sexta-feira, 7 de março de 2014

O EMBUSTE



Rui Peralta, Luanda

I - O embuste é um instrumento de dominó, utilizado em todas as épocas e lugares pelas elites sobre os dominados. Na Politica Internacional foi eficazmente utilizado pelo Ocidente através dos séculos e é, pelos mesmos, utilizado no presente. Sem pretender recuar muito no tempo e sem querer diversificar exemplos, basta recordar o caso do couraçado Maine, em 1898, na Baia de Havana, que serviu de pretexto para os USA entrarem em guerra com a Espanha e ocuparem Cuba, Porto Rico e Filipinas, ou, na segunda metade do século XX, os “ataques” vietnamitas no Golfo de Tonquim e os recentes embustes das “armas de destruição massiva” no Iraque ou os pretensos “massacres” de Bengasi, cometidos por Kadhafi.

Um dos vários exemplos em curso é o da Síria. Com o propósito de “chegar rapidamente e em força” a Teerão, o Império dos interesses pretendeu liquidar o governo sírio, o Partido BAAS, a família al-Assad, destruir a Síria, manipular os equilíbrios culturais do complexo e milenar mosaico comunitário sírio e deixar o povo sírio na mais completa miséria. As cartas foram sendo colocadas na mesa á medida que os acontecimentos se desenrolavam. Tudo começou com o aproveitamento efectuado pela máquina da propaganda imperial dos primeiros protestos, legítimos, de vários sectores da população. Os protestos degeneraram em confrontos com a polícia, o governo sírio fez leituras erradas da situação, a burocracia síria revelou a sua incompetência e inoperacionalidade. Em pouco tempo os sectores da burocracia já estavam em concluiu com os sectores ligados aos interesses estrangeiros enquanto os protestos e as razões para os protestos passaram para segundo plano.

O declive criado pelas leituras erróneas acabaram por acelerar o processo de decomposição do Estado e das instituições e o país passou rapidamente a um estado de guerra civil, camuflagem da agressão estrangeira. Todos os motivos servem de pretexto para uma intervenção directa e massiva da NATO e motivos não faltavam, geralmente criados pela ineficiência burocrática e rapidamente aproveitadas para servirem de argumentos justificativos para a intervenção (uma das últimas “fábulas sírias” criadas pela indústria mediática foi a do gás venenoso, fábula que acabou por diluir-se no processo de inspecção em curso).

A guerra contra a Síria foi iniciada em 2011 através da introdução de mercenários no país. Para surpresa do Imperio a Síria resiste e é com preocupação que a NATO e os petro-oligarcas do Golfo vêm os seus mercenários a serem derrotados pelo exército sírio, que aos poucos ganha controlo no terreno. O Estado Sírio, as suas instituições, as suas forças armadas, mantiveram-se firmes, porque contavam com a legitimidade atribuída pela soberania popular. Ao reassumirem o controlo da cidade de al-Qusair, junto á fronteira com o Líbano – ofensiva em que contaram com o apoio do Hezbollah - as forças armadas sírias fecharam uma importante via de acesso dos bandos armados, que penetraram até ao centro do território com o objectivo de criar uma “zona livre” nas cidades de Hama e de Homs, que os “combatentes da liberdade” pretendiam converter em “Bengasi” (copiando a agressão que vitimou e destruiu a Líbia e que representou um duro golpe desferido a todo o continente africano) para proclamar um “governo independente” e criar obstáculos às comunicações entre o norte do território (constituído por cidades importantes como Alepo e Idlib) e Damasco e impedir as comunicações entre a capital e as principais cidades costeiras (Tartus, Banias e Lataquia).

