Rui Peralta, Luanda
I - A visão
mefistofélica da Irmandade Muçulmana, consubstanciada num IV Califado, a ser
iniciado em África, com sede no Egipto, estendendo-se pelo Magrebe e por toda a
região a Norte do Sahara, caiu por terra, como os anjos que foram expulsos do
céu. A falácia do Califado seria uma armadilha para o continente africano, se
pensarmos que por detrás dele se encontram as monarquias árabes, depositários fiéis
dos interesses ocidentais, que converteram a Península Arábica e grande parte
do Golfo na maior concentração militar atlantista fora dos USA. O IV Califado
não seria mais do que a subordinação do Norte do continente africano aos
interesses ocidentais, disseminados nas novas correntes políticas conservadoras
das elites islâmicas.
Este é um factor
que a União Africana não compreendeu e que lança o Egipto nos braços das
tempestivas dinâmicas do mundo árabe. O Egipto estabelece a ponte mais sólida
entre África e o Mundo Árabe, melhor é um país africano que estabelece uma
ligação cultural histórica com a colonização árabe e com a penetração islâmica
no continente. As elites egípcias consideram-se, refinadamente, árabes e para as
elites do resto do continente - desejosas de manterem o predomínio cultural das
suas regiões de origem - o Egipto é um país árabe, esquecendo-se do papel de
Nasser na construção da Unidade Africana, preferindo salientar a opção
nasserista pelo pan-arabismo, manifestada durante os tempos turbulentos da
Republica Árabe Unida.
O ex-presidente
Morsi empapou-se nesta contradição e assumiu a realidade do Egipto como se este
fosse o epicentro do mundo árabe, para gaudio dos Ocidentais. O Egipto
mergulhou, uma vez mais, no furação que assola a Ásia Ocidental (o
Médio-Oriente, para usar uma expressão mais comum). Estreitou os laços com o
Ocidente e virou as costas ao continente africano. Ao nível interno Morsi e a
Irmandade Muçulmana tentaram o reforço da influência religiosa islâmica na
plural e mosaica sociedade egípcia, o que produziu nefastos resultados,
associados ao peso da inflação e á perda de qualidade de vida, que caracterizou
a vida económica egípcia durante a sua administração.
O Egipto é uma
sociedade culturalmente diversificada e plural, construída por sedimentação. Ao
não respeitar essa diversificação e ao posicionar o Egipto no epicentro árabe,
a IM empurrou o país para um caminho perigoso, que a continuar, representaria
uma via sem retorno. A Arábia Saudita e USA, apesar dos seus apoios a Morsi,
concluíram que este já não estava em condições de responder aos seus interesses
- embora para a persecução dos objectivos da OTAN e dos seus aliados árabes, a
IM tenha de ser uma força política relevante – e iniciaram o processo de
desestabilização, cruzando as dinâmicas internas com as dinâmicas externas.
A Arábia Saudita ao
financiar a construção de uma represa de águas na Etiópia, sabia muito bem que
iria privar o Egipto de uma quantidade substancial de água do Nilo para
irrigação. Este é um dos muitos exemplos, aparentemente inocentes, de
desestabilização do Egipto, aproveitando-se das fragilidades políticas do
continente africano e da sua incapacidade em dar respostas conjuntas. A lição líbia
ainda não foi apreendida pelas elites africanas. A queda de Kadhafi começou no
exacto momento em que fez concessões ao Ocidente e em que assinou diversos
acordos que em muitos casos tornaram a Líbia quase como um polícia fronteiriço
do Ocidente (apesar da importância da Líbia no projecto da União Africana e da
sua politica consistente em buscar soluções realistas para o continente).
Através do Egipto a
União Africana poderia assumir um papel preponderante e necessário no panorama
do Médio Oriente, posição fundamental para quebrar a ofensiva que Ocidental contra
Africa. É fundamental, para a elaboração de uma geoestratégia africana, que a política
externa africana funcione em bloco e assuma uma posição de solidariedade activa
para com os palestinianos de Gaza e da Cisjordânia e aumentar a sua influência
na Jordânia, Líbano, Síria, Iraque e Irão A única forma de manter a sua estabilidade
é o envolvimento dos Estados Africanos, em bloco, nas dinâmicas do Médio
Oriente, desempenhando um papel activo e sem ambiguidades. Neste sentido o
Egipto tem, como Estado africano, um papel essencial.
Mas no Egipto não
são apenas as suas planícies que se estendem para o Ocidente. São também as
suas elites que para lá estendem as suas mãos, mesmo que nas mesquitas,
assumindo o papel de fiéis, voltem-se para Meca.
II - Um regresso ao
Islão esplendoroso que dominou, no século VII, vastas áreas da Ásia, África e
da Península Ibérica, é o que pretendem os grupos da extrema-direita islâmica.
