Pragmatismo Político
Pais de Ricardo
Ferreira Gama contam sobre ameaças que funcionário da Unifesp na Baixada
Santista vinha sofrendo antes de ser morto a tiros
O pequeno cômodo de
cerca de dez metros quadrados no fundo de um casarão no bairro de Vila Mathias,
em Santos, tem parecido grande para dona Elvira desde que seu único filho, Ricardo Ferreira Gama, foi morto a tiros por homens não
identificados na esquina de casa, no dia 2. “É muito difícil ficar aqui
dentro”, conta. Na casa há apenas uma mesinha com três cadeiras, uma cômoda com
uma televisão, geladeira, fogão e uma cama de casal.
O quartinho modesto
está cheio de lembranças do “gordinho”, como dona Elvira carinhosamente chamava
o filho de 30 anos. “Como o quarto é muito pequeno, não tinha como armar outra
cama. Então ele dormia comigo”, conta com a voz embargada. Na tentativa de aplacar
a dor e por orientação de amigos preocupados com sua segurança, nas duas noites
seguintes ao crime ela dormiu na casa de uma amiga. Mas depois resolveu ficar
no seu próprio canto. “Seja o que Deus quiser. Se quiserem vir me matar, que
venham. Vou ficar aqui”, diz. A mulher de 58 anos tem certeza que o grupo que
matou o rapaz era formado por policiais militares.
Ricardo, que era
auxiliar de serviços gerais da unidade da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) na Baixada Santista, foi morto dois dias depois de ter sido agredido
violentamente por PMs na frente do campus da universidade. Antes do episódio,
no entanto, ele já vinha sendo seguidamente abordado por integrantes da
corporação, de acordo com o relato dos pais e de estudantes que presenciaram a
agressão e conversaram com a reportagem sob a condição de anonimato. “Ele não
tinha sossego. Quando saía, os PMs o abordavam. Por isso, até quando ia passear
colocava o crachá do serviço”, lembra a mãe.
José, pai de
Ricardo, lembra que nem o crachá e o uniforme adiantavam. Bastava vê-lo na rua
para a polícia o abordar. Segundo o jovem relatava ao pai, nessas batidas
frequentemente o agrediam. “Pelo jeito os PMs que o perseguiam achavam que não
deveria trabalhar, que deveria ficar mexendo com drogas. Ele chegou a falar
para eles: ‘Vocês querem me colocar no crime, mas eu não vou. Vou trabalhar,
seguir minha vida normal.’”
Os “enquadros” que
Ricardo sofria começaram a acontecer logo após ele sair da prisão, conta dona
Elvira. O jovem ficou detido dois anos e quatro meses por tráfico de drogas.
Aos pais, o rapaz garantia que o flagrante havia sido forjado pela polícia. Foi
uma época muito difícil: “fizesse chuva ou sol eu estava lá todos os domingos
para visitá-lo”. Quando saiu, há um ano e oito meses, Ricardo trabalhou um
tempo na padaria de sua irmã por parte de pai. Pouco mais de um ano depois,
conseguiu o emprego na Unifesp, onde ganhava um salário mínimo. “Ele estava com
tantos planos, estava feliz. Falava: ‘Essa faculdade é muito boa, joga a gente
para cima’. Tinha tanto orgulho de colocar o uniforme, o crachá… até em dia de
folga ele ia para lá”, conta a mãe. As abordagens policiais que o filho
recebia, porém, preocupavam Elvira, que sugeria que fossem para o interior, de
volta à sua cidade natal, Tupã, onde mora o restante da família. “Mas ele não
queria ir, adorava Santos”.