Os êxitos alcançados pelas Forças Armadas Sírias, no teatro das operações militares, impulsionou a provocação montada em torno das armas químicas e que levaram á acusação de que o governo sírio estaria a usar gás sarin. Era necessário pressionar a todo o custo, pois apenas a iminência de uma invasão poderia travar os reveses sofridos pelos mercenários e pelos bandos da extrema-direita sunita, em fuga para os países vizinhos. Os USA evitaram que os bandos ligados á Al-Qaeda – a Frente al-Nusra e o Califado Islâmico para a Síria e o Iraque - recebessem o grosso das armas e dos recursos fornecidos pela NATO, favorecendo o Conselho Nacional Sírio (CNS) e o seu braço armado o Exercito Livre da Síria (ELS).
   
Desde a Turquia foram criadas bases de apoio e “filtros” de informação nas áreas fronteiriças, mais tarde alargadas á Jordânia. A análise dos conflitos anteriores, em particular da guerra contra a Líbia, indica que apenas através da superioridade dos meios aéreos se poderia alterar a situação militar a favor da NATO e dos seus agentes no terreno. Mas esta conclusão pode ser considerada de alto risco. Se na Líbia foi, efectivamente a Força Aérea da NATO a ter um papel decisivo no desfecho da agressão (contando com uma apressada interpretação de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU) isso poderia não ser real na Síria. As Forças Armadas Sírias estão preparadas – e com mais de 4 décadas de preparação – para defender o território das agressões sionistas, possuindo para alem de uma vasta experiencia de armamento e equipamentos modernos. Quando a NATO tentou testar a reacção das forças armadas sírias a um eventual ataque aéreo, um caça turco foi derrubado.

Por sua vez a Síria conta com o apoio activo da Rússia, que na agressão cometida contra a Líbia, permaneceu em posição passiva. Para além do apoio russo, o Irão constitui uma componente fundamental para a quebra do bloqueio efectuado á Síria e a partir do Líbano o Hezbollah (consciente de que com a queda do governo sírio, será o próximo objectivo a atingir, antes do Irão, porque possuem uma elevada capacidade militar e de informação - derrotaram o exercito sionista em 2006 – e realizam operações surpreendentes, para alem de conseguirem golpear os seus inimigos sionistas a centenas de quilómetros de distância) tem-se revelado de grande importância ao participar nas ofensivas militares, assim como as milícias curdas, que depois de uma fase em que ameaçaram aderir á oposição, acabaram por negociar com o governo sírio e prestarem apoio (embora com reservas) às forças armadas sírias.

Estes elementos de dissuasão (Rússia, Irão, Hezbollah, curdos e resistência síria) são de elevada importância nos cálculos da NATO. Mas também a falta de apoio interno a uma guerra contra a Síria, manifesta em recentes inquéritos realizados pela CBS e pelo New York Times, onde cerca de 70% da população opõe-se á agressão, é um factor que provoca hesitação na administração Obama. O mesmo se passou com outro pilar da NATO e da guerra contra a Síria, a Grã-Bretanha, que viu o parlamento chumbar a iniciativa “guerreira” do governo conservador do primeiro-ministro Cameron.

É certo que tanto Kerry como Obama afirmaram recentemente que apesar dos acordos sobre a eliminação do arsenal de armas químicas na Síria, efectuados com a Rússia, os USA não colocaram de lado a hipótese do “uso da força”, ou seja da agressão e invasão e de forma suspeita alguns fazedores de opinião da indústria mediática internacional começaram a afirmar que o governo pode não cumprir os acordos, transferindo parte do seu arsenal químico para o Hezbollah. Mas os USA não precisam de tanto, bastando fazerem o mesmo que no caso do Iraque e pôr em causa a credibilidade dos inspectores…

II - Embuste foi também a técnica usada para desestabilizar a Ucrânia e conduzir o desenho de um novo mapa de perfil geoeconómico, dividindo o país, que historicamente, assim como no plano étnico, cultural, económico e político são dois países: um próximo á História, cultura e sociedade russa, o outro próximo á Historia, cultura e sociedade ocidental. A dinâmica interna ucraniana reflecte permanentemente estes dois elementos, o que torna a Ucrânia uma presa fácil para as elites europeias (que entraram num frenesim imperial, com o intuito de alargarem a União Europeia, não mais do que um vasto mercado formado por mantas retalhadas de interesses nacionais) e para os USA, que pretendem manter o seu domínio, custe o que custar, nem que tenham de cartelizar os seus interesses com os europeus, na Europa e em África.

