quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Portugal: PORTAS GOSTARIA QUE EXISTISSE UM CONSENSO PARA O SEU PREC

 

Daniel Oliveira – Expresso, opinião
 
Paulo Portas apresentou, com um atraso de nove meses, o seu guião para a reforma do Estado usando expressões doces como "gradualismo", "prudência", "negociação" e "moderação". Expressões interessantes quando se propõe um programa ideológico. Que, diga-se em abono da verdade, não passa disso mesmo: um programa ideológico. Um programa que, se tivesse um conteúdo mais sólido, seria mais radical do que qualquer um que tenha sido apresentado a votos nos últimos 40 anos. Há boas intenções consensuais, há frases ocas, há repetições do que já foi proposto. Mas porque não quero que se trate como inócuo o que tem um conteúdo ideológico bem preciso e radical, que pelo menos nos diz para onde iria, se o deixassem, este governo, concentro-me em alguns princípios gerais apresentados para a segurança social, educação, saúde e constitucionalização de políticas orçamentais.
 
Sobre a Segurança Social, Paulo Portas propõe o plafonamento das pensões, o que só poderá corresponder à saída de uma parte significativa dos maiores rendimentos do financiamento da segurança social. O que, a prazo, levaria a uma maior insustentabilidade do sistema. A proposta agradará, seguramente, a quem se tem dedicado à demagogia sobre as pensões mais altas. Cá têm a razão pela qual esse populismo foi sendo alimentado: garantir menores descontos para os maiores rendimentos, libertando esse dinheiro para o sector privado. Depois do plafonamento, falaremos de como se pagarão as reformas mais baixas. Agradecem as instituições financeiras, que verão disponível um mercado interessante que até agora era gerido pelo Estado.
 
Sobre a Educação, Paulo Portas dá mais um passo na defesa do cheque ensino (água mole em pedra dura...), que recentemente mereceu um debate profundo e que, no fim, teria como resultado dois sistemas, um com capacidade de seleção dos estudantes e outro a lidar com todos os problemas pedagógicos e sociais. Portas ainda acrescentou a extraordinária proposta de fazer dos professores proprietários de escolas e do Estado mero comprador de serviços. Na Saúde, segue uma linha semelhante: continuação da privatização da gestão dos hospitais, com os desastrosos resultados que se têm conhecido para os cofres do Estado.
 
Por fim, Portas propõe a constitucionalização da regra de ouro, o que se traduz na constitucionalização da política orçamental. Para quem se tem caixado de uma Constituição demasiado ideológica e programática, temos aqui o ponto máximo da ideologia (proibido o keynesianismo) e do programa (o Orçamento é o instrumento fundamental de todos os governos). Constitucionalizando o absurdo Tratado Orçamental aprovado pela maioria e, coisa estreanha, pelo PS, tornam-se definitivamente impossíveis as políticas em contraciclo. As únicas que realmente resultaram em crises de grandes dimensões noutros períodos históricos. Ou seja, Portas quer inscrever na Constituição o ponto de vista, que, neste momento, domina a ortodoxia política da direita e do pensamento económico em que ela se baseia.
 
Sobre as propostas fiscais de Paulo Portas, lamento não ligar um pevide. Quem começa por apoiar a descida do IRC e a subida do IRS e do IVA, não pode dizer, sem corar, que pretende deixar de penalizar o trabalho e as famílias. Continuo a achar que os atos ainda valem mais do que as palavras. E os atos são os que conhecemos. Fazer estas promessas no mesmo momento em que se prepara a votação dum orçamento de Estado que se traduz num assalto sem precedentes ao trabalho e às famílias ultrapassa todos os limites da desfaçatez. Mas a data escolhida para esta apresentação serve para isso mesmo: ignorar o que se está a passar agora. Portas até fez propostas para quando Portugal tiver um crescimento de 2%.
 
Conclusão: Portas propõe a privatização de partes importantes de funções fundamentais do Estado - saúde, educação e segurança social -; defende uma lógica de contratação a privados de serviços públicos, garantindo o aumento do financiamento público a negócios privados; e quer constitucionalizar os cortes brutais no Estado. E pede, em torno disto e da profundíssima revisão constitucional que este processo revolucionário exigiria, um consenso político alargado. No fim, ainda quer que levem a sério este seu documento.
 
Haverá seguramente quem concorde com esta agenda política. Assim é a democracia. Mas pensar que ela poderua ser uma base séria para o início de um debate alargado sobre a reforma do Estado é achar que o pluralismo político é coisa do passado. O guião que Portas apresentou é, apesar de tosco, o de todas as clivagens fundamentais no debate político de hoje. Da explicação que dá para esta crise até à radicalidade do modelo social (e não apenas de Estado) que nos propõe. A clivagem entre a direita ultraliberal, em que ele agora alinhou o sempre adaptável CDS, e as correntes construíram o Estado Social. É que, apesar do PS ver nesta declaração escancarada uma "agenda escondida" (é preciso fazer um desenho?), não falta lá quase nenhum tema. Moderação? Gradualismo? Prudência? Estamos, definitivamente, no domínio da novilíngua.
 
Felizmente, e apenas nisso tem razão quem desvalorizou este documento, ele teve como única função desembaraçar Paulo Portas do vexame de andar há nove meses a alinhavar umas ideias sobre este assunto. Hoje, começa a debater-se o orçamento de Estado. Aí sim, está espelhado o verdadeiro estado de desnorte deste governo.
 

Sem comentários:

Mais lidas da semana