Agressão. A
violenta agressão de policiais militares ao jovem auxiliar de serviços gerais
aconteceu no dia 31 de julho. Em uma pausa do trabalho, Ricardo estava fumando
com um colega em frente a uma casa abandonada, vizinha do campus da
universidade, quando foi abordado pelos três PMs. “Quando cheguei à faculdade,
ele já estava todo ensanguentado, pedindo socorro e apanhando, principalmente
de um dos policiais, que estava sem identificação”, relata à reportagem uma das
alunas que testemunhou a agressão. Em seguida, o funcionário da Unifesp foi
colocado no camburão, sob protestos dos estudantes. Entre eles, três que filmaram o jovem, com o
rosto ensanguentado, sendo levado.
Os policiais
disseram aos alunos que Ricardo seria encaminhado ao 1º Distrito Policial.
Porém, quando chegarem lá ouviram que ele estava no 4º DP, na região da
universidade. Enquanto, na verdade o rapaz se encontrava na Santa Casa, onde
levava cinco pontos na boca. Os estudantes tentaram fazer um boletim de
ocorrência, mas foram intimidados pelos mesmos PMs, que estavam no local. No
mesmo dia, segundo relatos, eles foram ao campus da Unifesp perguntar se alguém
conhecia os estudantes que gravaram a agressão. Quando souberam da morte de
Ricardo, os autores do vídeo foram embora da cidade.
Do hospital,
Ricardo foi para casa trocar o uniforme ensanguentado, pois queria voltar ao
trabalho. “Filho, o que aconteceu? Com quem você brigou?”, perguntou dona
Elvira, assustada. “Foram os PMs, mãe.” Com novo uniforme no corpo, o rapaz
saiu. Na porta do casarão, policiais o esperavam. “Sujou lá. Os estudantes
estão mostrando os vídeos na delegacia”, disse um deles. “Se não derem sumiço
nesses vídeos, o negócio vai ficar feio.” Ricardo prometeu que falaria com os
alunos e recebeu a promessa de que tudo ficaria bem. Mais tarde, no mesmo dia,
ele próprio descreveria esse diálogo à mãe, na tentativa de tranquilizá-la. “Já
me pediram desculpas, mãe, e eu pedi desculpas a eles”, falou. “Ele não tinha
malícia”, lamenta dona Elvira, que não sabe dizer se eram os mesmos homens que
o havia agredido.
Nesse mesmo dia, ao
vê-lo com os pontos na boca, todo arrebentado, seu José aconselhou o jovem:
“Ricardo, isso não está bom. Antes era abordagem, agora é agressão. É melhor
você ir embora, filho. Por que você não vai ficar com a família da sua mãe em
Tupã? Vai ficar sendo abordado até quando?” Ricardo respondeu: “Mas lá não tem
emprego, pai.”
Execução. O
auxiliar de serviços gerais da Unifesp trabalhava das 13hs às 22hs. Na
madrugada do dia 1º para o dia 2 de agosto, passada meia-noite, pediu R$ 6
emprestados à mãe para comer um lanche no Mac Rampa, próximo ao Mercado
Municipal, a dois quarteirões de casa. Dona Elvira tentou alertá-lo sobre o
risco de sair na rua àquela hora, mas para Ricardo já estava tudo resolvido.
Alguns minutos
depois, quando voltava para casa, a poucos metros da porta, um carro com quatro
pessoas encapuzadas no interior o fechou. Duas motos se aproximaram. Seus
quatro passageiros, todos com capacete, começaram a disparar contra Ricardo,
que morreu na hora.
Dona Elvira já
estava deitada quando ouviu o “pen, pen, pen!” Achou que o ruído vinha do
escapamento de uma moto, mas logo depois o vizinho bateu na sua porta: “Dona
Elvira! Dona Elvira! Atiraram no Ricardo aqui na esquina!” “Eu saí, vi aquele
monte de sangue, meu filho estendido, não aguentei ver aquilo, não conseguia
ver, tinha muito sangue”, relata. “Horas depois, quando tiraram o corpo dele,
peguei água e fui lavar a rua. Lavei o sangue do meu filho.”
