Deutsche Welle
Ingerências por
razões humanitárias vêm sendo justificadas nas últimas décadas pelo conceito de
"responsabilidade de proteger". EUA e aliados podem recorrer à mesma
ideia para respaldar uma ação militar contra Assad.
Uma semana após o
suposto ataque com gás tóxico na Síria, a comunidade internacional já considera
como certa a realização de uma operação militar contra o governo do país. No
momento inspetores da ONU ainda se encontram na região, procurando evidências do
uso de armas químicas.
Legalmente, no
entanto, tal ataque seria uma violação do direito internacional, já que a
legitimidade só é dada com a aprovação pelo Conselho de Segurança das Nações
Unidas. A China e a Rússia, que têm poder de veto, provavelmente bloquearão uma
resolução nesse sentido, pois os governos de ambos os países rejeitam uma
intervenção militar.
"Coalizão dos
dispostos"
Contudo esta não
seria a primeira vez que os EUA, realizariam uma ação militar sem um mandato da
ONU. "Coalizão dos dispostos" foi como o então presidente George W.
Bush chamou em 2003 a aliança de vários países que, sob a liderança dos EUA e
do Reino Unido, libertariam o Iraque do ditador Saddam Hussein.
Antes da invasão,
os EUA tentaram provar que havia armas de destruição em massa no Iraque. O
então secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, apresentou nas Nações Unidas
supostas evidências, mas a Alemanha, França e Rússia tinham sérias dúvidas
sobre a confiabilidade das fontes. "Eu simplesmente não estou
convencido", disse o então ministro alemão do Exterior, Joschka Fischer.
Hoje em dia, aquele
ceticismo é considerado plenamente justificado, já que ficou comprovado que as
tais "provas" eram baseadas em falsificações. O próprio Colin Powell
admitiu o erro e se retirou da política.
Comparações com
Kosovo
Manfred Eisele,
major-general aposentado das Forças Armadas alemãs, rebate que a intervenção no
Iraque não pode ser comparada à situação na Síria. Por outro lado, ele vê
paralelos entre a Síria e a Guerra no Kosovo, em 1999.
Nesta, forças de
origem étnica albanesa lutavam pela independência da província do Kosovo em relação
à Iugoslávia. No decorrer do conflito, surgiram diversos relatos de violações
de direitos humanos e massacres pelo Exército iugoslavo. A Rússia, no entanto,
rejeitou no Conselho de Segurança da ONU uma intervenção da comunidade
internacional. A Otan decidiu em seguida intervir no conflito, através de
ataques aéreos, mesmo sem um mandato da ONU.
"O Conselho de
Segurança avaliou na época a situação no Kosovo, a limpeza étnica, de forma
absolutamente realista", lembra Eisele. "A única coisa que faltava era
uma consequência [concreta] disso, já que Moscou ameaçava com seu veto." A
Otan considerou, então, a própria avaliação das circunstâncias como legitimação
para uma intervenção.
Direito versus
moral
O cientista
político Andreas Bock, da Universidade de Augsburg, vê a situação de forma
parecida. "Em Kosovo, havia claras violações dos direitos humanos capazes
de justificar a intervenção", ressalta. Mesmo que do ponto de vista
formal-jurídico o ataque infringisse o direito internacional, havia uma
obrigação moral para se agir.
No entanto, o
precedente para uma intervenção por razões humanitárias sem um mandato da ONU
já se dera pela primeira vez em 1990, quando, sob a liderança da Nigéria,
tropas da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental interferiram na
guerra civil na Libéria.
"A opinião
pública mundial não se interessou tanto pelo fato na época porque se tratava de
um lugar qualquer na África", observa Eisele, mas a situação era
comparável à do Kosovo.
Novas abordagens
Desde 2001 circula
o conceito de "responsabilidade de proteger" (Responsibility to
Protect ou "R2P"), permitindo à comunidade mundial reagir a tais
situações sem ser impedida pelo veto de um dos cinco membros permanentes do
Conselho de Segurança da ONU.
O conceito,
proposto pelo governo canadense e desenvolvido por uma comissão de
especialistas em direito internacional, prevê a suspensão do princípio de não
ingerência em assuntos internos de um país quando ocorram graves violações dos
direitos humanos.
O R2P não é um
conceito que faça formalmente parte no direito internacional. Entretanto, no
mandato da ONU para intervenção na Líbia em 2011, possibilitado pela abstenção
da China e da Rússia, ele foi citado explicitamente no texto da resolução.
Embora não haja um
mandato do gênero para a Síria, é possível que americanos e britânicos evoquem
a "responsabilidade de proteger" para justificar uma intervenção. A
longo prazo, o R2P pode vir a entrar no direito internacional consuetudinário –
ou seja, aquele consagrado pelo costume –, criando, assim, uma nova legitimidade
legal.
Autoria: Marcus
Lütticke (md) – Edição: Augusto Valente
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