O apogeu do Al-Andaluz é apregoado no seculo XXI pelos que consideram impuro o
contacto com a civilização ocidental que alterou as tradições ancestrais. O
Al-Garb (o Ocidente) adulterou as leis islâmicas e as mentes dos fiéis que com
ele tomaram contacto. Esta é a mensagem dos clérigos que apregoam o IV Califado
e o resgate dos valores e que compreende uma larga faixa política do Islão, que
ultrapassa a extrema-direita e se estende pelas correntes mais moderadas (e
aplaudidas pelo Ocidente “democrata-cristão”) da “democracia-islâmica”
O protagonismo
económico político, cultural e religioso do Egipto no seio da comunidade das
nações islâmicas (Umma) é indiscutível para todos os teóricos islâmicos, até
pela grandeza e importância que desempenhou na História da Humanidade, sendo o
maior dos Impérios Africanos e representando um marco no longo processo
civilizacional (os teóricos islâmicos mais fundamentalistas sempre tentaram
relegar para segundo plano os grandes impérios faraónicos, que representavam a
grandeza da civilização africana do Egipto, numa tentativa de abafar eventuais
pretextos de oposição á islamização da sociedade egípcia, desde os inicio deste
processo até aos dias de hoje).
Xiitas, Sunitas e
sofistas, são as expressões maioritárias do Islão no Egipto e com os cristãos
coptas (o cristianismo dominante nesta região), constituem as identidades
religiosas plurais da sociedade egípcia. Em todas estas correntes da expressão religiosa
existem duas tendências predominantes: os liberais, que não atribuem á religião
um papel de Estado e os fundamentalistas, que atribuem á religião um papel de
ideologia do Estado.
No Islão egípcio, o
sufismo, uma corrente mística – acusados de idolatria pelos clérigos
fundamentalistas sunitas e xiitas – conta com 7 milhões de devotos agrupados em
confrarias. Distinguem-se das restantes correntes islâmicas pelo seu
esoterismo, pelo uso dos amuletos e pela peregrinação á tumba dos santos,
transportando consigo as tradições africanas anteriores á islamização desta
região. Os teólogos puristas da Universidade de Al-Azhar (um dos mais
importantes centros intelectuais do mundo islâmico) consideram estas prácticas
dos sufistas como sendo uma heresia, consequência da “corrupção ocidental”,
introduzida no Egipto pela potência coloniais no século XIX.
Propõem os doutos
teólogos da Universidade de Al-Azhar que os fieis devem cumprir integralmente
os mandamentos corânicos, em especial as cinco orações diárias, método mais
eficaz para os fieis se protegerem das “tentações de um mundo degenerado pela
luxúria, pela fornicação e pela avareza”. A esta Universidade pertenceu um dos
mais importantes pensadores islâmicos do seculo XX, Sayyid Qutb (1906-1966),
que nos seus inúmeros escritos denunciou “a podridão do Al-Garb”. Qutb
desenvolveu as suas teses após uma visita aos USA, onde permaneceu de 1948 a
1950, enviado pelo governo egípcio (uma monarquia, na época), para estudar o
sistema de ensino norte-americano. Após o seu regresso ao Egipto, Qutb
qualifica os USA de “império do paganismo e da heresia” e acusa o Ocidente de
ser a causa de todos os males. Considera que os muçulmanos caíram na tentação
do Ocidente e combate o liberalismo, preconizando a predominância da sharia, a
lei islâmica.
Em finais dos anos
50 Qutb adere á Irmandade Muçulmana, fundada nos anos 30 por Hassan al-Banna,
que preconizava um “Islão social” e acusava os “hereges ocidentais” em
discursos virulentos e que acabou por ser assassinado pelos serviços secretos
egípcios em 1949, depois de ter estado envolvido num atentado ao
primeiro-ministro egípcio e de ter sido acusado de conspiração contra o rei. Com
a morte de al-Banna, a IM envereda por outras vias mas Qutba continua a combater
nas suas obras, “os responsáveis pela degradação e os cruzados”, sendo
enforcado em 1966, depois de ter sido acusado de participar numa conspiração
contra Nasser. A obra de Qutb teve uma grande influência entre os fundadores da
Al-Qaeda. O actual líder desta organização, o egípcio Ahiman al-Zawahiri, foi
seu aluno na Universidade de Al-Azhar. Anwar al-Awlaki, iemenita-americano,
líder da Al-Qaeda na península arábica (morto em 2011, em Sana, ao ser
detectado por um drone norte-americano), foi outro dos seus discípulos.
