Rui Peralta, Luanda
I - O embuste é um
instrumento de dominó, utilizado em todas as épocas e lugares pelas elites
sobre os dominados. Na Politica Internacional foi eficazmente utilizado pelo
Ocidente através dos séculos e é, pelos mesmos, utilizado no presente. Sem
pretender recuar muito no tempo e sem querer diversificar exemplos, basta
recordar o caso do couraçado Maine, em 1898, na Baia de Havana, que serviu de
pretexto para os USA entrarem em guerra com a Espanha e ocuparem Cuba, Porto
Rico e Filipinas, ou, na segunda metade do século XX, os “ataques” vietnamitas
no Golfo de Tonquim e os recentes embustes das “armas de destruição massiva” no
Iraque ou os pretensos “massacres” de Bengasi, cometidos por Kadhafi.
Um dos vários
exemplos em curso é o da Síria. Com o propósito de “chegar rapidamente e em
força” a Teerão, o Império dos interesses pretendeu liquidar o governo sírio, o
Partido BAAS, a família al-Assad, destruir a Síria, manipular os equilíbrios
culturais do complexo e milenar mosaico comunitário sírio e deixar o povo sírio
na mais completa miséria. As cartas foram sendo colocadas na mesa á medida que
os acontecimentos se desenrolavam. Tudo começou com o aproveitamento efectuado
pela máquina da propaganda imperial dos primeiros protestos, legítimos, de
vários sectores da população. Os protestos degeneraram em confrontos com a
polícia, o governo sírio fez leituras erradas da situação, a burocracia síria
revelou a sua incompetência e inoperacionalidade. Em pouco tempo os sectores da
burocracia já estavam em concluiu com os sectores ligados aos interesses
estrangeiros enquanto os protestos e as razões para os protestos passaram para
segundo plano.
O declive criado
pelas leituras erróneas acabaram por acelerar o processo de decomposição do Estado
e das instituições e o país passou rapidamente a um estado de guerra civil,
camuflagem da agressão estrangeira. Todos os motivos servem de pretexto para
uma intervenção directa e massiva da NATO e motivos não faltavam, geralmente
criados pela ineficiência burocrática e rapidamente aproveitadas para servirem
de argumentos justificativos para a intervenção (uma das últimas “fábulas
sírias” criadas pela indústria mediática foi a do gás venenoso, fábula que
acabou por diluir-se no processo de inspecção em curso).
A guerra contra a
Síria foi iniciada em 2011 através da introdução de mercenários no país. Para
surpresa do Imperio a Síria resiste e é com preocupação que a NATO e os
petro-oligarcas do Golfo vêm os seus mercenários a serem derrotados pelo
exército sírio, que aos poucos ganha controlo no terreno. O Estado Sírio, as
suas instituições, as suas forças armadas, mantiveram-se firmes, porque
contavam com a legitimidade atribuída pela soberania popular. Ao reassumirem o
controlo da cidade de al-Qusair, junto á fronteira com o Líbano – ofensiva em
que contaram com o apoio do Hezbollah - as forças armadas sírias fecharam uma
importante via de acesso dos bandos armados, que penetraram até ao centro do
território com o objectivo de criar uma “zona livre” nas cidades de Hama e de
Homs, que os “combatentes da liberdade” pretendiam converter em “Bengasi”
(copiando a agressão que vitimou e destruiu a Líbia e que representou um duro
golpe desferido a todo o continente africano) para proclamar um “governo
independente” e criar obstáculos às comunicações entre o norte do território
(constituído por cidades importantes como Alepo e Idlib) e Damasco e impedir as
comunicações entre a capital e as principais cidades costeiras (Tartus, Banias
e Lataquia).
