Marta F. Reis –
jornal i
Médico nos últimos
quatro anos à frente do curso de Medicina do Algarve defende que é preciso
avaliar vocações
Aos 70 anos, José
Ponte cessou em Julho funções como director do curso de Medicina da
Universidade do Algarve, o único do país para alunos já licenciados na área da
saúde. Regressa a Inglaterra, onde fez grande parte da carreira como médico
anestesiologista. Não tem dúvidas de que os primeiros finalistas, que
terminaram este ano o curso, são diferentes. Sobretudo numa ética em prol do
doente que diz estar em falta no SNS e não se ensina.
Este seu regresso a
Portugal, por quatro anos, mudou a sua ideia do SNS?
Um pouco. A minha
impressão é e continua a ser que o SNS é muito bom. O problema é que, sendo uma
instituição relativamente jovem, restam problemas dos tempos antigos e há um
salto essencial a dar: uma maior concentração na segurança e na atenção ao doente.
Foi com esse espírito que formámos a escola algarvia. Tinha uma impressão, até
através dos internos que foram trabalhar comigo em Londres, que tinha de se
começar por aí, por transmitir uma ética profissional diferente, fazer a
mudança de baixo para cima.
O que é que notava
neles?
Tem a ver com a
atitude para com o doente, de o pôr sempre em primeiro lugar, que nem todos
traziam da escola nem é regra no SNS. Se fizer uma pequena operação, por
exemplo, ninguém lhe diz as chances que tem de morrer, de ter uma complicação
mesmo que rara. O consentimento informado não está generalizado. Em Portugal
temos excelentes médicos do ponto de vista técnico, mas não significa que sejam
excelentes médicos. No Hospital de Faro, os nossos alunos mesmo em formação são
conhecidos por se apresentarem ao doente. Penso que fizemos diferença nesse
sentido.
O Algarve é das
zonas mais carenciadas em médicos. Os seus finalistas querem ficar no Sul?
Os nossos alunos
reflectem a realidade do país, mas 60% quer ficar lá por baixo, o que é uma
pequena vitória. Outra vitória é termos uma percentagem semelhante, não sendo
os mesmos, que quer seguir uma carreira de medicina geral e familiar, que é
onde precisamos de mais médicos bons e onde há mais carências.
Para fixar médicos
na periferia são precisos incentivos financeiros?
Penso que em parte
sim, também porque muitas pessoas escolhem Medicina por motivos financeiros.
Nesse sentido, o curso do Algarve também foi inovador. Os estudantes da nossa
faculdade já são escolhidos com base também num perfil psicológico, através do
qual procuramos perceber se existem qualidades básicas para a pessoa vir a ser
um bom médico, uma vocação.
Alguma vez excluiu
um candidato por ausência dessas qualidades?
Alguns candidatos
têm currículos brilhantes em termos académicos mas são rejeitados. Ao avaliar
um candidato temos de pensar se o queremos como futuro colega ou como nosso
médico e procurámos aprofundar isso através de mini-entrevistas. Além de
especialistas, chamamos leigos ou actores para simular situações que ajudem a
revelar aspectos escondidos da personalidade. Este ano, numa das provas,
pedimos a um actor que se fizesse passar por doente que não falava português ou
inglês, com sintomas de diarreia. Foi claro quem podia comunicar e resolver a
situação e quem não podia.
Não é possível
adquirir essas competências ao longo da carreira?
Minimamente. Há
muitas características que são definidas aos oito ou nove anos, as pessoas
quando muito disfarçam melhor ou pior. Dar aulas de Ética, boas maneiras, não
chega.
Não acredita no
ensino da Ética?
A ética
demonstra-se. Pode ser útil falar--se a um estudante de Medicina dos
comportamentos correctos perante algumas situações, mas a atitude está na
pessoa.
Os vossos
candidatos no Algarve são pessoas mais velhas, já com um curso. Seria possível
fazer essa triagem em jovens de 18 anos e a milhares de candidatos?
