Cristovam Buarque – Debates Culturais
O Brasil é um
relativamente bem sucedido caso de miscigenação racial e um exemplo claro de
segregação social. Ao longo de toda nossa história avançamos sem nos integrar
socialmente. O resultado é um país com apartheid social, a apartação, que tem
características raciais como resquício da escravidão dos negros.
Durante décadas, a
segregação foi mantida sem necessidade de distanciamento físico. Nossos avós
diziam que os pobres e os negros sabiam o lugar deles. As moradias podiam ser
ao lado, em bairros onde conviviam com relativa proximidade os patrões e seus
serviçais. Ricos e pobres faziam compras nos mesmos centros das cidades. A
explosão urbana, depois dos anos 60, forçou medidas de segregação para barrar a
população pobre que “invadia” o território dos ricos. Criaram os shoppings e os
condomínios fechados para as classes médias e altas e os centros das cidades,
os bairros populares e as favelas foram deixados para as parcelas de classes
sociais mais baixas.
O que no Sul dos
EUA e na África do Sul se impuseram, por meio de leis, que não permitiam aos
negros andarem nas calçadas onde andavam os brancos, aqui optamos por entregar
as ruas apenas para os pobres, enquanto os ricos iam para os shoppings.
Naqueles países os assentos melhores nos ônibus e metrôs eram reservados para
os brancos, mas aqui deixamos os ônibus livres para os pobres, enquanto os
ricos passaram a usar seus carros fechados com ar condicionado. A segregação
não se deu explicitamente pelo apartheid, mas implicitamente pela apartação.
Há 20 anos, um
pequeno livro chamado O que é apartação – o apartheid social brasileiro,
publicado pela Editora Brasiliense, diz que o fim do apartheid
“brasilianizaria” a África do Sul, com segregação implícita pela renda, não
mais explícita pela cor da pele e por leis; e que o crescimento separado
“sulafricanizaria” o Brasil, exigindo leis que mantivessem a segregação social.
Parece que aquela previsão está ocorrendo.
Os pobres continuam
“invadindo”, a violência se amplia, os shoppings começam a ser ocupados e a estrutura
da segregação começa a exigir medidas policiais e legais. Ao invés de entender
a necessidade de quebrar a segregação e oferecer acesso livre e ordenado para
todos, passa-se a debater como impedir a entrada de indesejáveis perturbadores.
A reação aos rolezinhos tem sido controlar quem entrará nos shoppings, da mesma
forma que já existem regras para os que entram nos bons hospitais, nas escolas
com qualidade, nos clubes e nos espaços culturais.
Ao invés de um bom
sistema de saúde para todos, prefere-se subsídios com recursos públicos para
financiar saúde privada; ao invés de escola de qualidade para todos, a gloriosa
OAB – Ordem dos Advogados do Brasil – está lutando para que o desconto no
Imposto de Renda com gastos para a educação privada seja integral, relegando-se
ainda mais a escola pública. Ao invés de promover a miscigenação social, querem
usar a polícia paga pelo governo para impedir a entrada de pessoas nos
shoppings, ou transformá-los em clubes de consumidores com sócios exclusivos.
Podemos adotar inclusive programas de transferências de renda para os pobres,
mas sem integrá-los socialmente, sem miscigenação social: os de lá passam a
receber a generosidade de alguns reais, mas não lhes damos os meios para que se
misturem.
A unidade social
não virá por leis, mas por uma escola de qualidade, e qualidade igual para
todos. A miscigenação racial foi construída nas alcovas e a miscigenação social
será nas escolas. Mas nossos antepassados preferiram o gosto imediato da alcova
aos sacrifícios no longo prazo exigidos pela escola.
Felizmente há
razões para otimismo. Primeiro, porque está ficando muito caro manter a
segregação. E segundo, porque é impossível impedir as mobilizações populares
com métodos policiais e de espionagem. Quando a manutenção da segurança ficar
muito cara, vamos descobrir a necessidade de paz; quando os custos de seguros
privados de saúde e as escolas particulares ficarem proibitivos, perceberemos a
importância da escola pública de qualidade; quando o povo deixar claro que não
se satisfaz com “bolsas”, sairemos da assistência para a inclusão social. Isso
será apressado pela “guerrilha cibernética” sob a forma das incômodas,
ameaçadoras, mas inevitáveis mobilizações promovidas pela internet que tomarão
conta do tecido social brasileiro. Um dos exemplos são os rolezinhos,
lamentáveis incômodos, ameaçadores, mas inevitáveis, e bem-vindos para
despertar o Brasil para a necessidade de fazer a miscigenação social, por meio
de uma revolução na qualidade da educação pública de base.
*Cristovam Buarque
é professor da Universidade de Brasília e Senador pelo PDT/DF. Visite o blog de
Cristovam: http://www.cristovam.org.br
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