São, pois, tíbios e
confusos os caminhos e as tensões das diversas correntes islâmicas na sociedade
egípcia. Entre o esoterismo dos sufistas e o conservadorismo fascizante dos
teólogos fundamentalistas, existe uma miríade de correntes, xiitas e sunitas,
que preconizam desde a maior abertura possível ao Ocidente, até ao IV Califado
e que estabelecem as mais diversas alianças com as forças políticas laicas, á
esquerda e á direita do espectro politico egípcio.
A IM mergulha
nestas tensões e nela espelham-se todas estas contradições. O ex-presidente
Morsi poderia ser um liberal (no Egipto as aparência iludem, mais do que em
qualquer outro lugar), mas no aparelho político da IM muitos esperavam o
momento certo para impor a sua obra “regeneradora”. O Ocidente acabou por
aceitar de bom grado a IM e a ideia de um IV Califado, não está fora dos
preceitos do Ocidente, desde que o Egipto cumpra com as usas funções: salvaguardar
a rectaguarda do Estado de Israel, participar no cerco á Palestina e ter um papel
activo na desestabilização do continente africano. Seja com os teólogos, com os
prémios nobel (El-Baradei) ou com os militares.
IV - O Egipto não
estalou, como previam alguns “profetas da eminencia catastrófica”. Bem pelo
contrário. Os que previam o estilhaçar, bem como os que se deixaram arrastar
pela denominada “Revolução Primaveril” cometeram erros de análise. O primeiro
erro foi considerar o Egipto um país árabe. Não é! É um país africano! E por
ser um país africano as características da esquerda e da direita politica
egípcia não são as mesmas da esquerda e da direita árabe. Não é a Turquia, nem
a Síria, nem o Iraque, nem o Líbano, nem a Palestina…É o Egipto! É uma
realidade africana e não uma realidade árabe.
Não entendem por
isso, os analistas ocidentais e árabes o ambiente político, social e cultural
egípcio. Não o conseguem inserir na ambiência africana e por isso as suas
leituras são sistematicamente erradas. Tanto os sectores da esquerda como os da
direita. E cometem o mesmo erro no que respeita á Líbia, á Tunísia e á Argélia.
Talvez algum pudor atlantista os leve a hesitar quando chegam a Marrocos e á Mauritânia
e se abstenham de falar sobre a questão quando se referem á Republica Árabe
Democrática do Sahara. Desconhecem a realidade árabe africana, que se estende
por todo o Norte do continente, muito para além do Magrebe e atinge em cheio o
Centro, tanto pela costa, como pela contracosta como no interior. E desconhecem
a diversidade dos árabes africanos, misturando-os a todos, árabes, mouros,
berberes e tuaregues. É um velho problema, de milhares de anos, feito de migrações,
de caravanas, de Impérios dos dois lados do Canal) e de colonização.
São duas realidades
complementares mas antagónicas: a Península árabe versus a realidade norte-africana.
A Peninsular é uma realidade onde se cruzam todos os componentes, todos os
produtos do mosaico cultural da Ásia Ocidental. A outra, a norte-africana, é
uma realidade onde se cruzam as derivações sincréticas do continente africano,
numa região onde o Imperio Romano e as hordas árabes, incendiadas pelas
palavras do Profeta, se entrecruzam com as múltiplas realidades comunitárias e
com os múltiplos Impérios africanos da região.
Mas não são apenas
os Ocidentais e o Mundo árabe peninsular, que comete este erro de análise. São
as próprias elites africanas, que não conseguem discernir este fenómeno e que
tomam a atitude típica do avestruz: enterram a cabeça. As da região Central têm
uma percepção mais adequada desta realidade, uma vez que esta a circunda. Mas
muitas vezes fazem-se despercebidas. Árabes, mouros, berberes e tuaregues,
aparecem assim aos olhos destas elites, por motivos de interesse, como “estrangeiros”.
Se forem elites cristianizadas, esquecem-se que elas próprias são um produto da
ideologia colonial, neste caso da ideologia colonial europeia (tenha sido pelo
Imperio Romano, ou pelo processo colonial europeu iniciado no século XV) e
olham, condescendentes, para os “estrangeiros”. Quanto às elites
norte-africanas, tanto as islamizadas no continente, como as islâmicas que migraram
para o continente, assumem a sua identidade árabe, fugindo desta forma á
realidade colonial por elas produzida, ou ao facto de serem produtos dessa
colonização. Não escondem a cabeça na areia, nem assobiam distraídas para o ar,
mas comportam-se como cobras venenosas, para melhor imporem o seu domínio.
São realidades
culturais complexas e uma longa História de conflitualidade que marcou
profundamente grande parte do continente. São duas realidades atravessadas pela
ilusão identitária, própria dos que são e não querem ser e dos que já eram e
não querem que os outros sejam. É um fenómeno que é observável também em
relação aos africanos brancos e mestiços e às suas relações com a maioria
negra. São complexas dinâmicas culturais, que nem mesmo as árduas batalhas da
libertação nacional colmataram, mesmo nos casos em que todos se encontravam do
mesmo lado da trincheira.