No actual quadro geoeconómico assiste-se a uma nova guerra fria, assente numa divisão Ocidente-Oriente, que no contexto geopolítico continental euro-asiático, repercute a histórica divisão do Imperio Romano, quando da cisão que gerou o Imperio Romano do Ocidente, centrado em Roma e o Imperio Romano do Oriente, Bizâncio. Esse fracionamento é actualmente reflectido não no quadro geopolítico, mas no quadro geoeconómico e ameaça permanecer por largas décadas, sendo um potencial foco de instabilidade politica, económica e social, em guerra latente. E este foco é alimentado pelo Ocidente, mais particularmente pelos USA e pela U.E.

Quando na década de 90 a NATO iniciou a sua expansão na Europa de Leste e na Eurásia, o Ocidente aproveitou a instabilidade vivida na região, gerada pelos primeiros passos da Rússia pós-soviética. A administração Clinton, primeiro e a administração Bush, logo de seguida, realizaram uma vasta operação de cerco e de infiltração na Rússia, instalando-se nas suas fronteiras, através de bases da NATO e infiltrando-se politicamente no país através das ONG criadas para o efeito. Mais tarde foi a decisão de instalar misseis ao longo das fronteiras russas, alegadamente contra o Irão. Depois chegaram os primeiros colonatos militares norte-americanos (os “outposts comands”, geralmente de aconselhamento e treinamento, como os da AFRICOM, para África, ou os diversos comandos criados no combate ao “narco-terrorismo” na América Latina) enviados para a Geórgia, o que gerou as escaramuças e a tomada de uma posição de força por parte da Federação da Rússia, que levou ao “acanhamento” da Geórgia e dos interesses ocidentais aí instalados.
                
O Ocidente acusa Putin e o presidente ucraniano, Yanukovych (ainda presidente, pois não foi oficialmente destituído e mantem o seu cargo, apesar de ter sido forçado a exilar-se) de serem os criadores da instabilidade. Mas foi o Ocidente que gerou a instabilidade quando a U.E. impôs ao governo ucraniano um ultimato: “Têm de escolher entre a Europa e a Rússia”, foi com estas palavras que a U.E. saudou a vitória de Yanukovych nas eleições. E como se isso não bastasse indicou ao governo ucraniana um pacote de medidas no âmbito do FMI e do Banco Mundial, que os ucranianos seriam obrigados a cumprir.

É célebre a reação de Putin ao ultimato que a U.E fez á Ucrânia: “Porque tem de decidir a Ucrânia? Estamos preparados para ajudar a Ucrânia a evitar o colapso económico, em conjunto com o Ocidente. Façamos um acordo tripartido para a Ucrânia”. Washington e Bruxelas rejeitaram a proposta russa e dessa forma precipitaram a instabilidade. Mas será que a U.E. e os USA controlam a situação nas ruas de Kiev? Que aconteceu aos lideres ucranianos “moderados pró-ocidentais”? Quando os ministros das relações exteriores da U.E foram a Kiev que viram? Que os seus “boys” perderam o controlo da situação e que a extrema-direita se apoderara das ruas. Que bem ficaram nas televisões do mundo inteiro os responsáveis da política externa europeia a falarem e a passearem-se pelas ruas de Kiev, com slogans fascistas como ruido de fundo e cartazes nacionalistas e nada europeus como cenário.

