terça-feira, 23 de julho de 2013

Portugal: A SALVAÇÃO NACIONAL É A DEMOCRACIA

 


Daniel Oliveira – Expresso, opinião
 
Afastemo-nos, apenas por um dia, das circunstâncias. Apenas para assentarmos em pressupostos fundamentais sem os quais a política se transforma numa charada. Um é este: a divergência, em questões essenciais, entre diferentes partidos, diferentes políticos e diferentes cidadãos, não é apenas normal em democracia. Não é apenas saudável. Não é apenas importante. É a justificação para considerarmos a democracia a melhor forma de organizarmos a nossa convivência política. A democracia só é necessária porque as coisas são assim. E as coisas são assim porque o ser humano é dotado de inteligência e liberdade de pensamento. A democracia resolve estas divergências com a liberdade de expressão, organização e reunião, com a organização do conflito social e com eleições. Fora dela, estas divergências resolvem-se com armas e prisões.
 
Quem olha para estas divergências como um problema, e não como uma enorme vantagem, não se limita a não compreender a democracia. É, no essencial, antidemocrático. Porque é nesta incompreensão que se baseiam todas as ditaduras. Dão-se nomes diferentes ao que deve prevalecer à divergência: os nacionalistas chamam-lhe Pátria, os teocratas chamam-lhe Deus, os comunistas chamam-lhe vanguarda, os sonsos chamam-lhe "salvação nacional". Mas todos acreditam no mesmo: que a sua posição é indiscutível. E que quem dela discorda apenas se pode mover por interesses mesquinhos, sejam eles pessoais ou partidários.
 
Por isso, não poderia discordar mais do que Henrique Monteiro escreveu aqui, há uma semana: sim, a política é, como a vida, o território do conflito. A democracia apenas cria as condições para que ele seja resolvido. Com cedências, claro. Com diálogo, muitas vezes. Com negociações, sempre que necessário. Mas aceitando sempre, no fim, que a ausência de acordo, quando os pontos de vista são mais distantes, é natural. E que a democracia tem, para resolver a impossibilidade de compromisso, os instrumentos necessários. Prevalece, no respeito por regras instituídas, por património comum e pela tolerância e pluralismo, a posição da maioria. A expressão democrática do conflito, mesmo quando vem de uma minoria, não pode, em nenhuma circunstância, ser tratada como "ruído". E muito menos se pode exigir "silêncio" a quem cumpre a obrigação democrática de expressar as suas discordâncias.
 
Pensar que estes pressupostos se anulam em tempo de crise é o mesmo que defender que a democracia é um mero jogo formal, sem conteúdo nem substância, e por isso dispensável quando alguma coisa relevante está em causa. É exatamente em tempos de crise, que, por definição, são momentos de grandes escolhas, que a existência de alternativas políticas distintas se torna ainda mais importante. É durante as crises que compromissos tão alargados que anulem as distinção entre diferentes opções se tornam ainda mais perigosos. Em democracia, não se podem bloquear todas as saídas de emergência. Elas serão tudo o que sobra quando um determinado caminho se revela desastroso para uma comunidade. Porque, retirando do espaço da democracia a possibilidade de escolha, degrada-se a confiança dos cidadãos na democracia e alimentam-se o desespero e as pulsões autoritárias.
 
Cavaco Silva disse, um dia, aquela que é, para mim, a frase que melhor resume o seu pensamento político: "duas pessoas sérias com a mesma informação têm de concordar". Basta sermos governados por homens justos, competentes e informados para que as discordâncias desapareçam e tudo corra pelo melhor. Ou seja, a democracia poderia ser facilmente substituída por uma espécie de despotismo tecnicamente esclarecido. Esta ideia está, aliás, na base da defesa de "governos de tecnocratas". Talvez a memória se vá perdendo e as pessoas tenham de voltar a experimentar a asfixia do acordo entre "pessoas sérias" para perceberem do que se fala.
 
Todo o discurso em torno da negociação para o "compromisso de salvação nacional" partiu deste pressuposto. Não apenas de Cavaco Silva, mas de muitos comentadores, jornalistas e agentes políticos. Incluindo dos próprios intervenientes neste processo. Nenhum deles teve coragem para dizer a coisa mais simples: supondo que somos pessoas sérias e informadas, as nossas discordâncias são demasiado profundas para podermos negociá-las. Isso não só não é um problema - até porque não vivemos numa situação de ingovernabilidade -, como deixa aos portugueses a possibilidade de escolherem entre alternativas realmente distintas. O que é positivo, porque nos salva de um impasse quando uma das opções se mostra errada.
 
Porque não o disseram? Porque sendo nós uma democracia jovem a maioria dos portugueses, que recebeu durante meio século banhos de propaganda antidemocrática, poderia não o compreender. E porque talvez eles próprios não acreditem que as suas alternativas sejam assim tão distintas. O que é, isso sim, e não a falta de compromisso, um problema grave para a nossa democracia e para o nosso futuro como Nação.
 

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