É possível mas não
é tão fácil. Entre os directores das faculdades de Medicina há contudo abertura
para pressionar para se fazer este perfil psicológico, até pela percepção de
que há muitos estudantes que ao longo do curso se vão abaixo. Sobretudo
raparigas, que na pressão de ter notas muito altas perdem as competências
sociais. Juntando isso a sair de casas dos pais, chegam a precisar de apoio
psicológico. A pressão das notas tornou-se um mecanismo perverso. Mas o
problema não se põe só ao nível pré- -graduado. O exame de acesso a
especialidade é completamente estúpido. Costumo dizer que entram com saúde
mental para as faculdades mas saem ligeiramente doentes. Pior: saem imbuídos do
espírito de ser privilegiados, de serem la crème de la crème da sociedade.
Alguns professores ainda impingem isso.
Agora com os
primeiros médicos na rua, qual é o seu balanço do curso?
Missão cumprida em
termos de evolução, mas saio zangado. Fui convidado pelo antigo reitor, uma
pessoa inspirada com quem me dei sempre bem. Depois quando mudou o reitor,
inicialmente as coisas correram bem mas a partir do ano passado, depois de
passarmos a avaliação da A3E, agência de acreditação de cursos, houve uma
mudança de personalidade. Neste momento vejo-o como o maior risco para
continuar o curso, também por influência do antigo bastonário Pedro Nunes, que
agora está à frente do Centro Hospitalar do Algarve e sempre se manifestou de
forma agressiva contra o projecto e por um ensino mais tradicional. Contra os
pareceres, aumentou o numerus clausus de 32 para 48 alunos. Parece-me difícil
manter a qualidade e sobretudo põe-se em causa um projecto importante para o
país e para a universidade, num sentido de mudar o modo de formar médicos.
Representou um salto quântico, seja nas admissões com atenção ao perfil
psicológico, seja no enfoque do curso, não em medicina hospitalar mas nos
cuidados primários.
Porque é que isso é
importante?
Se a tendência é os
hospitais terem cada vez menos camas, terão doentes cada vez mais doentes nos
cuidados intermédios e intensivos. Não são por isso o melhor sítio para um
jovem aprender medicina. O material clínico e a oportunidade de aprender está
nos cuidados primários. Foi isso que quisemos incentivar, para resolver até a
falta de médicos. Hoje as faculdades ainda estão baseadas na medicina
hospitalar, não é surpresa que depois todos queiram essas especialidades.
Fala-se dos
cuidados primários como porta de entrada no SNS. Porque é que tem sido tão
difícil alterar este paradigma?
Quando o
primeiro-ministro está doente, onde é que vai? Ao especialista que trabalha no
hospital. Os políticos vão directamente ao especialista, foram levados a não
acreditar no generalista. É natural que, até por esse contacto, sejam mais
influenciados pelos argumentos da medicina hospitalar. O argumento da mudança
tem de ser pela diferença no tratamento e pelo que podemos ganhar: o médico
hospitalar vê a falência hepática, o médico de família vê o sr. Manuel. É isso
que a nossa escola ensina: a medicina baseada no doente e não na doença.
Porque é que se
ganha mais com essa abordagem?
Só 7% das pessoas
que procuram cuidados de saúde precisam do hospital, de cuidados urgentes que
são também os mais caros. É importante investir no restante, que procura
perceber o contexto do doente, para reduzir o número de pessoas que precisam de
ir para cuidados agudos, quer pela prevenção quer pela promoção de estilos de
vida saudáveis. Com esta abordagem centrada no dente evitam-se muitas vezes
investigações caras com recurso a muitos exames e que se resolveriam falando
com o doente. Para isso acontecer é preciso saber comunicar com os doentes e
informá- -los. Os doentes ficam contentes com muitos exames, muitas vezes
desnecessários e com riscos que desconhecem. Fazer uma TAC ao tórax é o
equivalente a mais de cem raios X. A uma pessoa em idade reprodutiva pode
apanhar-lhe os ovários.
Em relação ao
recurso a muitos exames, o facto de os médicos se quererem proteger de
processos não começa a pesar?
