnado. E o terceiro é o equívoco
sobre o que são as expectativas políticas dos cidadãos, neste momento da crise.
A condição
política, primeiro. A política vive hoje, por todo o lado, um período de
acentuado descrédito e de crescente deslegitimação. São muitos os fatores que
têm contribuído para isso, as idiossincrasias nacionais contam certamente
muito, mas as principais causas têm sido a globalização, o financismo, as novas
tecnologias e o individualismo contemporâneo. Todos eles contribuem fortemente
para a erosão da representação e da soberania, que são valores estruturais em
política, tanto do ponto de vista simbólico como da ação. E estes traços
reforçam-se muito na União Europeia, com a Zona Euro a viver as paradoxais
consequências de uma situação em que, cada vez mais, quem tem poder não tem
legitimidade, e quem tem legitimidade não tem poder.
A descredibilização
da política e da classe política decorre pois hoje, no essencial, desta
crescente desconexão entre a política e o poder, entendida a política como a
capacidade de decidir, e o poder com a capacidade de agir.
Mas é um erro
crasso pensar-se, como às vezes parece acontecer, que o descrédito da condição
política atinge apenas os partidos políticos e os seus aparelhos. Não, ele
atinge por igual todos os protagonistas políticos, sejam eles autarcas,
deputados, governantes ou presidentes, e todas as instituições políticas sem
qualquer exceção. E também os "media", não só na vertente
jornalística como na do comentário, que aparecem aos olhos dos cidadãos, como
dando forma a um magma político mediático mais ou menos cúmplice e homogéneo.
Como aqui lembrei
na semana passada, este descrédito desvitaliza brutalmente a própria
democracia, que se vê cada vez mais reduzida a um conjunto de formalidades
pouco relevantes e nada consequentes, ao mesmo tempo que o espaço político e o
espaço mediático se fundem num dispositivo de coproduções de eventos que, mais
do que esclarecer, atordoam os cidadãos.
O segundo equívoco
é o da própria figura presidencial, que hoje não só não escapa à generalizada
degradação da condição política, como - pelo contrário - se colocou nos últimos
dois anos no centro dessa mesma degradação. Basta olhar para os estudos e indicadores
de opinião para se constatar que, em todos eles, pior do que Aníbal Cavaco
Silva em termos de credibilidade junto dos portugueses... só mesmo Pedro Passos
Coelho!
O que não admira.
Depois de um primeiro mandato a muitos títulos falhado, Cavaco Silva começou o
seu segundo mandato de um modo crispado, de que os Portugueses não gostaram. E
depois de pôr fim ao governo de José Sócrates, ziguezagueou constantemente:
começou por espaldar acriticamente o governo do PSD/CDS para mais tarde - no
começo do ano - vir alertar para o desnorte e para a espiral recessiva que
ameaçavam o País. Logo a seguir, contudo, no 25 de Abril, exprimiu ao mesmo
governo um apoio sem reservas, para agora, três meses passados, o colocar a
prazo e acorrentar a um compromisso de salvação nacional altamente inverosímil.
Foi tudo isto, mas foram também as infelizes declarações de Cavaco Silva sobre
as suas pensões, e as suas lamentáveis opções nesta matéria, que o lançaram no
abismo da impopularidade e da falta de credibilidade. Daí, a meu ver, que ele
tenha sentido necessidade de recorrer à hipótese de uma "personalidade de
reconhecido prestígio" como mediador da sua proposta.
Mas não faltou só
autoridade ao Presidente, nesta sua proposta de um compromisso de salvação
nacional. Faltou também o "kairos", ou seja, a coincidência do bom
argumento com o bom argumento. Esse "kairos" existiu, foi há dois
anos, defendi-o então como um imperativo de "legislatura patriótica",
que deveria ter começado por fazer três coisas muito simples: manter o PS
ligado à execução do memorando, impedir que o PSD/CDS o radicalizassem,
procurar que todos contribuíssem para reforçar o peso, e a margem de manobra,
do País na União Europeia. Tão fácil, tão óbvio, que não se percebe como é que
o Presidente da República lhe preferiu dois anos de deriva e de fiasco
governamental, dois anos de constante marginalização do PS, dois anos a pisar
ovos na Europa. O resultado aí está... mas agora é, talvez, tarde demais.
Agora, o Presidente
da República só podia, ou ter convocado eleições, e seria fácil encontrar
soluções para se encurtarem todos os prazos que ele tanto dramatizou na sua
intervenção. Ou ter dado continuidade ao governo, com a remodelação proposta ou
outra. Ou apontar, mas já, para uma solução de um governo de iniciativa
presidencial.
O que de modo
nenhum o Presidente da República podia fazer era ter ficado calado durante
cinco dias perante uma proposta de solução da crise da coligação e de
remodelação do governo, que lhe tinha sido transmitida e tornada pública.
O que de modo
nenhum o Presidente da República podia fazer era chamar compromisso de salvação
nacional a uma proposta de mera salvação de um memorando cuja execução nos
trouxe aqui, pela mão do agora arrependido Vítor Gaspar.
O que de modo
nenhum o Presidente da República podia fazer era fixar um calendário eleitoral
que, associado ao tal compromisso de salvação nacional, condicionaria a
discussão e as opções do povo português aos limites de uma tutela degradante
para a democracia.
O Presidente da
República não devia ter feito nada disto, mas fê-lo. E fê-lo porque labora num
equívoco - é o terceiro - sobre as expectativas dos cidadãos. Elas apontam, é
fácil reconhecê-lo, para a vontade de convergência e de consenso. Mas ninguém
quer hoje consensos "a martelo" que, a pretexto da crise, substituam
a diversidade das opiniões e da sua expressão por um qualquer garrote
unanimista.
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