quinta-feira, 3 de outubro de 2013

José Ponte. "É imoral um médico custar meio milhão a formar e no fim ir para o privado"

 

Marta F. Reis – jornal i
 
Médico nos últimos quatro anos à frente do curso de Medicina do Algarve defende que é preciso avaliar vocações
 
Aos 70 anos, José Ponte cessou em Julho funções como director do curso de Medicina da Universidade do Algarve, o único do país para alunos já licenciados na área da saúde. Regressa a Inglaterra, onde fez grande parte da carreira como médico anestesiologista. Não tem dúvidas de que os primeiros finalistas, que terminaram este ano o curso, são diferentes. Sobretudo numa ética em prol do doente que diz estar em falta no SNS e não se ensina.
 
Este seu regresso a Portugal, por quatro anos, mudou a sua ideia do SNS?
 
Um pouco. A minha impressão é e continua a ser que o SNS é muito bom. O problema é que, sendo uma instituição relativamente jovem, restam problemas dos tempos antigos e há um salto essencial a dar: uma maior concentração na segurança e na atenção ao doente. Foi com esse espírito que formámos a escola algarvia. Tinha uma impressão, até através dos internos que foram trabalhar comigo em Londres, que tinha de se começar por aí, por transmitir uma ética profissional diferente, fazer a mudança de baixo para cima.
 
O que é que notava neles?
 
Tem a ver com a atitude para com o doente, de o pôr sempre em primeiro lugar, que nem todos traziam da escola nem é regra no SNS. Se fizer uma pequena operação, por exemplo, ninguém lhe diz as chances que tem de morrer, de ter uma complicação mesmo que rara. O consentimento informado não está generalizado. Em Portugal temos excelentes médicos do ponto de vista técnico, mas não significa que sejam excelentes médicos. No Hospital de Faro, os nossos alunos mesmo em formação são conhecidos por se apresentarem ao doente. Penso que fizemos diferença nesse sentido.
 
O Algarve é das zonas mais carenciadas em médicos. Os seus finalistas querem ficar no Sul?
 
Os nossos alunos reflectem a realidade do país, mas 60% quer ficar lá por baixo, o que é uma pequena vitória. Outra vitória é termos uma percentagem semelhante, não sendo os mesmos, que quer seguir uma carreira de medicina geral e familiar, que é onde precisamos de mais médicos bons e onde há mais carências.
 
Para fixar médicos na periferia são precisos incentivos financeiros?
 
Penso que em parte sim, também porque muitas pessoas escolhem Medicina por motivos financeiros. Nesse sentido, o curso do Algarve também foi inovador. Os estudantes da nossa faculdade já são escolhidos com base também num perfil psicológico, através do qual procuramos perceber se existem qualidades básicas para a pessoa vir a ser um bom médico, uma vocação.
 
Alguma vez excluiu um candidato por ausência dessas qualidades?
 
Alguns candidatos têm currículos brilhantes em termos académicos mas são rejeitados. Ao avaliar um candidato temos de pensar se o queremos como futuro colega ou como nosso médico e procurámos aprofundar isso através de mini-entrevistas. Além de especialistas, chamamos leigos ou actores para simular situações que ajudem a revelar aspectos escondidos da personalidade. Este ano, numa das provas, pedimos a um actor que se fizesse passar por doente que não falava português ou inglês, com sintomas de diarreia. Foi claro quem podia comunicar e resolver a situação e quem não podia.
 
Não é possível adquirir essas competências ao longo da carreira?
 
Minimamente. Há muitas características que são definidas aos oito ou nove anos, as pessoas quando muito disfarçam melhor ou pior. Dar aulas de Ética, boas maneiras, não chega.
 
Não acredita no ensino da Ética?
 
A ética demonstra-se. Pode ser útil falar--se a um estudante de Medicina dos comportamentos correctos perante algumas situações, mas a atitude está na pessoa.
 
Os vossos candidatos no Algarve são pessoas mais velhas, já com um curso. Seria possível fazer essa triagem em jovens de 18 anos e a milhares de candidatos?
 