É por isso que os
sorumbáticos analistas, ocidentais, árabes e africanos, dão o dito por não dito
e apenas encontram uma similaridade que pode servir de fundo para o seu
palavreado sobre o Egipto: a Argélia de 1992. Quando a Frente Islâmica de
Salvação (FIS) ganhou as eleições argelinas, na primeira volta e ia revalidar o
seu triunfo na segunda, a Argélia assistiu a um golpe militar, aplaudido e
apoiado pelos que não votaram na FIS, desde a União Geral dos Trabalhadores (a
central sindical argelina) até às confederações patronais, passando pela FLN, o
Partido da Vanguarda Socialista e pela Coligação para a Cultura e Democracia,
para além de outras forças á direita e á esquerda da FLN.
Alguns destes
analistas, principalmente os ocidentais e os africanos – os primeiros porque já
assumiram planamente o seu papel de propagandistas e os segundos naquela fase
de aprendizagem em que ainda é legitimo usar a palavra do outro sem ser acusado
de plágio – alegam que os lideres tanto da FIS, na Argélia, como da IM, no
Egipto, foram eleitos democraticamente, logo o seu poder era legitimo (o mesmo
discurso insalubre e os mesmos argumentos de carteirista, são utilizados pela
UA), esquecendo-se, estes preciosos guardiães dos valores da democracia
representativa (quantas voltas na tumba não dão Montesquieu e Tocqueville ao
verem as suas observações a serem adulteradas por este lúmpen
pseudointelectual), de que Adolfo Hitler e o Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores da Alemanha, também venceram as eleições e como não encontraram,
na época, nenhuma força que apostasse no “coup d`état”, a Europa primeiro e o
resto do mundo logo a seguir mergulharam num ritual frenético de morte e
holocausto.
A questão central é
que os governos saídos da “primavera no norte de África”, não vingaram, pela
sua falta de consensualidade. Na Tunísia o governo da Enhada não convence os trabalhadores
e a União Geral dos Trabalhadores Tunisinos (umas das mais combativas e
históricas centrais sindicais do continente africano) apresentou um ultimato ao
governo tunisino, abrindo a porte a “diversas soluções, eleitorais ou não”.
Também no Egipto a catastrófica política económica do governo da IM, levou a
que as três Confederações Sindicais apresentassem, nos protestos, os seus
ultimatos, que conduziram ao apoio do golpe militar.
A Federação Egípcia
dos Sindicatos Independentes (cujo secretário-geral é o actual ministro do
Trabalho) a Federação Sindical do Egipto e o maioritário Congresso Operário do
Egipto levaram os seus associados para as ruas e concordaram com o plano do
golpe militar. As “democracias islâmicas” no norte de África, desde a primeira
tentativa, na Argélia, até às saídas dos “ares primaveris” do Egipto e da Tunísia,
conduzem, na sua ansia de agradar ao Ocidente, a políticas económicas
insuportáveis para os trabalhadores. Quanto á Líbia, não resta mais do que um
conjunto de destroços e estilhaços, onde imperam os bandos armados e os gangues.
É para esta
situação que a UA deve olhar e extrair as lições da sua política de avestruz. O
que o Ocidente e seus aliados do Golfo pretendem fazer no continente africano é
exactamente o que fizeram com a Líbia, o que estão a fazer com o Mali e com a
RDC e o que já fizeram noutros tempos com a Somália. Deste país e da Líbia,
restam destroços. Da RDC e do Mali restam mantas de retalhos. E no resto do
continente reina um misto de bajulação e de incerteza, mesmo quando o discurso
nacionalista anda pela boca dos dirigentes (o maior exemplo é o de Mugabe, no
Zimbabwe, o tal que já roubou todos e que agora só lhe resta roubar a si
próprio, para depois entregar, de bandeja e a preço de igreja, o produto do
roubo ás corporações ocidentais). Os Estados Africanos deparam-se com uma
situação confusa ao nível externo e com uma situação de mudanças estruturais,
ao nível interno, que se não forem devidamente analisadas e se não forem, as
opções a tomar, devidamente ponderadas e assumidas, arrastará o continente para
um furacão no qual o naufrágio será inevitável.
As palavras
escritas pelo escritor senegalês Birago Diop, se forem aplicadas á questão da
unidade africana, descrevem-na de forma sublime: “A cabra que não gritou,
quando a degolaram, berrou quando a esfolavam”. Será que pelo menos, quando a
digerirem, se revelará indigesta?
Fontes
Sem comentários:
Enviar um comentário