Que ouviram da boca de um dos seus principais agentes no país, Arseny Yatsenyuk? “A única chance de parar os protestos (…) é mover este conflito das ruas para o Parlamento (…) Ninguém – e estou a ser muito franco ao dizer isto – nem o governo (…) nem nós (…) controla a situação (…) existem forças fora de controlo, que comandam as acções. Esta é a verdade! ” As forças a que o “moderado” Yatsenyuk (que ambiciona chegar a presidente, embora não veja como) se refere são os partidos nacionalistas de direita e os neofascistas, conforme ficou demonstrado numa “fotografia de família” onde estão alguns responsáveis europeus a cumprimentar alguns líderes “moderados” ucranianos (entre eles Yatsenyuk), tendo ao fundo, inscrito numa porta de uma moradia: “Aqui vivem judeus”. E foi às mãos dessa escumalha fascistoide que os apoios enviados por Bruxelas foram parar. Assim como aconteceu com a Líbia, com as “Primaveras Árabes”, com a Síria…

Os “moderados” não controlam nada, a não ser as suas contas bancárias e os seus lucrativos negócios, sendo os bandos nazis os que assumem o controlo e usufruem das verbas atribuídas pelo Ocidente aos “combatentes da liberdade e da democracia”. Imagine-se o cenário pintado pelos fazedores de opinião e pela máquina de propaganda Ocidental, quando pretende agredir um Estado soberano: centenas de milhares de liberais, progressistas, moderados, gente decente, a desfilarem nas ruas. E depois o que acontece? Perdem o controlo da situação e são substituídos por bandos fascistoides e por mercenários. Que aconteceu aos centos de milhares de liberais, progressistas e moderados? Aparentemente ficaram em casa...E que acontece depois? As suas casas foram destruídas, avessadas, assaltadas…pelos “combatentes da liberdade e campeões da democracia”!

O aproveitamento das dinâmicas internas é, assim feito pelo embuste. Protestos legítimos são transformados em “motins”, manutenção da ordem constitucional é transformada em “violência repressiva” e “atentado aos direitos humanos” e a partir desse ponto, o embuste torna-se “no stop”. A dinâmica interna é absorvida pela dinâmica externa e os actores genuínos são postos fora de cena e substituídos por duplos contratados pelos financiadores do filme. O argumento é o mesmo, apenas muda o título e os cenários (umas vezes cidades rodeadas pelo deserto, outas cidades rodeadas por selva tropical e outras, ainda, cidades onde neva sem parar). Tudo devidamente empacotado e etiquetado, para poupar custos.

Analisemos as marionetas que participam no embuste ucraniano, começando por Vitali Klitschko, um dos mais proeminentes líderes da oposição pró-europeia. Reside na Alemanha, paga impostos na Alemanha e é o representante da chanceler alemã Ângela Merkel (a nível politico e ideológico é irmanado do partido de Merkel – a União Democrata-Cristã e a sua associada da Baviera, a União Social-Cristã, daí a sigla CDU/CSU – e é o representante dos interesses económicos da Alemanha). Mas Klitschko tem vários problemas, a começar pela Júlia Tymochenko, que reúne um carinho muito especial de Merkel, de Hollande, de Durão Barroso, de Obama e da CIA, em particular. Esse carinho impede que Vitali Klitschko, por muito germanófilo que seja, avance decidido para a liderança absoluta da oposição pró-ocidental. Até porque os norte-americanos não têm um grande carinho pelo homem (demasiado identificado com os interesses germânicos. Os USA não gostam do papel de Merkel na Ucrânia, temendo um acordo da Alemanha com a Rússia) e a França olha-o com alguma desconfiança.

Júlia Tymochenko reúne, aparentemente, o consenso do Ocidente, mas a pena que cumpriu (foi libertada durante os acontecimentos e após a queda do governo em Kiev, sem a ter cumprido) originou uma corrida para a liderança, no seio da sua facção dentro da oposição, pelo que a sua real força política é uma incógnita. Yatsenyuk é um dos que aproveitou a prisão de Tymochenko para conquistar um lugar de destaque na oposição (e conseguiu, pois é com ele que a Comissão Europeia fala). Lidera o Partido da Pátria, com uma boa representação parlamentar e tem a particularidade de ser o menino querido de Washington. Para a administração Obama ele é o “our man”. Os alemães não gostam dele e os franceses toleram-no. Mas os USA adoram-no e a Comissão Europeia não o deixa ficar sozinho com os norte-americanos. Este é o panorama dos líderes moderados da oposição ucraniana pró- Europa.

