sábado, 10 de agosto de 2013

PROCESSO KAFKIANO

 

 
Sendo procedimento de rotina, em nada justificando os 18 dias de cativeiro dos dois agentes de autoridade cabo-verdianos, a questão que se coloca terá que ver com os motivos não aparentes, para não dizer escusos, a fazerem despoletar acusações infundamentadas de espionagem dos agentes cabo-verdianos e a arbitrária detenção dos mesmos aquando seu regresso a Cabo Verde, facto que não só preocupou as autoridades cabo-verdianas, mas revoltou a opinião pública cabo-verdiana e guineense, que vira no acto uma desesperada tentativa política e extrajudicial de mostrar o «descontentamento» de certos ciclos do poder em Bissau em relação ao alinhamento de Cabo Verde no combate internacional contra o tráfico da droga e, também é bom dizê-lo, face à condenação inequívoca por parte de Cabo Verde do golpe de Estado ocorrido na Guiné-Bissau.
 
Adilson Jesus – A Semana (cv), opinião
 
Estando já libertos e em terra firme e segura de Cabo Verde os nossos agentes da Polícia Nacional, Júlio Centeio Gomes e Mário Varela Brito, presos em circunstâncias melindrosas na Guiné-Bissau, a sociedade cabo-verdiana respira de alívio após o enorme “stress” provocado por este insólito acontecimento.
 
Importa, antes de mais, expressar regozijo pelo regresso e reconhecimento a todos quantos se empenharam para que a questão se resolvesse a bom termo.
 
De facto, foi com grande satisfação que assistimos à chegada em Cabo Verde dos dois agentes acompanhados pelo Embaixador de Cabo Verde em Dakar, tendo sido recebidos no Aeroporto Nelson Mandela da Cidade da Praia pelo Ministro das Relações Externas, Jorge Borges, pela Ministra da Administração Interna, Marisa Morais, e por numerosos colegas de profissão, para além de uma equipa médica para lhes dar assistência, familiares e amigos.
 
Hoje, depois de um período de recato em termos de comunicação, como é de norma neste tipo de situações, para não prejudicar o desfecho do caso e, portanto, a libertação dos dois agentes, as coisas estão mais claras. Sabe-se dos enormes esforços diplomáticos desenvolvidos pelas autoridades cabo-verdianas a fim de libertar os dois agentes, envolvendo uma rede muito grande de países, organizações internacionais como a ONU, a CEDEAO, a CPLP, de personalidades influentes. Sabe-se do apoio jurídico sem falha dado aos dois agentes, mas também do apoio psicológico e alimentar durante todo o período de cativeiro.
 
Longe da pressão e diante dos resultados do inquérito instaurado, pode-se aferir que os meandros que terão levado ao cativeiro dos agentes da DEF não se sustentam à luz do direito internacional, nem se justificavam à luz das relações (e dos procedimentos instalados) entre as repúblicas da Guiné-Bissau e Cabo Verde.
 
O acompanhamento da cidadã guineense, expatriada pela justiça cabo-verdiana, na sequência do cumprimento de pena por tráfico de droga e para materializar a sentença adicional de expulsão, pelos agentes policiais foi realizado nos termos da legalidade e da regularidade, não havendo no caso em apreço nenhum dado novo e extraordinário que pudessem, em boa-fé, melindrar os Serviços de Informação do Estado da Guiné-Bissau e induzissem a suspeitas de más práticas e irregularidades.
 
De acordo com as regras internacionais e a prática dos serviços, a pessoa foi escoltada até à fronteira do país de destino por dois agentes. E não se registou nada de anómalo, conforme o inquérito instaurado, não por pressão de alguma entidade interna, mas por prática policial inerente à natureza dos incidentes!
 