É possível mas não é tão fácil. Entre os directores das faculdades de Medicina há contudo abertura para pressionar para se fazer este perfil psicológico, até pela percepção de que há muitos estudantes que ao longo do curso se vão abaixo. Sobretudo raparigas, que na pressão de ter notas muito altas perdem as competências sociais. Juntando isso a sair de casas dos pais, chegam a precisar de apoio psicológico. A pressão das notas tornou-se um mecanismo perverso. Mas o problema não se põe só ao nível pré- -graduado. O exame de acesso a especialidade é completamente estúpido. Costumo dizer que entram com saúde mental para as faculdades mas saem ligeiramente doentes. Pior: saem imbuídos do espírito de ser privilegiados, de serem la crème de la crème da sociedade. Alguns professores ainda impingem isso.
 
Agora com os primeiros médicos na rua, qual é o seu balanço do curso?
 
Missão cumprida em termos de evolução, mas saio zangado. Fui convidado pelo antigo reitor, uma pessoa inspirada com quem me dei sempre bem. Depois quando mudou o reitor, inicialmente as coisas correram bem mas a partir do ano passado, depois de passarmos a avaliação da A3E, agência de acreditação de cursos, houve uma mudança de personalidade. Neste momento vejo-o como o maior risco para continuar o curso, também por influência do antigo bastonário Pedro Nunes, que agora está à frente do Centro Hospitalar do Algarve e sempre se manifestou de forma agressiva contra o projecto e por um ensino mais tradicional. Contra os pareceres, aumentou o numerus clausus de 32 para 48 alunos. Parece-me difícil manter a qualidade e sobretudo põe-se em causa um projecto importante para o país e para a universidade, num sentido de mudar o modo de formar médicos. Representou um salto quântico, seja nas admissões com atenção ao perfil psicológico, seja no enfoque do curso, não em medicina hospitalar mas nos cuidados primários.
 
Porque é que isso é importante?
 
Se a tendência é os hospitais terem cada vez menos camas, terão doentes cada vez mais doentes nos cuidados intermédios e intensivos. Não são por isso o melhor sítio para um jovem aprender medicina. O material clínico e a oportunidade de aprender está nos cuidados primários. Foi isso que quisemos incentivar, para resolver até a falta de médicos. Hoje as faculdades ainda estão baseadas na medicina hospitalar, não é surpresa que depois todos queiram essas especialidades.
 
Fala-se dos cuidados primários como porta de entrada no SNS. Porque é que tem sido tão difícil alterar este paradigma?
 
Quando o primeiro-ministro está doente, onde é que vai? Ao especialista que trabalha no hospital. Os políticos vão directamente ao especialista, foram levados a não acreditar no generalista. É natural que, até por esse contacto, sejam mais influenciados pelos argumentos da medicina hospitalar. O argumento da mudança tem de ser pela diferença no tratamento e pelo que podemos ganhar: o médico hospitalar vê a falência hepática, o médico de família vê o sr. Manuel. É isso que a nossa escola ensina: a medicina baseada no doente e não na doença.
 
Porque é que se ganha mais com essa abordagem?
 
Só 7% das pessoas que procuram cuidados de saúde precisam do hospital, de cuidados urgentes que são também os mais caros. É importante investir no restante, que procura perceber o contexto do doente, para reduzir o número de pessoas que precisam de ir para cuidados agudos, quer pela prevenção quer pela promoção de estilos de vida saudáveis. Com esta abordagem centrada no dente evitam-se muitas vezes investigações caras com recurso a muitos exames e que se resolveriam falando com o doente. Para isso acontecer é preciso saber comunicar com os doentes e informá- -los. Os doentes ficam contentes com muitos exames, muitas vezes desnecessários e com riscos que desconhecem. Fazer uma TAC ao tórax é o equivalente a mais de cem raios X. A uma pessoa em idade reprodutiva pode apanhar-lhe os ovários.
 