Depois vem o bloco nacionalista da extrema-direita (que engloba a direita nacionalista, tradicionalista e os neofascistas) o Svoboda, liderado por Tyagnybok. Os europeus desconheciam-no e falaram com ele por acidente (perante o sorriso trocista, mas discreto, de Merkel observando complacentemente o completo desconhecimento que os seus colegas europeus têm da região. A chanceler alemã não falou com ele, nem o abraçou e não surgiu no meio das bandeiras e dos cartazes do Svoboda), mas o Senador norte-americano John McCain abraçou-o nas ruas de Kiev.
     
Apresentadas as marionetes principais e conhecendo os mestres manipuladores, poderemos esperar um espectáculo de baixo nível…É que há saltimbancos que sabem manejar os bonecos, mas também há os embusteiros. E quando são estes a mexer nos cordelinhos, meus amigos, não vale a pena sair de casa para ir ver o espectáculo. É um embuste… 

III - O embuste é um factor que tomou conta da História. É curioso (e trágico) verificar os manuais de História que abundam nos programas de educação (deveriam ser denominados “programas de condicionamento” pela carga ideológica que transportam). Neles são visíveis as formas como as elites se apoderam da memória e fazem do passado um tempo que limita-se a um espaço determinado, ao seu habitat mítico. É a História dos poderosos, dos reis, dos senhores, dos empreendedores, dos políticos, dos imperadores e dos imperialistas. Os historiadores, tal como os jornalistas, são transformados em alquimistas assalariados, que alteram, uns o passado, os outros o presente, em função das necessidades dos seus patrões.

Este saque efectuado á memória de todos nós (a memoria pública) produz estranhos efeitos no presente, como, por exemplo, as projecções sobre o futuro (as utopias e as atopias) ou as atitudes dos Homens no presente face ao passado e ao seu próprio tempo. É feito crer ao cidadão comum que não necessita ler tantos livros, com a Internet, pois poderá através do IPod e outros utensílios comunicantes consultar o que muito bem entender, na hora. O problema é que o cidadão consulta o que querem que ele consulte, que definam como consulta e que as temáticas são devidamente tratadas e filtradas, de forma que o cidadão fica sempres a saber o que querem que ele saiba e nada mais.

Uma “verdade sagrada” deste presente alienado é que vive-se num “eterno presente”, conforme a Time proclama em letras gordas e enormes, onde a memória histórica é preservada em Hollywood e outros templos mediáticos e as reflexões de cada um são limitadas às redes sociais, para criar um vazio completo, conducente á despersonalização. A verdade orwelliana sobre o controlo dos tempos (quem controla o passado controla o futuro e quem controla o presente controla o passado, conforme George Orwell escreveu no “1984”) é hoje uma evidência, cujos resultados estão á vista de todos, para que ninguém veja.

Os coreanos conhecem bem (e sentem na pele) as consequências do embuste. Os acontecimentos na península coreana após a II Guerra Mundial levaram á construção de uma realidade assente no binómio bem/mal, em que a guerra fria transformou os factos e desfez as realidades. No esquecimento ficaram massacres cometidos pelos bons, como os da ilha de Jeju, em 1948, onde as milícias do sul e soldados norte-americanos (todos, milicianos e soldados, dirigidos por oficiais norte-americanos) executaram cerca de 60 mil agricultores e pescadores que protestavam contra a divisão do país, forçada pelos USA em 1945. Este massacre, tal como outros ocorridos no mesmo período na península coreana, foi varrido da memória, assim como a campanha que hoje se desenrola nessa mesma ilha contra a construção de uma base militar dos USA, é varrida pelos órgãos da comunicação social.