Penso que ainda
temos um problema de justiça, ou má justiça, nesta área. Tivemos o caso de uma
mulher que fez uma operação ginecológica, esqueceram-se de uma compressa, foi
operada mais oito vezes, demorou-se nove anos a apurar responsabilidades e
deram-lhe uma indemnização de 18 mil euros e alguns cêntimos. Não há a tradição
de sentenças dissuasoras da má prática clínica. Às vezes parece que os juízes
estão virados para perdoar os médicos. Dezoito mil euros entra no ruído normal
do orçamento de um hospital, não dói nada. Se fossem 18 milhões, o hospital
tomava mais medidas para não voltar a acontecer. Como esse incentivo não está
lá, não acontece nada.
A sustentabilidade
do SNS tem estado na ordem do dia. Que propõe?
Um SNS sustentável
é aquele em que não se desperdiça tanto, por exemplo nesses exames
desnecessários, que aposta mais na medicina dos cuidados primários, melhora a
prevenção.
Isso é o plano dos
últimos governos.
Mas depois têm de
lidar com os interesses instituídos. Se temos um sistema em que tradicionalmente,
mesmo que isto esteja a mudar, os melhores médicos vão para especialidades que
ganham mais e estas são as hospitalares, é preciso resolvê-lo. A solução:
melhorar dramaticamente os salários dos médicos de família. É algo que o
governo poderia fazer. Podem gastar mais agora mas vão poupar.
Em matéria de
formação, como lançava a mudança?
O Ministério da
Educação devia ouvir mais os directores das faculdades de Medicina. Temos
reunido trimestralmente mas não temos uma representação formal. Tem de haver
uma ligação mais articulada entre o sistema universitário e o sistema de saúde.
Tirava os cursos dos hospitais, fazia uma formação inicial em Ciências da Saúde
ou Biomedicina e depois fazia um treino de Medicina no SNS, como existe na
formação pós-graduada numa especialidade.
Os médicos ficariam
vinculados ao SNS?
Porque não? Formar
um médico custa 100 mil euros. Depois a formação pós-graduada são mais 300 mil
a 400 mil euros. Ao fim dos dez anos de formação dá quase meio milhão. Se
quando se acaba uma especialidade em oftalmologia ou dermatologia e a pessoa
vai para o privado ou está a meio gás, para que foi o investimento? O
contribuinte pagou meio milhão e eu faço, perdoe a expressão, um manguito ao
contribuinte e vou para o privado. Acho isto profundamente imoral.
Mas como é que
vinculava os médicos?
Hoje já temos
pessoas que vão fazer a especialidade através da Marinha, mas têm de lá ficar
pelo menos seis anos. Façam-se as contas e chega-se a um cálculo de quanto
tempo é preciso para retribuir o investimento avultado que o Estado fez. Mas vê
isso debatido? Não.
Ser contracorrente
tem-lhe custado alguma coisa?
Disse a um jornal
que as cirurgias no Algarve estavam a piorar. Chamaram-me a atenção, mas porque
é que eu vou esconder aquilo que vejo? Se vejo coisas mal, digo. Se vejo uma
mortalidade acima do que é concebível, denuncio. Precisamos de auditorias
sérias. Não sabemos no nosso país a mortalidade em cirurgia por serviço ou
especificamente em anestesia. Os próprios colégios da especialidade deviam
pensar a formação de modo a responder a essas necessidades ou lacunas
concretas.
Isso acontece em
Inglaterra?
Se hoje morrer um
doente no Norte de Inglaterra por causa da anestesia, vou ter um email do
colégio a dizer que este instrumento ou este pormenor da formação falhou. Cá,
além de falta de informação, não existe um mecanismo para impedir as pessoas de
praticar enquanto não se esclarece o que se passou. Lá há uma queixa e há uma
suspensão preventiva. O médico vai para casa com salário mas previne--se que
repita o erro.
Há ideia que temos
um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Concorda?