Em relação ao recurso a muitos exames, o facto de os médicos se quererem proteger de processos não começa a pesar?
 
Penso que ainda temos um problema de justiça, ou má justiça, nesta área. Tivemos o caso de uma mulher que fez uma operação ginecológica, esqueceram-se de uma compressa, foi operada mais oito vezes, demorou-se nove anos a apurar responsabilidades e deram-lhe uma indemnização de 18 mil euros e alguns cêntimos. Não há a tradição de sentenças dissuasoras da má prática clínica. Às vezes parece que os juízes estão virados para perdoar os médicos. Dezoito mil euros entra no ruído normal do orçamento de um hospital, não dói nada. Se fossem 18 milhões, o hospital tomava mais medidas para não voltar a acontecer. Como esse incentivo não está lá, não acontece nada.
 
A sustentabilidade do SNS tem estado na ordem do dia. Que propõe?
 
Um SNS sustentável é aquele em que não se desperdiça tanto, por exemplo nesses exames desnecessários, que aposta mais na medicina dos cuidados primários, melhora a prevenção.
 
Isso é o plano dos últimos governos.
 
Mas depois têm de lidar com os interesses instituídos. Se temos um sistema em que tradicionalmente, mesmo que isto esteja a mudar, os melhores médicos vão para especialidades que ganham mais e estas são as hospitalares, é preciso resolvê-lo. A solução: melhorar dramaticamente os salários dos médicos de família. É algo que o governo poderia fazer. Podem gastar mais agora mas vão poupar.
 
Em matéria de formação, como lançava a mudança?
 
O Ministério da Educação devia ouvir mais os directores das faculdades de Medicina. Temos reunido trimestralmente mas não temos uma representação formal. Tem de haver uma ligação mais articulada entre o sistema universitário e o sistema de saúde. Tirava os cursos dos hospitais, fazia uma formação inicial em Ciências da Saúde ou Biomedicina e depois fazia um treino de Medicina no SNS, como existe na formação pós-graduada numa especialidade.
 
Os médicos ficariam vinculados ao SNS?
 
Porque não? Formar um médico custa 100 mil euros. Depois a formação pós-graduada são mais 300 mil a 400 mil euros. Ao fim dos dez anos de formação dá quase meio milhão. Se quando se acaba uma especialidade em oftalmologia ou dermatologia e a pessoa vai para o privado ou está a meio gás, para que foi o investimento? O contribuinte pagou meio milhão e eu faço, perdoe a expressão, um manguito ao contribuinte e vou para o privado. Acho isto profundamente imoral.
 
Mas como é que vinculava os médicos?
 
Hoje já temos pessoas que vão fazer a especialidade através da Marinha, mas têm de lá ficar pelo menos seis anos. Façam-se as contas e chega-se a um cálculo de quanto tempo é preciso para retribuir o investimento avultado que o Estado fez. Mas vê isso debatido? Não.
 
Ser contracorrente tem-lhe custado alguma coisa?
 
Disse a um jornal que as cirurgias no Algarve estavam a piorar. Chamaram-me a atenção, mas porque é que eu vou esconder aquilo que vejo? Se vejo coisas mal, digo. Se vejo uma mortalidade acima do que é concebível, denuncio. Precisamos de auditorias sérias. Não sabemos no nosso país a mortalidade em cirurgia por serviço ou especificamente em anestesia. Os próprios colégios da especialidade deviam pensar a formação de modo a responder a essas necessidades ou lacunas concretas.
 
Isso acontece em Inglaterra?
 
Se hoje morrer um doente no Norte de Inglaterra por causa da anestesia, vou ter um email do colégio a dizer que este instrumento ou este pormenor da formação falhou. Cá, além de falta de informação, não existe um mecanismo para impedir as pessoas de praticar enquanto não se esclarece o que se passou. Lá há uma queixa e há uma suspensão preventiva. O médico vai para casa com salário mas previne--se que repita o erro.
 
Há ideia que temos um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Concorda?
 
