Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Afastemo-nos,
apenas por um dia, das circunstâncias. Apenas para assentarmos em pressupostos
fundamentais sem os quais a política se transforma numa charada. Um é este: a
divergência, em questões essenciais, entre diferentes partidos, diferentes
políticos e diferentes cidadãos, não é apenas normal em democracia. Não é
apenas saudável. Não é apenas importante. É a justificação para considerarmos a
democracia a melhor forma de organizarmos a nossa convivência política. A
democracia só é necessária porque as coisas são assim. E as coisas são assim
porque o ser humano é dotado de inteligência e liberdade de pensamento. A
democracia resolve estas divergências com a liberdade de expressão, organização
e reunião, com a organização do conflito social e com eleições. Fora dela,
estas divergências resolvem-se com armas e prisões.
Quem olha para
estas divergências como um problema, e não como uma enorme vantagem, não se
limita a não compreender a democracia. É, no essencial, antidemocrático. Porque
é nesta incompreensão que se baseiam todas as ditaduras. Dão-se nomes
diferentes ao que deve prevalecer à divergência: os nacionalistas chamam-lhe
Pátria, os teocratas chamam-lhe Deus, os comunistas chamam-lhe vanguarda, os
sonsos chamam-lhe "salvação nacional". Mas todos acreditam no mesmo:
que a sua posição é indiscutível. E que quem dela discorda apenas se pode mover
por interesses mesquinhos, sejam eles pessoais ou partidários.
Por isso, não
poderia discordar mais do que Henrique Monteiro escreveu aqui, há uma semana: sim,
a política é, como a vida, o território do conflito. A democracia apenas cria
as condições para que ele seja resolvido. Com cedências, claro. Com diálogo,
muitas vezes. Com negociações, sempre que necessário. Mas aceitando sempre, no
fim, que a ausência de acordo, quando os pontos de vista são mais distantes, é
natural. E que a democracia tem, para resolver a impossibilidade de
compromisso, os instrumentos necessários. Prevalece, no respeito por regras
instituídas, por património comum e pela tolerância e pluralismo, a posição da
maioria. A expressão democrática do conflito, mesmo quando vem de uma minoria,
não pode, em nenhuma circunstância, ser tratada como "ruído". E muito
menos se pode exigir "silêncio" a quem
cumpre a obrigação democrática de expressar as suas discordâncias.
Pensar que estes
pressupostos se anulam em tempo de crise é o mesmo que defender que a
democracia é um mero jogo formal, sem conteúdo nem substância, e por isso
dispensável quando alguma coisa relevante está em causa. É exatamente em tempos
de crise, que, por definição, são momentos de grandes escolhas, que a
existência de alternativas políticas distintas se torna ainda mais importante.
É durante as crises que compromissos tão alargados que anulem as distinção entre
diferentes opções se tornam ainda mais perigosos. Em democracia, não se podem
bloquear todas as saídas de emergência. Elas serão tudo o que sobra quando um
determinado caminho se revela desastroso para uma comunidade. Porque, retirando
do espaço da democracia a possibilidade de escolha, degrada-se a confiança dos
cidadãos na democracia e alimentam-se o desespero e as pulsões autoritárias.
Cavaco Silva disse,
um dia, aquela que é, para mim, a frase que melhor resume o seu pensamento
político: "duas pessoas sérias com a mesma informação têm de
concordar". Basta sermos governados por homens justos, competentes e
informados para que as discordâncias desapareçam e tudo corra pelo melhor. Ou
seja, a democracia poderia ser facilmente substituída por uma espécie de despotismo
tecnicamente esclarecido. Esta ideia está, aliás, na base da defesa de "governos
de tecnocratas". Talvez a memória se vá perdendo e as pessoas tenham de
voltar a experimentar a asfixia do acordo entre "pessoas sérias" para
perceberem do que se fala.
Todo o discurso em
torno da negociação para o "compromisso de salvação nacional" partiu
deste pressuposto. Não apenas de Cavaco Silva, mas de muitos comentadores,
jornalistas e agentes políticos. Incluindo dos próprios intervenientes neste
processo. Nenhum deles teve coragem para dizer a coisa mais simples: supondo que
somos pessoas sérias e informadas, as nossas discordâncias são demasiado
profundas para podermos negociá-las. Isso não só não é um problema - até porque
não vivemos numa situação de ingovernabilidade -, como deixa aos portugueses a
possibilidade de escolherem entre alternativas realmente distintas. O que é
positivo, porque nos salva de um impasse quando uma das opções se mostra
errada.
Porque não o
disseram? Porque sendo nós uma democracia jovem a maioria dos portugueses, que
recebeu durante meio século banhos de propaganda antidemocrática, poderia não o
compreender. E porque talvez eles próprios não acreditem que as suas
alternativas sejam assim tão distintas. O que é, isso sim, e não a falta de
compromisso, um problema grave para a nossa democracia e para o nosso futuro
como Nação.
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