Os êxitos alcançados
pelas Forças Armadas Sírias, no teatro das operações militares, impulsionou a
provocação montada em torno das armas químicas e que levaram á acusação de que
o governo sírio estaria a usar gás sarin. Era necessário pressionar a todo o
custo, pois apenas a iminência de uma invasão poderia travar os reveses
sofridos pelos mercenários e pelos bandos da extrema-direita sunita, em fuga
para os países vizinhos. Os USA evitaram que os bandos ligados á Al-Qaeda – a
Frente al-Nusra e o Califado Islâmico para a Síria e o Iraque - recebessem o
grosso das armas e dos recursos fornecidos pela NATO, favorecendo o Conselho
Nacional Sírio (CNS) e o seu braço armado o Exercito Livre da Síria (ELS).
Desde a Turquia
foram criadas bases de apoio e “filtros” de informação nas áreas fronteiriças,
mais tarde alargadas á Jordânia. A análise dos conflitos anteriores, em
particular da guerra contra a Líbia, indica que apenas através da superioridade
dos meios aéreos se poderia alterar a situação militar a favor da NATO e dos seus
agentes no terreno. Mas esta conclusão pode ser considerada de alto risco. Se
na Líbia foi, efectivamente a Força Aérea da NATO a ter um papel decisivo no
desfecho da agressão (contando com uma apressada interpretação de uma resolução
do Conselho de Segurança da ONU) isso poderia não ser real na Síria. As Forças
Armadas Sírias estão preparadas – e com mais de 4 décadas de preparação – para
defender o território das agressões sionistas, possuindo para alem de uma vasta
experiencia de armamento e equipamentos modernos. Quando a NATO tentou testar a
reacção das forças armadas sírias a um eventual ataque aéreo, um caça turco foi
derrubado.
Por sua vez a Síria
conta com o apoio activo da Rússia, que na agressão cometida contra a Líbia,
permaneceu em posição passiva. Para além do apoio russo, o Irão constitui uma
componente fundamental para a quebra do bloqueio efectuado á Síria e a partir
do Líbano o Hezbollah (consciente de que com a queda do governo sírio, será o
próximo objectivo a atingir, antes do Irão, porque possuem uma elevada
capacidade militar e de informação - derrotaram o exercito sionista em 2006 – e
realizam operações surpreendentes, para alem de conseguirem golpear os seus
inimigos sionistas a centenas de quilómetros de distância) tem-se revelado de
grande importância ao participar nas ofensivas militares, assim como as
milícias curdas, que depois de uma fase em que ameaçaram aderir á oposição,
acabaram por negociar com o governo sírio e prestarem apoio (embora com
reservas) às forças armadas sírias.
Estes elementos de
dissuasão (Rússia, Irão, Hezbollah, curdos e resistência síria) são de elevada
importância nos cálculos da NATO. Mas também a falta de apoio interno a uma
guerra contra a Síria, manifesta em recentes inquéritos realizados pela CBS e pelo
New York Times, onde cerca de 70% da população opõe-se á agressão, é um factor
que provoca hesitação na administração Obama. O mesmo se passou com outro pilar
da NATO e da guerra contra a Síria, a Grã-Bretanha, que viu o parlamento
chumbar a iniciativa “guerreira” do governo conservador do primeiro-ministro
Cameron.
É certo que tanto
Kerry como Obama afirmaram recentemente que apesar dos acordos sobre a
eliminação do arsenal de armas químicas na Síria, efectuados com a Rússia, os
USA não colocaram de lado a hipótese do “uso da força”, ou seja da agressão e
invasão e de forma suspeita alguns fazedores de opinião da indústria mediática
internacional começaram a afirmar que o governo pode não cumprir os acordos,
transferindo parte do seu arsenal químico para o Hezbollah. Mas os USA não
precisam de tanto, bastando fazerem o mesmo que no caso do Iraque e pôr em
causa a credibilidade dos inspectores…
II - Embuste foi
também a técnica usada para desestabilizar a Ucrânia e conduzir o desenho de um
novo mapa de perfil geoeconómico, dividindo o país, que historicamente, assim
como no plano étnico, cultural, económico e político são dois países: um
próximo á História, cultura e sociedade russa, o outro próximo á Historia,
cultura e sociedade ocidental. A dinâmica interna ucraniana reflecte
permanentemente estes dois elementos, o que torna a Ucrânia uma presa fácil
para as elites europeias (que entraram num frenesim imperial, com o intuito de
alargarem a União Europeia, não mais do que um vasto mercado formado por mantas
retalhadas de interesses nacionais) e para os USA, que pretendem manter o seu
domínio, custe o que custar, nem que tenham de cartelizar os seus interesses
com os europeus, na Europa e em África.