Por conseguinte, o Tribunal Militar Regional não conseguiu provar os factos sobre os quais os dois agentes eram acusados, nomeadamente crimes contra a Segurança Interna e Externa do Estado. Nessa altura, a Liga Guineense dos Direitos Humanos reagira a exigir a libertação imediata dos policiais cabo-verdianos. É que, conforme a LGDH, o Serviço de Informação e Segurança, não tinha motivo, nem competência legal para os deter, nem requerer a instrução de procedimentos criminais.
 
Diante de tal improcedência «jurídico-militar», estes foram remetidos ao Ministério Público que, segundo Salomé Santos e Franquelim Vieira, advogados contratados pelo Governo cabo-verdiano para defender os polícias, acabou por produzir um despacho no sentido de se arquivar o processo, já que não houve fundamentos para a detenção. As acusações de que tinham sido alvo caíram por terra.
 
Sendo procedimento de rotina, em nada justificando os 18 dias de cativeiro dos dois agentes de autoridade cabo-verdianos, a questão que se coloca terá que ver com os motivos não aparentes, para não dizer escusos, a fazerem despoletar acusações infundamentadas de espionagem dos agentes cabo-verdianos e a arbitrária detenção dos mesmos aquando seu regresso a Cabo Verde, facto que não só preocupou as autoridades cabo-verdianas, mas revoltou a opinião pública cabo-verdiana e guineense, que vira no acto uma desesperada tentativa política e extrajudicial de mostrar o «descontentamento» de certos ciclos do poder em Bissau em relação ao alinhamento de Cabo Verde no combate internacional contra o tráfico da droga e, também é bom dizê-lo, face à condenação inequívoca por parte de Cabo Verde do golpe de Estado ocorrido na Guiné-Bissau.
 
A detenção dos agentes, a sua sujeição a cativeiro e demora na libertação põe a nu o desnorte desses círculos do poder que em desespero veiculavam sucessivas pseudo justificações, à espionagem seguiu-se uma tentativa de envolvimento no tráfico para culminar num absurdo atentado à segurança interna e externa da Guiné-bissau… sem nunca formalizar ou concretizar procurando com isso gerar reacções da mesma estirpe das autoridades cabo-verdianas. Obrigando a um verdadeiro exercício de contenção e paciência.
 
Do lado jurídico, os atropelos foram tantos que revelam ilegalidade da detenção dos agentes. Detenção foi feita por autoridade, os Serviços de Informação e Segurança, que não têm competência para tal. Detenção sem acusação de culpa por mais de 48 horas. Acusação de entrar ilegalmente no país quando os dois agentes são cidadãos da CEDEAO, viajaram com passaporte devidamente identificados como agentes da DEF, tanto assim que não tiveram nenhum problema em passar a fronteira e só vieram a ser presos 4 dias depois quando já estavam no aeroporto aguardando o voo de regresso.
 
Não faltaram, tanto na opinião pública (dos dois países, note-se), como na imprensa internacional, especulações de que a prisão dos agentes cabo-verdianos mais não era do que uma revanche deslocada pelo arrastamento do almirante Bubo na Tchuto, antigo Chefe Estado-Maior da Marinha, da Guiné-Bissau, entre 2003 e 2008, pela Divisão Especial de Operações da Drug Enforcement Agency (DEA), nas águas internacionais e encaminhado, via Cabo Verde, para a prisão nos Estados Unidos.
 
Essa missão secreta montada pelos Estados Unidos que levou à prisão do almirante Bubo Na Tchuto está relacionada com uma outra, realizada em Bogotá na Colômbia, e que permitiu prender dois colombianos – Rafael Antonio Garavito-Garcia e Gustavo Perez-Garcia.
 
