Vicente Jorge Silva
- Sol, opinião
Não tive ainda
oportunidade de ler as 112 páginas do guião para a reforma do Estado e
limito-me, por isso, às palavras de apresentação de Paulo Portas no fim da
tarde de quarta-feira (quando seria suposto já ter escrito esta crónica).
Depois de tanto
tempo de espera e da presumível relutância de Portas em concluir a tarefa de
que, com sibilina perfídia, o encarregara Passos Coelho, só por milagre se
esperaria que o vice-primeiro-ministro tirasse da cartola um engenho mágico que
alimentasse o sonho sempre adiado.
Provou-se que não
faz sentido um Governo improvisar uma reforma do Estado a meio da legislatura –
quando deveria tê-la lançado na fase inicial – e que só pode suscitar suspeitas
o facto de a apresentação oficial do documento reformador ter acontecido na
véspera da discussão na generalidade do Orçamento do Estado para 2014.
É um estratagema a
que o Governo sistematicamente recorre no jogo duplo que é a sua marca de
comportamento: num dia, anuncia-se uma reforma futurista, cuja filosofia
pretende a melhoria do funcionamento do Estado assim que acabar – se é que irá
mesmo acabar… – o protectorado da troika em Junho de 2014; no dia seguinte,
confronta-se o país com a triste realidade da sua dependência externa e dos
duros cortes que os portugueses irão sofrer na pele no próximo ano.
Até chegar a hora
da reforma temos de passar antes pelos cortes, caminho da cruz que não podemos
evitar. Seja como for, Portas não deixou de lembrar que «cortar é reduzir e
reformar é melhorar». Para se vingar de uma incumbência que sofreu para
cumprir, ele coloca-se como profeta de um futuro mais auspicioso do que a
amarga realidade com que nos confrontamos (apesar do «milagre económico»
detectado pelo ministro Pires de Lima).
É assim que Portas
e os centristas vêem a distribuição de papéis no Governo: ao PSD o encargo de
assumir o cumprimento das ordens da troika; ao CDS a missão de trazer a boa
nova de um país reformado e reconciliado depois da ‘recuperação da soberania’.
Só que as propostas
de Portas ou são demasiado previsíveis e coladas à velha doutrina privatizadora
do CDS (embora cautelosamente ele afirme que, se é contra a estatização, também
não defende o Estado mínimo) ou carecem de fundamentação e perspectivas
práticas que permitam antever uma verdadeira reforma do Estado. Pelo contrário,
o que antevemos é sobretudo uma revisão da forma de funcionamento da
Administração Pública.
Daí a referência de
Portas a contratualizações e concessões, menos mas melhores funcionários e mais
bem pagos, trabalho e reformas a tempo parcial. Sem esquecer, como tempero de
moralidade indispensável, menos acumulação de funções e conflitos de
interesses.
Portas vê um Estado
mais pequeno, mais descentralizado, mais desburocratizado e, por isso, mais
eficaz e próximo dos cidadãos. Mas para isso bastaria um programa de Governo em
que essas fossem normas orientadoras da sua acção.
O declínio
demográfico constitui, sem dúvida, um desafio cada vez mais dramático à
sustentabilidade da segurança social e dos serviços de saúde, mas aí Portas foi
parco na concretização das mudanças (a reforma da segurança social só poderá
ser empreendida quando o país estiver a crescer a 2%, pelo menos). Como o foi
também relativamente ao sistema de ensino, com excepção notória da proposta de
entrega de escolas à administração directa dos professores (uma ideia
‘autogestionária’ eventualmente simpática mas que, à primeira vista, peca por
excessivo lirismo).
Se o Estado abre
mão das suas pesadas competências tradicionais por não poder suportá-las
financeiramente ou para libertar-se de uma máquina paralisante, que garantias
de regulação fornece sobre os serviços concedidos a outrem e que não pode
deixar à rédea solta? Além disso, a receita de menos carga fiscal, menos
burocracia e um novo Simplex para a economia e as empresas resume-se a uma
expressão banalíssima do discurso corrente.
É sintomático que
Portas proponha uma comissão para a reforma do IRS formada por gente de
créditos e independência indiscutíveis. Ora, seria precisamente por aí que
devia ter começado o próprio projecto de reforma do Estado, enquadrado por um
conselho de sages de diversas proveniências e competências, acima de toda a
suspeita de enviesamento partidário ou ideológico.
Em vez de um truque
tardio e contrafeito ou uma manobra de diversão para disfarçar o fiasco do
actual Governo, seria um documento ao qual o Parlamento não poderia recusar
acolhimento para um debate frutuoso e sem preconceitos. À imagem da sua
história conturbada, a reforma do Estado de Portas arrisca-se a ficar como
guião para filme nenhum.
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