No actual quadro
geoeconómico assiste-se a uma nova guerra fria, assente numa divisão
Ocidente-Oriente, que no contexto geopolítico continental euro-asiático,
repercute a histórica divisão do Imperio Romano, quando da cisão que gerou o
Imperio Romano do Ocidente, centrado em Roma e o Imperio Romano do Oriente, Bizâncio.
Esse fracionamento é actualmente reflectido não no quadro geopolítico, mas no
quadro geoeconómico e ameaça permanecer por largas décadas, sendo um potencial
foco de instabilidade politica, económica e social, em guerra latente. E este
foco é alimentado pelo Ocidente, mais particularmente pelos USA e pela U.E.
Quando na década de
90 a NATO iniciou a sua expansão na Europa de Leste e na Eurásia, o Ocidente
aproveitou a instabilidade vivida na região, gerada pelos primeiros passos da
Rússia pós-soviética. A administração Clinton, primeiro e a administração Bush,
logo de seguida, realizaram uma vasta operação de cerco e de infiltração na
Rússia, instalando-se nas suas fronteiras, através de bases da NATO e
infiltrando-se politicamente no país através das ONG criadas para o efeito.
Mais tarde foi a decisão de instalar misseis ao longo das fronteiras russas,
alegadamente contra o Irão. Depois chegaram os primeiros colonatos militares
norte-americanos (os “outposts comands”, geralmente de aconselhamento e
treinamento, como os da AFRICOM, para África, ou os diversos comandos criados
no combate ao “narco-terrorismo” na América Latina) enviados para a Geórgia, o
que gerou as escaramuças e a tomada de uma posição de força por parte da
Federação da Rússia, que levou ao “acanhamento” da Geórgia e dos interesses
ocidentais aí instalados.
O Ocidente acusa
Putin e o presidente ucraniano, Yanukovych (ainda presidente, pois não foi
oficialmente destituído e mantem o seu cargo, apesar de ter sido forçado a
exilar-se) de serem os criadores da instabilidade. Mas foi o Ocidente que gerou
a instabilidade quando a U.E. impôs ao governo ucraniano um ultimato: “Têm de
escolher entre a Europa e a Rússia”, foi com estas palavras que a U.E. saudou a
vitória de Yanukovych nas eleições. E como se isso não bastasse indicou ao
governo ucraniana um pacote de medidas no âmbito do FMI e do Banco Mundial, que
os ucranianos seriam obrigados a cumprir.
É célebre a reação
de Putin ao ultimato que a U.E fez á Ucrânia: “Porque tem de decidir a Ucrânia?
Estamos preparados para ajudar a Ucrânia a evitar o colapso económico, em
conjunto com o Ocidente. Façamos um acordo tripartido para a Ucrânia”.
Washington e Bruxelas rejeitaram a proposta russa e dessa forma precipitaram a
instabilidade. Mas será que a U.E. e os USA controlam a situação nas ruas de
Kiev? Que aconteceu aos lideres ucranianos “moderados pró-ocidentais”? Quando
os ministros das relações exteriores da U.E foram a Kiev que viram? Que os seus
“boys” perderam o controlo da situação e que a extrema-direita se apoderara das
ruas. Que bem ficaram nas televisões do mundo inteiro os responsáveis da
política externa europeia a falarem e a passearem-se pelas ruas de Kiev, com
slogans fascistas como ruido de fundo e cartazes nacionalistas e nada europeus
como cenário.
