Daniel Oliveira – Expresso, opinião
Paulo Portas
apresentou, com um atraso de nove meses, o seu guião para a reforma do Estado
usando expressões doces como "gradualismo", "prudência",
"negociação" e "moderação". Expressões interessantes quando
se propõe um programa ideológico. Que, diga-se em abono da verdade, não passa
disso mesmo: um programa ideológico. Um programa que, se tivesse um conteúdo
mais sólido, seria mais radical do que qualquer um que tenha sido apresentado a
votos nos últimos 40 anos. Há boas intenções consensuais, há frases ocas, há
repetições do que já foi proposto. Mas porque não quero que se trate como
inócuo o que tem um conteúdo ideológico bem preciso e radical, que pelo menos
nos diz para onde iria, se o deixassem, este governo, concentro-me em alguns
princípios gerais apresentados para a segurança social, educação, saúde e
constitucionalização de políticas orçamentais.
Sobre a Segurança
Social, Paulo Portas propõe o plafonamento das pensões, o que só poderá
corresponder à saída de uma parte significativa dos maiores rendimentos do
financiamento da segurança social. O que, a prazo, levaria a uma maior
insustentabilidade do sistema. A proposta agradará, seguramente, a quem se tem
dedicado à demagogia sobre as pensões mais altas. Cá têm a razão pela qual esse
populismo foi sendo alimentado: garantir menores descontos para os maiores
rendimentos, libertando esse dinheiro para o sector privado. Depois do
plafonamento, falaremos de como se pagarão as reformas mais baixas. Agradecem
as instituições financeiras, que verão disponível um mercado interessante que
até agora era gerido pelo Estado.
Sobre a Educação,
Paulo Portas dá mais um passo na defesa do cheque ensino (água mole em pedra
dura...), que recentemente mereceu um debate profundo e que, no fim, teria como
resultado dois sistemas, um com capacidade de seleção dos estudantes e outro a
lidar com todos os problemas pedagógicos e sociais. Portas ainda acrescentou a
extraordinária proposta de fazer dos professores proprietários de escolas e do
Estado mero comprador de serviços. Na Saúde, segue uma linha semelhante:
continuação da privatização da gestão dos hospitais, com os desastrosos
resultados que se têm conhecido para os cofres do Estado.
Por fim, Portas
propõe a constitucionalização da regra de ouro, o que se traduz na
constitucionalização da política orçamental. Para quem se tem caixado de uma
Constituição demasiado ideológica e programática, temos aqui o ponto máximo da
ideologia (proibido o keynesianismo) e do programa (o Orçamento é o instrumento
fundamental de todos os governos). Constitucionalizando o absurdo Tratado
Orçamental aprovado pela maioria e, coisa estreanha, pelo PS, tornam-se
definitivamente impossíveis as políticas em contraciclo. As únicas que
realmente resultaram em crises de grandes dimensões noutros períodos
históricos. Ou seja, Portas quer inscrever na Constituição o ponto de vista,
que, neste momento, domina a ortodoxia política da direita e do pensamento
económico em que ela se baseia.
Sobre as propostas
fiscais de Paulo Portas, lamento não ligar um pevide. Quem começa por apoiar a
descida do IRC e a subida do IRS e do IVA, não pode dizer, sem corar, que
pretende deixar de penalizar o trabalho e as famílias. Continuo a achar que os
atos ainda valem mais do que as palavras. E os atos são os que conhecemos.
Fazer estas promessas no mesmo momento em que se prepara a votação dum
orçamento de Estado que se traduz num assalto sem precedentes ao trabalho e às
famílias ultrapassa todos os limites da desfaçatez. Mas a data escolhida para
esta apresentação serve para isso mesmo: ignorar o que se está a passar agora.
Portas até fez propostas para quando Portugal tiver um crescimento de 2%.
Conclusão: Portas
propõe a privatização de partes importantes de funções fundamentais do Estado -
saúde, educação e segurança social -; defende uma lógica de contratação a
privados de serviços públicos, garantindo o aumento do financiamento público a
negócios privados; e quer constitucionalizar os cortes brutais no Estado. E
pede, em torno disto e da profundíssima revisão constitucional que este
processo revolucionário exigiria, um consenso político alargado. No fim, ainda
quer que levem a sério este seu documento.
Haverá seguramente
quem concorde com esta agenda política. Assim é a democracia. Mas pensar que
ela poderua ser uma base séria para o início de um debate alargado sobre a
reforma do Estado é achar que o pluralismo político é coisa do passado. O guião
que Portas apresentou é, apesar de tosco, o de todas as clivagens fundamentais
no debate político de hoje. Da explicação que dá para esta crise até à
radicalidade do modelo social (e não apenas de Estado) que nos propõe. A
clivagem entre a direita ultraliberal, em que ele agora alinhou o sempre
adaptável CDS, e as correntes construíram o Estado Social. É que, apesar do PS
ver nesta declaração escancarada uma "agenda escondida" (é preciso
fazer um desenho?), não falta lá quase nenhum tema. Moderação? Gradualismo?
Prudência? Estamos, definitivamente, no domínio da novilíngua.
Felizmente, e
apenas nisso tem razão quem desvalorizou este documento, ele teve como única
função desembaraçar Paulo Portas do vexame de andar há nove meses a alinhavar
umas ideias sobre este assunto. Hoje, começa a debater-se o orçamento de
Estado. Aí sim, está espelhado o verdadeiro estado de desnorte deste governo.
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