Isso é baseado em
dois ou três indicadores, como a mortalidade infantil e a longevidade. Costumo
dar o exemplo de um amigo que vive na Nigéria e me diz que Lagos é a cidade
mais segura para andar de carro, não há acidentes. Não há acidentes porque não
se registam. Eu não digo que é mau, Espanha não está mais avançado e Itália é
pior.
Mas não vemos
diariamente doentes a queixarem-se ou mortes por negligência.
Não se vê mais
porque não é mediático e as pessoas não estão sensibilizadas. No Hospital de
Faro três doentes receberam transfusões de sangue erradas. Em vez de se avaliar
o circuito e identificar lacunas, abriu-se um inquérito. As pessoas perante o
inquérito escondem, não se apura nada. É um estado de coisas orwelliano, a
realidade não é aquilo que aconteceu, é aquilo que fica escrito. Enquanto isto
não mudar não melhoramos. Estou convencido que a mortalidade hospitalar é acima
do esperado no Algarve. Muitos dos nossos alunos são enfermeiros, andaram pelo
país e todos têm exemplos. É uma enfermidade do sistema na globalidade. Penso
que enquanto os colégios da especialidade também estiverem debaixo do chapéu do
conselho nacional da Ordem não será possível um maior escrutínio.
O que propunha?
Em Inglaterra pago
quase 3 mil libras por ano por diferentes quotas profissionais. Na Ordem pago
190 euros por ano. Naturalmente, existe uma pilha de processos e não haverá
dinheiro que suporte regulação como deve ser. Partia-se a Ordem em três
bocados: os colégios, o conselho nacional e a parte disciplinar, com
representação de leigos. Mas para mudar tem de haver consenso interno e ir a
aprovação da Assembleia da República. Partir a Ordem cá é um acto parlamentar.
Desde que voltou
ficou mais desiludido com o país?
Nunca estive
desligado. Sinto que na saúde desde então as coisas não melhoraram muito nem
pioraram, mas sentem-se os efeitos da crise. Noutro dia uma senhora da limpeza
desmaiou no corredor da escola. Tinha uma pressão arterial quase fora da
escala. Não andava a tomar os comprimidos porque não ter "tempo" de
ir a farmácia. Podia ter morrido ali.
Hoje não sente o
apego patriótico de ficar?
Saí há muito tempo.
Para voltar interrompi a minha carreira lá fora. Foi, nessa medida, um
sacrifício pessoal. Sinto que fiz a minha parte. Saio aos 70 anos. Podia ficar
mais, mas até em contravenção das normas europeias há discriminação pela idade
no Estado.
Porque é que foi
embora em 68?
Fascismo.
Participei nos movimentos estudantis, estive preso e depois ninguém nos deu
emprego. Tive uma oportunidade da Gulbenkian de fazer um doutoramento lá fora e
segui o meu percurso.
Essa experiência
pesa na visão do estado do país hoje?
Quando olho para um
país africano, para uma Guiné, penso nas muitas gerações até que se consiga
diminuir a corrupção, na tarefa monumental até que se consigam assegurar os
direitos fundamentais, acesso à justiça, à educação, à saúde. São mudanças
culturais que demoram gerações. Nós avançámos mas temos de continuar a avançar.
Relativiza a ameaça
da austeridade...
Relativizo. O
problema tem a ver com um modelo do mundo que começou com Thatcher e Reagan. Há
32 biliões de dólares em offshores. Quem gere esse dinheiro são pessoas cujo
objectivo é maximizar o lucro, sem condescendência ou boa vontade. Isto é muito
simples: enquanto houver milhões de chineses e indianos a fazer telemóveis e
tudo o que usamos por uma fracção do preço e sem direitos, nunca vamos conseguir
recuperar. Vivemos num mundo em que não há compaixão e a única forma é
erguermo-nos contra isto. Enquanto durou o apartheid não comprava nada da
África do Sul. Hoje não compro nada de Israel. A guerra em Angola acabou quando
as elites se aperceberam de que ao comprar diamantes estavam a pagá-la. É uma
atitude moral que permite afinar as coisas.
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