Que ouviram da boca
de um dos seus principais agentes no país, Arseny Yatsenyuk? “A única chance de
parar os protestos (…) é mover este conflito das ruas para o Parlamento (…)
Ninguém – e estou a ser muito franco ao dizer isto – nem o governo (…) nem nós
(…) controla a situação (…) existem forças fora de controlo, que comandam as
acções. Esta é a verdade! ” As forças a que o “moderado” Yatsenyuk (que
ambiciona chegar a presidente, embora não veja como) se refere são os partidos
nacionalistas de direita e os neofascistas, conforme ficou demonstrado numa
“fotografia de família” onde estão alguns responsáveis europeus a cumprimentar
alguns líderes “moderados” ucranianos (entre eles Yatsenyuk), tendo ao fundo,
inscrito numa porta de uma moradia: “Aqui vivem judeus”. E foi às mãos dessa
escumalha fascistoide que os apoios enviados por Bruxelas foram parar. Assim
como aconteceu com a Líbia, com as “Primaveras Árabes”, com a Síria…
Os “moderados” não
controlam nada, a não ser as suas contas bancárias e os seus lucrativos
negócios, sendo os bandos nazis os que assumem o controlo e usufruem das verbas
atribuídas pelo Ocidente aos “combatentes da liberdade e da democracia”.
Imagine-se o cenário pintado pelos fazedores de opinião e pela máquina de
propaganda Ocidental, quando pretende agredir um Estado soberano: centenas de
milhares de liberais, progressistas, moderados, gente decente, a desfilarem nas
ruas. E depois o que acontece? Perdem o controlo da situação e são substituídos
por bandos fascistoides e por mercenários. Que aconteceu aos centos de milhares
de liberais, progressistas e moderados? Aparentemente ficaram em casa...E que
acontece depois? As suas casas foram destruídas, avessadas, assaltadas…pelos
“combatentes da liberdade e campeões da democracia”!
O aproveitamento
das dinâmicas internas é, assim feito pelo embuste. Protestos legítimos são
transformados em “motins”, manutenção da ordem constitucional é transformada em
“violência repressiva” e “atentado aos direitos humanos” e a partir desse
ponto, o embuste torna-se “no stop”. A dinâmica interna é absorvida pela
dinâmica externa e os actores genuínos são postos fora de cena e substituídos
por duplos contratados pelos financiadores do filme. O argumento é o mesmo,
apenas muda o título e os cenários (umas vezes cidades rodeadas pelo deserto,
outas cidades rodeadas por selva tropical e outras, ainda, cidades onde neva
sem parar). Tudo devidamente empacotado e etiquetado, para poupar custos.
Analisemos as
marionetas que participam no embuste ucraniano, começando por Vitali Klitschko,
um dos mais proeminentes líderes da oposição pró-europeia. Reside na Alemanha,
paga impostos na Alemanha e é o representante da chanceler alemã Ângela Merkel
(a nível politico e ideológico é irmanado do partido de Merkel – a União
Democrata-Cristã e a sua associada da Baviera, a União Social-Cristã, daí a
sigla CDU/CSU – e é o representante dos interesses económicos da Alemanha). Mas
Klitschko tem vários problemas, a começar pela Júlia Tymochenko, que reúne um
carinho muito especial de Merkel, de Hollande, de Durão Barroso, de Obama e da
CIA, em particular. Esse carinho impede que Vitali Klitschko, por muito
germanófilo que seja, avance decidido para a liderança absoluta da oposição
pró-ocidental. Até porque os norte-americanos não têm um grande carinho pelo
homem (demasiado identificado com os interesses germânicos. Os USA não gostam
do papel de Merkel na Ucrânia, temendo um acordo da Alemanha com a Rússia) e a
França olha-o com alguma desconfiança.