Acusados de tráfico de droga, lavagem de capitais e terrorismo, por um Tribunal de Nova Iorque. Por coincidência ou não, a rocambolesca detenção dos agentes cabo-verdianos acontece no dia do começo do julgamento do almirante guineense. Para Michele Leonhart, administradora da DEA, este caso ilustra «as ligações assustadoras entre o tráfico de droga global e o financiamento das redes terroristas». A responsável, citada no mesmo comunicado na página do Departamento de Justiça, refere-se a estes "alegados narcotraficantes" como estando "entre os criminosos mais violentos e mais brutais" do mundo. Sabe-se também que a DEA pretende indiciar, pelos mesmos crimes, o actual Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) António Indjai, o que tem as autoridades guineenses numa enorme pressão político-diplomática e militar.
 
De realçar que, nesse meio tempo, questionado sobre a demora na resolução deste processo, o Primeiro-Ministro, José Maria Neves pedira paciência e serenidade aos cabo-verdianos e, sobretudo, aos familiares dos agentes, adiantando que "há questões que não podem ser resolvidas ao ritmo que desejamos, tendo em conta um conjunto de equívocos que têm de ser removidos". Efectivamente, para além do envio do embaixador de Cabo Verde no Senegal à Guiné-Bissau para dialogar com as autoridades daquele país e de ele próprio se ter reunido com as autoridades guineenses em Abudja, durante a reuniao da CEDEAO, o Governo tinha já no terreno uma equipa de advogados para dar assistencia aos agentes em cativeiro.
 
Diante da libertação dos agentes, o Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, confirmou à imprensa que a libertação dos agentes foi conseguida “num espaço de tempo razoável”, o que revela que todos trabalharam “de forma articulada, sistematizada, pondo acima de tudo o interesse de Estado, da Nação e dos cabo-verdianos”. Salvando as devidas distancias e cautelas, pressentiu-se uma grande convergência nacional em torno da solidariedade em prol da libertação dos agentes, replicando o «mutirão nacional» em torno dos Tubarões Azuis, durante a CAN 2013.
 
Entretanto, não haverá fumo sem fogo. O porta-voz das autoridades guineenses não foi convincente a refutar a tese de retaliação, deitando mãos às «relações históricas e de irmandade que unem os dois povos». Só que por mais recusas, o actual e «transitório» poder em Bissau tem vindo a mostrar insatisfação pela colaboração das autoridades cabo-verdianas na luta contra o tráfico de drogas. Entretanto, os cidadãos cabo-verdianos desconhecem que Cabo Verde tenha serviço de espionagem e esteja interessada em espiar qualquer outro país, na linha do que afirmou o Chefe do Governo Cabo-verdiano.
 
Sobre a necessidade de se debruçar sobre o ocorrido e corrigir «eventuais falhas», não parece ser a questão, embora os procedimentos, sobretudo quando geram incidentes, com ou não culpados, carecem sempre espaços de melhorias. Outrossim, os procedimentos não devem ser estanques, nem rígidos, mormente diante das novas complexidades do mundo global e da situação que se vive na Guiné-Bissau, em particular, impondo a todos especiais para além das práticas rotineiras.
 
Todavia, uma eventual tentativa de sondar, como agulha no palheiro, algo que possa manchar o criterioso cumprimento do dever dos agentes policiais e da Polícia Nacional, não teria respaldo diante do facto de ter ficado claro de que lado não estava a razão.
 
Não houve comunicação às autoridades guineenses? Quem o garante? Entrementes, a lei não impõe essa comunicação. As regras da ICAO, e nos termos dos regulamentos da Agência da Aviação Civil, foram observadas e os procedimentos de chegada foram legalmente cumpridos na Guiné-Bissau. A pessoa expatriada encontra-se desaparecida? Esta foi mais uma falsidade lançada para tentar justificar o injustificável.
 
Como interpretar então este caso que criou alguma apreensão entre dois países e povos irmãos, com uma história comum mesmo de unidade na luta de libertação do colonialismo e membros da mesma organização regional de desenvolvimento, a CEDEAO, e da comunidade lusófona, a CPLP, para além do facto de milhares de cabo-verdianos viverem na Guiné-Bissau e milhares de guineenses residirem em Cabo Verde?
 

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