Seu José estava
dormindo quanto tocou o telefone. Era dona Elvira: “Meu deus, mataram nosso
filho, mataram nosso filho!” O pai de Ricardo não queria acreditar. “Não,
calma, não mataram não! Você está brincando!”. Pegou o carro e foi correndo ao
local. Ao chegar, viu as pessoas em volta do corpo e a polícia tentando isolar
a área, impedindo a passagem. “Entrei mesmo assim e o vi daquele jeito. Desabou
o mundo”, relata. “Ele era um menino bom, tinha um coração enorme, não fazia
mal pra ninguém. Só que tinha passagem, então eles acharam que tinha de
morrer.”
Um vizinho contou à
mãe de Ricardo que um grupo de amigos que conversava em uma das casas saiu à
rua assim que os tiros foram disparados e viu as motos fugindo em alta
velocidade. Antes, na mesma noite, elas já rondavam o local. Os moradores, no
entanto, estão receosos em falar. “Aqui na região o pessoal tem medo da PM. E a
gente ouve muita história de encapuzados, em Guarujá, São Vicente, Vicente de
Carvalho. E são sempre jovens que morrem. Outro dia mataram outro aqui perto”,
diz. “Antes, quando ouvia um caso desses, de homens em motos matando um jovem,
eu achava que era briga de traficante. Mas, olha, hoje eu tenho certeza que não
é, que é essa polícia, que é um grupo de extermínio. A PM não serve para cuidar
dos outros, serve para matar nossos filhos, para nos deixar chorando em cima do
sangue do corpo do filho da gente.”
Investigação.
Diante da grande repercussão do caso, especialmente após a divulgação do vídeo
da agressão a Ricardo, as investigações estão sendo conduzidas por uma parceria
entre a Polícia Civil da Baixada Santista, o Departamento de Homicídios e de
Proteção à Pessoa (DHPP) e Corregedoria da Polícia Militar. Em entrevista à
reportagem, Aldo Galiani, comandante da Polícia Civil na região, afirmou que há
duas linhas de investigação: uma represália de policiais militares ao fato
ocorrido dois dias antes do crime e um acerto de contas do tráfico de drogas.
“Quanto à primeira,
não há nada, nenhum indício que nos leve a essa conclusão. O que mais se
encaminha é que ocorreu a segunda hipótese. O tipo de crime é característico de
execução de tráfico de drogas, mas é prematuro chegar a alguma conclusão”,
disse. Segundo Galiano, a segunda linha de investigação ganha força por causa
do “antecedente complicado” de Ricardo. Sobre a primeira hipótese, o delegado
afirmou: “Se ele se desentendeu com policiais, que as testemunhas levem à gente
esses fatos. Não descartamos ter policiais envolvidos, mas estamos caminhando
para todos os lados. Pode até ter sido um grupo de ex-policiais ligados ao
tráfico, mas da ativa eu acho difícil”.
O defensor público
Antônio Maffezoli, que acompanha o caso, discorda. Para ele, execuções
praticadas por homens de capacete em motos ou encapuzados em carros são
claramente características de grupos de extermínio formados por policiais.
“Principalmente aqui na Baixada, onde já houve várias mortes com o mesmo modus
operandi. Os assassinatos do tráfico não são assim”, diz.
De acordo com ele,
os três PMs envolvidos na agressão a Ricardo dois dias antes de seu assassinato
já foram identificados, mas ainda não foram ouvidos. “Aquela agressão, que foi
filmada, o fato de os policiais terem voltado lá, ameaçado os estudantes
querendo conseguir o vídeo levanta muitas suspeitas. O que se espera é que os
órgãos de investigação façam a investigação, que sigam o que é uma suspeita ou
indício e que consigam colher provas. E logo, para que tudo isso não se perca
com o passar no tempo, como aconteceu com outros crimes.”
Procurada pela
reportagem, a PM não se manifestou até o fechamento da matéria.
Na foto: Momento em
que Ricardo Gama foi detido (Divulgação)
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