terça-feira, 5 de novembro de 2013

Portugal: GUIÃO PARA FILME NENHUM

 


Vicente Jorge Silva - Sol, opinião
 
Não tive ainda oportunidade de ler as 112 páginas do guião para a reforma do Estado e limito-me, por isso, às palavras de apresentação de Paulo Portas no fim da tarde de quarta-feira (quando seria suposto já ter escrito esta crónica).
 
Depois de tanto tempo de espera e da presumível relutância de Portas em concluir a tarefa de que, com sibilina perfídia, o encarregara Passos Coelho, só por milagre se esperaria que o vice-primeiro-ministro tirasse da cartola um engenho mágico que alimentasse o sonho sempre adiado.
 
Provou-se que não faz sentido um Governo improvisar uma reforma do Estado a meio da legislatura – quando deveria tê-la lançado na fase inicial – e que só pode suscitar suspeitas o facto de a apresentação oficial do documento reformador ter acontecido na véspera da discussão na generalidade do Orçamento do Estado para 2014.
 
É um estratagema a que o Governo sistematicamente recorre no jogo duplo que é a sua marca de comportamento: num dia, anuncia-se uma reforma futurista, cuja filosofia pretende a melhoria do funcionamento do Estado assim que acabar – se é que irá mesmo acabar… – o protectorado da troika em Junho de 2014; no dia seguinte, confronta-se o país com a triste realidade da sua dependência externa e dos duros cortes que os portugueses irão sofrer na pele no próximo ano.
 
Até chegar a hora da reforma temos de passar antes pelos cortes, caminho da cruz que não podemos evitar. Seja como for, Portas não deixou de lembrar que «cortar é reduzir e reformar é melhorar». Para se vingar de uma incumbência que sofreu para cumprir, ele coloca-se como profeta de um futuro mais auspicioso do que a amarga realidade com que nos confrontamos (apesar do «milagre económico» detectado pelo ministro Pires de Lima).
 
É assim que Portas e os centristas vêem a distribuição de papéis no Governo: ao PSD o encargo de assumir o cumprimento das ordens da troika; ao CDS a missão de trazer a boa nova de um país reformado e reconciliado depois da ‘recuperação da soberania’.
 
Só que as propostas de Portas ou são demasiado previsíveis e coladas à velha doutrina privatizadora do CDS (embora cautelosamente ele afirme que, se é contra a estatização, também não defende o Estado mínimo) ou carecem de fundamentação e perspectivas práticas que permitam antever uma verdadeira reforma do Estado. Pelo contrário, o que antevemos é sobretudo uma revisão da forma de funcionamento da Administração Pública.
 
Daí a referência de Portas a contratualizações e concessões, menos mas melhores funcionários e mais bem pagos, trabalho e reformas a tempo parcial. Sem esquecer, como tempero de moralidade indispensável, menos acumulação de funções e conflitos de interesses.
 
Portas vê um Estado mais pequeno, mais descentralizado, mais desburocratizado e, por isso, mais eficaz e próximo dos cidadãos. Mas para isso bastaria um programa de Governo em que essas fossem normas orientadoras da sua acção.
 
O declínio demográfico constitui, sem dúvida, um desafio cada vez mais dramático à sustentabilidade da segurança social e dos serviços de saúde, mas aí Portas foi parco na concretização das mudanças (a reforma da segurança social só poderá ser empreendida quando o país estiver a crescer a 2%, pelo menos). Como o foi também relativamente ao sistema de ensino, com excepção notória da proposta de entrega de escolas à administração directa dos professores (uma ideia ‘autogestionária’ eventualmente simpática mas que, à primeira vista, peca por excessivo lirismo).
 
Se o Estado abre mão das suas pesadas competências tradicionais por não poder suportá-las financeiramente ou para libertar-se de uma máquina paralisante, que garantias de regulação fornece sobre os serviços concedidos a outrem e que não pode deixar à rédea solta? Além disso, a receita de menos carga fiscal, menos burocracia e um novo Simplex para a economia e as empresas resume-se a uma expressão banalíssima do discurso corrente.
 
É sintomático que Portas proponha uma comissão para a reforma do IRS formada por gente de créditos e independência indiscutíveis. Ora, seria precisamente por aí que devia ter começado o próprio projecto de reforma do Estado, enquadrado por um conselho de sages de diversas proveniências e competências, acima de toda a suspeita de enviesamento partidário ou ideológico.
 
Em vez de um truque tardio e contrafeito ou uma manobra de diversão para disfarçar o fiasco do actual Governo, seria um documento ao qual o Parlamento não poderia recusar acolhimento para um debate frutuoso e sem preconceitos. À imagem da sua história conturbada, a reforma do Estado de Portas arrisca-se a ficar como guião para filme nenhum.
 

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