No Brasil, a cara
define sua profissão, o seu poder e a sua preferência no trânsito da vida
profissional. A vinda de tantos médicos e médicas negras para o Brasil é um
choque terapêutico para entendermos a profundidade do apartheid brasileiro
Marcos Romão –
Pragmatismo Político
Poderia ser natural
em meu Brasil, qualquer criança ou pessoa me perguntar qual a minha profissão,
se eu responder, que sou médico, mesmo vestido de branco, feito respondi uma
vez à uma balconista negra que me servia café, ela olhou desconfiada e me disse
que pensava que eu parecia mais pai de santo, quando lhe afirmei que na verdade
sou sociólogo, ela me olhou mais espantada ainda, dizendo, feito o presidente
Fernando Henrique?
São situações
naturais para qualquer negro no Brasil estas que acontecem no dia a dia com a
gente, não somos o que somos somos apenas o que nascemos pra ser. Nascemos pra
sermos nada ou quase nada.
Eu mesmo me flagro
volta e meia ao conversar com as pessoas, com uma dúvida interior, que me faz
perguntar no íntimo, será que o cara tá acreditando em mim,será que eu estou me
apresentando mais do que devia para convencer o cara interlocutor, que eu sou o
que sou e tenho a experiência que tenho? Será que não exagero ao me descrever,
para convencer ao outro que sou eu mesmo o que sou?
Natural prá gente é
ser servente, empregado doméstico, supervisor de segurança se estiver de terno
e até manobreiro, que alguém entrega a chave enquanto a gente espera a namorada
chegar para nos encontrar em um restaurante fino.
Não importa se o interlocutor é negro ou branco, cortamos um dobrado para convencê-lo de que somos o que somos e basta.
Não importa se o interlocutor é negro ou branco, cortamos um dobrado para convencê-lo de que somos o que somos e basta.
No meus vinte anos
na Europa, quando sentava em um bar, poderia estar ao meu lado uma chanceler da
república ou uma empregada doméstica, que se eu não conhecesse pela foto, não
saberia quem é quem.
Aqui não, se é
branco é alguém, se não é branco que nos convença.
Aqui no Brasil se
tem cara e não se tem cara e a cor da cara ajuda a definir a profissão, a
posição e o poder diagnosticado na pessoa que você se confronta. Dependendo da
nossa avaliação ou pedimos licença, ou passamos por cima.Quase sempre tem dado
certo prá todo mundo. Quando não dá certo e alguém grita racismo, vem logo a
desculpa, mas foi um mal entendido, esta não foi a nossa intenção.
Aqui a cara define
a sua profissão, o seu poder e a sua preferência no trânsito da vida
profissional.
Até para as
crianças que reconhecem tudo no espírito, é um problema identificar uma pessoa
negra no seu cotidiano,que não faça parte do universo de pessoas a que esta
criança esteja acostumada a ver as pessoas negras.
Médicas, engenheiras,
arquitetas, presidentas escapam até para estas crianças do universo de
domésticas a que elas estão acostumadas a verem suas mães, tias, quando são
crianças negras, e babás quando são de crianças brancas que falamos.
Assim quando a jornalista potiguar Micheline Borges causa uma revolta nas redes sociais ao expressar sua opinião sobre os médicos cubanos que estão chegando ao Brasil para trabalhar no programa “Mais Médicos”. “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem uma cara de empregada doméstica”, como afirmou a repórter, me causa um certo espanto, sobre o porque de tanta revolta do público feissebuquiano, quando ela falou o que a maioria destes leitores pensam.
A infeliz cometeu
apenas a besteira de confirmar o racismo que a maioria dos brasileiros carregam
dentro do coração todos os dias.
Ninguém se espanta
nem vai para as redes, perguntar por que só tem médicos brancos no Brasil.
Todos estão para lá
de mal acostumados em verem cenas de filas negras esperando no SUS, e à 8 horas
as filas de brancos estacionando os seus carros e descendo para atravessar
aqueles mares negros de pessoas humanas de pele preta ou amareladas de fome,
que sempre estão a sua espera.
Foi chocante
assistir a chegada dos médicos cubanos em São Paulo, a foto estampada nos
jornais chocou até a mim, homem vivido neste mundo planetário. Deus dos Céus,
um monte de mulheres e homens com as caras dos peixeiros de nossas esquinas,
fortes como os entregadores de gás do dia a dia, e com aquele olhar afável das
nossas queridas empregadas domésticas, isto não estava no meu enredo de vida
como um brasileiro negro, pois eram e são todas e todos médicas e médicos.
Quiseram os Deuses,
via a transversal do comunismo, dar um choque terapêutico no nosso racismo, tão
querido como um calo conservado de nossos avós?
E ainda aparecem
uns jornalistas, que parecem que descobriram a pólvora do racismo brasileiro, a
dizerem-se solidários com os cubanos, que sentem vergonha pelo racismo dos
médicos brasileiros. Outros, menos jornalistas também sentem vergonha, como se
o assunto não fosse com eles.
Meu avô sempre
dizia, vergonha de quem não se reconhece racista e lágrimas de crocodilos, não
acabam com o racismo, nem enchem copo de quem tem sede por justiça e igualdade.
Tem mais de 125
anos que nós negros lutamos para termos acesso às escolas e quanto mais
estudamos, mais as escolas de “excelência” ficam brancas.
Tem mais de 40 anos
que lutamos por cotas, levamos 10 anos na justiça, ganhamos mas não levamos a
quina, pois universidades como a de São Paulo, sempre arranjam um jeito de não
permitirem nossa entrada.
Numa esquina perto
de minha casa vejo todo dias dois mares de cores crianças se cruzarem,de um
lado uma escola privadas, escola de excelência que forma prefeitos e
governadores. As crianças brancas atravessam a rua em direção a zona rica da
cidade. Do outro lado tem a Escola Pública , que forma as empregadas domésticas
e os peixeiros da esquina.
As crianças se
cruzam, pretas para as favelas e brancas pra os play grounds. Sinto que estamos
enchendo um balde furado. Nossas crianças negras estão marcadas para perderem e
morrerem.
Que a foto desta
negrada cubana estampada nos jornais, tenha o mesmo efeito que a foto de Pelé
teve na África do Sul, quando publicada na primeira página em 1958. Foi a
primeira foto de um negro na primeira página de um jornal da África do Sul. A
foto de Pelé inspirou muitos jovens negros da época, como me disse Desmond
Tutu, ao verem que elas, crianças negras poderiam ser o que desejassem. Levaram
30 anos e estão conseguindo.
A vinda de tantos
médicos e médicas negras para o Brasil (apesar de ser tão pouquinho café neste
balde de leite que é o sistema de poder curador do Brasil) é mais do que um
exemplo de ação para a saúde física de nosso povo racista até nas entranhas, é
um choque terapêutico para entendermos a profundidade do apartheid brasileiro.
Aqui deixo como um
exemplo a entrevista que fiz no início do ano com uma médica negra brasileira
de minha cidade (VER VÍDEO)
Leia mais em
Pragmatismo Político
1 comentário:
Peço ajuda para divulgar o problema dos professores brasileiros e portugueses que estiveram a trabalhar na UNTL em 2012.
http://www.jn.pt/PaginaInicial/Sociedade/interior.aspx?content_id=3343412
Nem mesmo esse problema interferiu em meu amor por Timor e pelo povo timorense!
Com os melhores cumprimentos...
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