A Coreia foi uma nação dividida pelo Paralelo 38, definido e traçado por Dean Rusk um oficial norte-americano que consultou o mapa durante a noite do dia seguinte ao do lançamento da bomba atómica sobre Nagasaki. O mito da boa Coreia (a do Sul) e da má Coreia (a do Norte) foi inventado, assim, por um tipo cuja única preocupação era colocar “os amarelos comedores de arroz na ordem e evitar que servissem de soldados para os vermelhos”. Para trás e no esquecimento ficou a epopeia histórica da resistência do povo da península coreana contra a ocupação japonesa e da sua luta contra o feudalismo. Esta memória foi apagada no preciso momento em que os norte-americanos, derrotando o Japão, ocuparam a ilha e desarmaram a resistência coreana que combateu o fascismo nipónico, porque suspeitavam que muitos dos resistentes eram “comunas”.

As atrocidade cometidas durante a Guerra da Coreia (1950-1953) são outra parte da memória que foi apagada. Morreram mais coreanos, durante este período de três anos, do que japoneses durante a II Guerra Mundial. No Norte da península os níveis de destruição das cidade foi muito elevado: 75% de Pyongyang foram varridos pelos bombardeamentos, Sariwon quase desapareceu e em Sinanju nenhum edifício ficou intacto. Os diques localizados a norte foram bombardeados, provocando imensos e destruidores tsunamis interiores. Populações inteiras e vastas áreas florestais e agrícolas sofreram bombardeamentos de napalm (e os efeitos eram observados e analisados pelos norte-americanos, não só os efeitos no ambiente e nas espécies vegetais e animais, como também nas pessoas).

Os bombardeamentos norte-americanos assolaram as terras do norte da Coreia, durante três intermináveis anos de sofrimento, moldando o solo e moldando o temperamento dos norte-coreanos, que aprenderam a viver nos abrigos, nas caves, nas montanhas e nos tuneis, criando um mundo subterrâneo que serviu de base para a reconstrução do país. O líder do governo instalado no norte da península, Kim Il Sung, liderou as guerrilhas contra o fascismo nipónico, uma longa luta armada iniciada em 1932. Derrotados os japoneses, entraram os norte-americanos. Desconheciam o percurso dos guerrilheiros e pouco ou nada sabiam da resistência coreana. Para os USA o desconhecido Kim Il Sung e o seu “bando” de guerrilheiros eram todos “comunistas adestrados por Estaline”.

Ao verificarem que não podiam tratar a Coreia como o quintal da nova vivenda, os USA iniciaram as suas habituais manobras de desestabilização e colocaram os seus agentes internos no terreno (grande parte dos agentes coreanos que colaboraram com os norte-americanos tinham colaborado com os japoneses). Criaram a maniqueísta ideia das duas Coreias (a “boa” Coreia, a Sul e a “má” Coreia a Norte) e puseram em práctica a sua invenção, através dos bombardeamentos indiscriminados.

É usual, quando se fala da Coreia do Norte, referir-se que é um país “estranho” e um regime “anacrónico”. Quanto dessa estranheza e desse anacronismo não foram causados pelos bombardeamentos intensivos, pelas cidades e aldeias transformadas em escombros e pelo napalm?

IV - O embuste (o da Síria, o da Ucrânia, o da Coreia…) é divulgado e praticado, também, em Angola. Podemos vê-lo e ouvi-lo na Televisão Publica de Angola (já foi Popular, como a Republica), podemos lê-lo em jornais de Angola (diários e semanários), ou apenas ouvi-los na rádio. Já sei, já sei…a liberdade de expressão, a liberdade de informação, o direito de opinião, etc., etc.. Mas o problema reside mesmo na liberdade e no direito inerente a uma sociedade democrática. Implica dois factores, essenciais em qualquer sociedade pluridimensional e aberta: o contraditório e a verdade. È que um não pode existir sem o outro. São factores dialécticos e complementares.