Isso é baseado em dois ou três indicadores, como a mortalidade infantil e a longevidade. Costumo dar o exemplo de um amigo que vive na Nigéria e me diz que Lagos é a cidade mais segura para andar de carro, não há acidentes. Não há acidentes porque não se registam. Eu não digo que é mau, Espanha não está mais avançado e Itália é pior.
 
Mas não vemos diariamente doentes a queixarem-se ou mortes por negligência.
 
Não se vê mais porque não é mediático e as pessoas não estão sensibilizadas. No Hospital de Faro três doentes receberam transfusões de sangue erradas. Em vez de se avaliar o circuito e identificar lacunas, abriu-se um inquérito. As pessoas perante o inquérito escondem, não se apura nada. É um estado de coisas orwelliano, a realidade não é aquilo que aconteceu, é aquilo que fica escrito. Enquanto isto não mudar não melhoramos. Estou convencido que a mortalidade hospitalar é acima do esperado no Algarve. Muitos dos nossos alunos são enfermeiros, andaram pelo país e todos têm exemplos. É uma enfermidade do sistema na globalidade. Penso que enquanto os colégios da especialidade também estiverem debaixo do chapéu do conselho nacional da Ordem não será possível um maior escrutínio.
 
O que propunha?
 
Em Inglaterra pago quase 3 mil libras por ano por diferentes quotas profissionais. Na Ordem pago 190 euros por ano. Naturalmente, existe uma pilha de processos e não haverá dinheiro que suporte regulação como deve ser. Partia-se a Ordem em três bocados: os colégios, o conselho nacional e a parte disciplinar, com representação de leigos. Mas para mudar tem de haver consenso interno e ir a aprovação da Assembleia da República. Partir a Ordem cá é um acto parlamentar.
 
Desde que voltou ficou mais desiludido com o país?
 
Nunca estive desligado. Sinto que na saúde desde então as coisas não melhoraram muito nem pioraram, mas sentem-se os efeitos da crise. Noutro dia uma senhora da limpeza desmaiou no corredor da escola. Tinha uma pressão arterial quase fora da escala. Não andava a tomar os comprimidos porque não ter "tempo" de ir a farmácia. Podia ter morrido ali.
 
Hoje não sente o apego patriótico de ficar?
 
Saí há muito tempo. Para voltar interrompi a minha carreira lá fora. Foi, nessa medida, um sacrifício pessoal. Sinto que fiz a minha parte. Saio aos 70 anos. Podia ficar mais, mas até em contravenção das normas europeias há discriminação pela idade no Estado.
 
Porque é que foi embora em 68?
 
Fascismo. Participei nos movimentos estudantis, estive preso e depois ninguém nos deu emprego. Tive uma oportunidade da Gulbenkian de fazer um doutoramento lá fora e segui o meu percurso.
 
Essa experiência pesa na visão do estado do país hoje?
 
Quando olho para um país africano, para uma Guiné, penso nas muitas gerações até que se consiga diminuir a corrupção, na tarefa monumental até que se consigam assegurar os direitos fundamentais, acesso à justiça, à educação, à saúde. São mudanças culturais que demoram gerações. Nós avançámos mas temos de continuar a avançar.
 
Relativiza a ameaça da austeridade...
 
Relativizo. O problema tem a ver com um modelo do mundo que começou com Thatcher e Reagan. Há 32 biliões de dólares em offshores. Quem gere esse dinheiro são pessoas cujo objectivo é maximizar o lucro, sem condescendência ou boa vontade. Isto é muito simples: enquanto houver milhões de chineses e indianos a fazer telemóveis e tudo o que usamos por uma fracção do preço e sem direitos, nunca vamos conseguir recuperar. Vivemos num mundo em que não há compaixão e a única forma é erguermo-nos contra isto. Enquanto durou o apartheid não comprava nada da África do Sul. Hoje não compro nada de Israel. A guerra em Angola acabou quando as elites se aperceberam de que ao comprar diamantes estavam a pagá-la. É uma atitude moral que permite afinar as coisas.
 
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