quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Portugal: GUTERRES À PRESIDÊNCIA

 


Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião

Ao contrário do que Pedro Passos Coelho parece pensar, a questão "para que serve um presidente?" é uma questão da maior importância política. A qual não se pode responder pela negativa, traçando - como ele fez - perfis de pura exclusão ao defender que o próximo Presidente da República não deve "complicar ou bloquear", ou que deve "evitar tornar-se protagonista ou catalisador" de contrapoderes, ou ainda que não deve ser "um cata-vento de opiniões erráticas".
 
O objetivo era, diz-se, fragilizar a eventual candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. É possível que fosse isso, mas se de facto era, trata-se, em qualquer caso, de uma visão curta e tosca, não só da política, mas da própria função presidencial, no quadro do regime português e nos tempos de hoje. A gravíssima situação que vivemos, e por que vamos continuar a passar na próxima década, aconselha que o perfil do próximo Presidente da República seja pensado, e muito bem pensado.
 
Portugal precisa sobretudo de um novo Presidente com duas características fundamentais: ser internamente um mediador eficaz, capaz de diminuir a excessiva, teatral e inútil conflitualidade que domina a cena político-partidária nacional, incentivando compromissos de médio/longo prazo. E ser externamente uma personalidade de indiscutível dimensão global, conhecida e respeitada, capaz de projetar Portugal e de intervir nos debates internacionais.
 
A primeira característica exige uma visão política robusta, enraizada no conhecimento da história do País e na experiência pessoal, com valores bem definidos. Só uma autoridade com este perfil será capaz de dobrar a mesquinha conflitualidade política hoje dominante.
 
A segunda exige um currículo sólido, que permita ter uma teia de relações no mundo, um bom conhecimento das instituições internacionais, dos seus meandros, dos canais e das influências que as atravessam, tornando eficaz a ação presidencial na dificílima arena internacional, retirando Portugal do papel periférico, de quase indigenato, a que se chegou nos últimos anos.
 
Devem pois ser estas características, positivas e inclusivas, as que devemos exigir ao próximo PR. É disso que o País absolutamente precisa. Ora, é evidente que Portugal apenas dispõe de duas personalidades com este perfil: António Guterres e Durão Barroso.
 
Andar a discutir personalidades que sejam absolutas desconhecidas mal se atravesse a fronteira e se chegue a Huelva, Badajoz, Salamanca ou Vigo não parece realmente uma ideia muito inteligente, quer se trate de autarcas com trabalho apreciável (Rui Rio ou António Costa), de populistas à procura de protagonismo (como Marinho e Pinto, mas aparecerão certamente mais...) ou, ainda, de "senadores" esfíngicos à espera que os vão buscar a casa: António Barreto é o melhor exemplo.
 
Marcelo pertence, é preciso reconhecê-lo, a uma categoria à parte, a dos comentadores catódicos profissionais, e tudo indica que continuará a liderar o pódio dessa classe. Sendo até de prever que possa ir tão longe como foi José Hermano Saraiva, de quem ele é televisivamente o grande herdeiro e continuador.
 
É esse, mais do que o Palácio de Belém, o destino mais provável que o espera, e que ele tem preparado porventura sem o saber. Mas o destino é isso mesmo, não é o lugar para onde se quer ir mas o lugar que nos espera independente da nossa vontade - e quantas vezes contra ela - no cruzamento das contingências da vida e da história.
 
A minha aposta, que gostaria que fosse desde já a de toda a esquerda e do centro-esquerda inteligente e patriótica, é em António Guterres. Eu sei, vão lembrar-me as críticas que eu lhe fiz como primeiro-ministro no segundo mandato, etc.,etc.. Mas nestas matérias convém não ser dogmático e seguir o conselho de Ovídio, que aconselhava a que sempre que se identificasse um defeito em alguém se procurasse logo a qualidade mais próxima - e vice-versa.
 
Com efeito, muitas vezes, as características que numa situação aparecem como negativas, num outro contexto revelam-se qualidades, e de relevo. É o caso, creio, de António Guterres, que é um político com um alto nível de qualificação intelectual, uma exemplaridade ética e uma visão política incomparáveis com todos os que o antecederam ou se lhe seguiram.
 
Governou quatro anos com elevado apreço geral. Em condições que exigiam um enorme talento porque não tinha maioria no Parlamento, revelando uma capacidade de diálogo, de mediação e de concertação bem raras: basta pensar na viabilização dos orçamentos com o PSD, ou na reforma fiscal com o Bloco, por exemplo. O seu erro foi , a meu ver, não ter percebido que o segundo mandato pedia mais do que esse talento, e que a maioria absoluta era um imperativo que ele devia ter exigido "dramaticamente" ao País. Por outro lado, em termos internacionais, basta pensar - entre muitas outras coisas - no modo como enquanto primeiro-ministro lidou com o problema de Timor. Acompanhei--o nas diligências junto do Papa João Paulo II, segui de perto a intensidade com que pressionou Bill Clinton e outros líderes internacionais, não teve um minuto de descanso enquanto não foi encontrada uma solução política para a tragédia timorense, revelando tanto uma notável capacidade de manobra como uma persistência tenaz, qualidades de que hoje Portugal bem precisa no seu topo institucional.
 
Neste momento, no domínio político - ao contrário do que se passa no desporto ou na cultura - Portugal só tem três nomes conhecidos e respeitados internacionalmente: Mário Soares, Durão Barroso e António Guterres. Pude, durante as minhas funções como embaixador de Portugal na UNESCO, em contacto permanente com 193 delegações de todo o mundo, confirmá-lo inúmeras vezes. Tudo o mais é ignorado, mesmo completamente ignorado.
 
Por isso, andar a pensar local e paroquial nesta época em que tudo é global e cosmopolita, é de uma confrangedora estupidez política, que se pagará bem caro. Quem duvida, que olhe para o desempenho do atual PR....
 

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