A liberdade de informar, a liberdade de expressão, o direito á opinião, o direito de informar e de ser informado, são assumidos como direitos e como liberdade, apenas na verdade dos factos e é em função da realidade que a todos nos rodeia que esses direitos são exercidos. E depois vem o contraditório, claro, como consequência da liberdade de exprimir a interpretação da realidade. Não é apenas uma questão deontológica ou ética (a ética é um elástico que estica em todas as direcções e a deontologia um chá que pode ser bebido com ou sem açúcar, quente ou frio, ao gosto do sujeito sobre o qual recai o objecto deontológico), é, isso sim, um ponto de honra, uma questão de dignidade e um acto de cidadania. Não é, portanto, de direito de opinião que se trata ou que se esteja a questionar (o que seria de mim sem a liberdade de expressão, de informação e de opinião…passaria o resto dos meus dias numa cela escura…), mas sim de embuste, de “pintar o cenário”, seja porque se escondeu a cabeça no chão, seja porque se esteja a precisar de uns “kumbus”, seja porque se é assumidamente embusteiro.

Os embusteiros têm vários níveis, não são todos iguais (são é todos farinha do mesmo saco). Uns residem no país, outros residem no exterior e outros, ainda, residem cá e lá. Uns são bajuladores militantes, outros rolhas que se direcionam com o vento e há também os do contra, que de forma decidida camuflam as suas frustrações. Muitos escribas, faladores e fotogénicos embusteiros quando se referem ao “regime sírio”, ao “regime pró-russo da Ucrânia” ou ao “regime norte-coreano”, fazem lembrar, em primeiro lugar, os outros embusteiros que falam de Angola referindo o “regime angolano” ou o “regime de José Eduardo dos Santos” ou ainda (já se ouve menos, pois nem mesmo os inimigos e adversários acreditam que o MPLA ainda seja um “partido de camaradas”) o “regime do partido dos camaradas”.

Mas isso seria de somenos importância (deslizes de linguagem), se não fosse o esquecimento de que a Síria, a União Soviética (que na época englobava a Ucrânia e a Rússia) e a Republica Democrática e Popular da Coreia, estiveram do lado do Povo Angolano (em diversos níveis de presença e de solidariedade) quando em 1975, após Angola conquistar a independência, foi forçada a combater os agentes internos e externos do neocolonialismo e do imperialismo (lembram-se do Mobutu e do apartheid?). Esquecem-se também (a falta de memoria é terrível) que estes países foram dos que estavam connosco quando comemorámos pela primeira vez o Carnaval da Vitória (lembram-se? Estamos a comemorar agora, mas recordam-se porque foi o Carnaval da Vitória?)

Serão estes esquecimentos provocados pelo “amigo alemão”, arteriosclerose, reumatismo encefálico ou paludismo cerebral? Serão saudades dos outros tempos? Serão os dólares a tilintar? Ou será que estamos na presença de embusteiros profissionais que trabalham pelo perpetuar do embuste através do apagar de memória e da lavagem cerebral? (independentemente de apresentarem sintomas de Alzheimer).

A propósito de esquecimento e de embuste… será que no outro dia li bem? Desfolhava eu pela manhã um jornal, quando li qualquer coisa sobre o “regime castrista” e “o comunismo dos irmãos Castro”…Não era nenhuma publicação “anticastrista” da Fundação Cubano-Americana, ou semelhantes. Era um jornal de Angola…e quem escrevia era um dos escribas do “regime de Angola”…Francamente! Cuba, o seu povo e o seu Estado, foram os mais solidários para connosco, nos momentos difíceis. O escriba que escreveu aquelas linhas escreveu-as porque muitos cubanos combateram lado a lado com os “combatentes angolanos, solidários com os povos oprimidos”. Esse foi um dos muitos factores que contribuiu para que ele hoje possa escrever, saiba ler e consiga exercer uma profissão. E mais…para que ele hoje tenha uma bandeira, uma pátria que é a sua e uma identidade.
Meus senhores (se é que ainda têm algo que se assemelhe a dignidade) tenham vergonha na cara! Não sejam embusteiros e não caiam no embuste!

Imagem: Picasso

Fontes
Cohen, Stephen Soviet Fates and Lost Alternatives: From Stalinism to the New Cold War Princeton University Press, 2013
Zinn, Howard A People’s History of the United States Free Press, 1980
Cumings, Bruce The Korean War: A History Chicago University Press, 2010

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