quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O IRÃO PODE SER A MAIS REFINADA HERANÇA DE OBAMA

 

Melkulangara Bhadrakumar [*]
 
O presidente Barack Obama está a estabelecer um novo precedente na história da América como potência imperialista.

Ele está quase a desculpar-se antes de ordenar um ataque militar contra um país soberano com o qual os Estados Unidos não estão em guerra e que não ofendeu nem remotamente interesses e preocupações vitais da América.

A administração Obama publicita antecipadamente que os EUA farão um ataque militar "limitado" à Síria. Desejou mesmo informar previamente quando se pode esperar o referido ataque – mais provavelmente na quinta-feira. Quem poderia por em dúvida que Obama é um estadista humano e respeitoso?

Por ataque "limitado", Obama quer dizer que não atacará directamente paióis de armas químicas mas apenas os seus "sistemas de entrega", o que significa a Força Aérea Síria e as unidades do Exército capazes de efectuar um ataque com a arma química. Na verdade, os que estiverem no comando das forças armadas do país, e portanto nos sistemas de "comando e controle" das forças armadas sírias, também serão alvejados.

Em suma, o plano por trás do ataque "limitado" é degradar as forças armadas sírias. O objectivo político é claro. A administração Obama insiste em que não se trata de uma "mudança de regime". O que isso significa é que os EUA e seus aliados teriam esperança de que, ao ficarem sob a imensa pressão da morte e da destruição, as forças armadas sírias possam finalmente começar a questionar a qualidade da liderança do presidente Bashar Al-Assad, o que, por sua vez, podia levar a um golpe contra ele que não será uma "mudança de regime" e ainda assim uma "mudança de regime" suficiente.

A experiência do Iraque ensinou os EUA acerca da importância crucial de manter intacta tanto quanto possível as estruturas e instituições do estado – leia-se, as forças armadas, o establishment de segurança e a burocracia – num país mesmo quando o seu regime muda de mãos de acordo com a vontade americana.

O risco envolvido é grande porque, implícita a esta situação está tanto aquilo que "se sabe que se sabe" como o que "o que não se sabe e é desconhecido", como advertiu certa vez o antigo secretário da Defesa Donald Rumsfeld. Para citar a declaração à imprensa de Rumsfeld em Fevereiro de 2002: "Há saberes conhecidos; há coisas que sabemos que sabemos. Há incógnitas conhecidas, isto é, há coisas que agora sabemos que não sabemos. Mas também existem incógnitas desconhecidas – há coisas que não sabemos que não sabemos".

Rumsfeld falava então no contexto do Iraque, onde o seu prognóstico era que os principais perigos da confrontação vinham das "incógnitas desconhecidas", que eram ameaças de Saddam, as quais eram completamente imprevisíveis.

Isto é suficiente para dizer que está muito longe de ser claro se a administração Obama terá êxito em alcançar seu objectivo, porque só "o que é sabidamente conhecido" na Síria é que é substancial. Mas o que está claro num sentido muito mais vasto e profundo é o seguinte.

Primeiro: este movimento para atacar a Síria decorre de um plano mestre que os EUA (e a NATO) pretenderam desde o princípio que não existia. A arte da dissimulação foi aperfeiçoada ao ponto supremo. Os EUA fizeram uma viragem abrupta em relação ao caminho que conduzia a Genebra 2 sem se incomodarem sequer a explicar porque, enquanto unilateralmente concluíam sem qualquer evidência concreta que o governo sírio deveria ser considerado como responsável pelos mais recentes ataques com armas químicas perto de Damasco.

Segundo: quando os tempos são difíceis, os EUA unem seus aliados e formam uma "coligação de vontades". A desordem que terá havido entre por um lado os EUA e por outro seus aliados do Golfo Pérsico (e Israel) sobre a mudança de regime no Egipto afinal de contas foi apenas uma pequena altercação entre vendedores num mercado de peixe. Quando surge a necessidade e chega o momento, eles infalivelmente movem-se juntos como uma alcateia de lobos.

Terceiro: os EUA interpretam unilateralmente o direito internacional e não tem estados de alma quanto a lançar ataques militares sem um mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Se bem que praticando uma democracia, a qual esposa os valores da democracia "inclusiva", as administrações estado-unidenses actuam sem considerar a opinião pública interna. Segundo inquéritos de opinião nos EUA, nem mesmo dez por cento do povo americano quer que o seu país seja envolvido por qualquer meio na guerra civil da Síria.

Quarto: Obama tem estado a lançar poeira nos olhos da opinião pública mundial ao criar a impressão de que não haverá mais "Afeganistões" e "Iraques" e que ainda cambaleia de sofrimento quando mais um saco de cadáver chega da guerra afegã e tem de assinar a carta de condolências à família enlutada. A invasão estado-unidense do Iraque resultou na morte de centenas de milhares de civis inocentes. Mas isso não deixa nenhuma cicatriz na sensibilidade de Obama.

Contudo, a mais profunda lição resultante de tudo isto desde quando os EUA começaram a contagem decrescente do ataque à Síria está alhures. Por que a Síria, por que não a Coreia do Norte?

A resposta é clara. Como os analistas militares da CNN se esforçam por explicar, isto vai ser uma operação militar que não incorre em riscos de baixas estado-unidenses. O ataque à Síria será encenado a partir do mar azul com mísseis de cruzeiro – nem mesmo aviões tripulados por pilotos dos EUA por temor de que sejam abatidos.

Os analistas americanos explicam que as forças armadas sírias já estão super-tensas após dois anos de combate aos rebeldes por todo o país. Eles assinalam que a Síria nem mesmo pôde retaliar contra repetidos ataques aéreos israelenses – algo impensável há apenas um par de anos.

Em suma, a Síria não tem poder dissuasor. É aqui que Kim Il-Sung e Kim Jong-il demonstraram ser líderes visionários. Eles deixaram como herança à actual liderança de Kim Jong-un em Piongiang um poder dissuasor que fará a administração Obama pensar não duas vezes mas várias vezes antes de lançar um ataque militar contra a Coreia do Norte. É exactamente aqui que o pai de Bashar parece ter vacilado.

Agora, isto para o Irão torna-se uma peça dramatúrgica com uma moral. Naturalmente, o regime iraniano respeita com muita seriedade os decretos islâmicos (
fatwas ) transmitidos pelo seu Líder Espiritual e Supremo Líder no sentido de não iniciar um programa de armas nucleares. Mas, será sábio assim fazer?

Afinal de contas, temos de estar vivos antes de podermos pensar na observância de decretos islâmicos – mesmo os persas. A questão é: o iminente ataque dos EUA à Síria deveria ser uma campainha de despertador para o regime iraniano – alertando-a para a luta existencial que está pela frente.

Como poderá Teerão considerar seriamente a palavra de Obama? Só na semana passada emergiu oficialmente dos materiais de arquivo dos EUA que o golpe de 1953 contra Mohamed Mossadeq foi uma operação da CIA; e que os horrendos ataques com armas químicas das forças de Saddam Hussein foram efectuados com dados cruciais de inteligência provenientes da CIA.

Alguma coisa realmente mudou sob Obama? A liderança iraniana precisa ponderar calmamente e colectivamente.

Seja qual for o resultado do iminente ataque dos EUA à Síria, o qual está destinado a ter trágicas consequências, Teerão deveria tomar uma decisão crucial para salvaguardar-se contra tal agressão. O único meio com que pode fazer isso será tendo o poder dissuasivo que a Coreia do Norte possui, o qual mantém os predadores à distância.

A opinião pública mundial entenderá. Os mansos também têm direito moral a defenderem-se – ainda que estejam longe de herdarem a terra como Deus profetizou. Conceda ser isto a mais refinada herança a ser deixada pelo presidente Obama – um Irão nuclear.
 
Ver também:
 

Sem comentários:

Mais lidas da semana