Júlia Tymochenko
reúne, aparentemente, o consenso do Ocidente, mas a pena que cumpriu (foi
libertada durante os acontecimentos e após a queda do governo em Kiev, sem a
ter cumprido) originou uma corrida para a liderança, no seio da sua facção
dentro da oposição, pelo que a sua real força política é uma incógnita.
Yatsenyuk é um dos que aproveitou a prisão de Tymochenko para conquistar um
lugar de destaque na oposição (e conseguiu, pois é com ele que a Comissão
Europeia fala). Lidera o Partido da Pátria, com uma boa representação
parlamentar e tem a particularidade de ser o menino querido de Washington. Para
a administração Obama ele é o “our man”. Os alemães não gostam dele e os
franceses toleram-no. Mas os USA adoram-no e a Comissão Europeia não o deixa
ficar sozinho com os norte-americanos. Este é o panorama dos líderes moderados
da oposição ucraniana pró- Europa.
Depois vem o bloco
nacionalista da extrema-direita (que engloba a direita nacionalista,
tradicionalista e os neofascistas) o Svoboda, liderado por Tyagnybok. Os
europeus desconheciam-no e falaram com ele por acidente (perante o sorriso
trocista, mas discreto, de Merkel observando complacentemente o completo
desconhecimento que os seus colegas europeus têm da região. A chanceler alemã
não falou com ele, nem o abraçou e não surgiu no meio das bandeiras e dos
cartazes do Svoboda), mas o Senador norte-americano John McCain abraçou-o nas
ruas de Kiev.
Apresentadas as
marionetes principais e conhecendo os mestres manipuladores, poderemos esperar
um espectáculo de baixo nível…É que há saltimbancos que sabem manejar os
bonecos, mas também há os embusteiros. E quando são estes a mexer nos
cordelinhos, meus amigos, não vale a pena sair de casa para ir ver o
espectáculo. É um embuste…
III - O embuste é
um factor que tomou conta da História. É curioso (e trágico) verificar os
manuais de História que abundam nos programas de educação (deveriam ser
denominados “programas de condicionamento” pela carga ideológica que
transportam). Neles são visíveis as formas como as elites se apoderam da
memória e fazem do passado um tempo que limita-se a um espaço determinado, ao
seu habitat mítico. É a História dos poderosos, dos reis, dos senhores, dos
empreendedores, dos políticos, dos imperadores e dos imperialistas. Os historiadores,
tal como os jornalistas, são transformados em alquimistas assalariados, que
alteram, uns o passado, os outros o presente, em função das necessidades dos
seus patrões.
Este saque
efectuado á memória de todos nós (a memoria pública) produz estranhos efeitos
no presente, como, por exemplo, as projecções sobre o futuro (as utopias e as
atopias) ou as atitudes dos Homens no presente face ao passado e ao seu próprio
tempo. É feito crer ao cidadão comum que não necessita ler tantos livros, com a
Internet, pois poderá através do IPod e outros utensílios comunicantes
consultar o que muito bem entender, na hora. O problema é que o cidadão
consulta o que querem que ele consulte, que definam como consulta e que as
temáticas são devidamente tratadas e filtradas, de forma que o cidadão fica
sempres a saber o que querem que ele saiba e nada mais.
Uma “verdade
sagrada” deste presente alienado é que vive-se num “eterno presente”, conforme
a Time proclama em letras gordas e enormes, onde a memória histórica é preservada
em Hollywood e outros templos mediáticos e as reflexões de cada um são
limitadas às redes sociais, para criar um vazio completo, conducente á
despersonalização. A verdade orwelliana sobre o controlo dos tempos (quem
controla o passado controla o futuro e quem controla o presente controla o
passado, conforme George Orwell escreveu no “1984”) é hoje uma evidência, cujos
resultados estão á vista de todos, para que ninguém veja.
Os coreanos
conhecem bem (e sentem na pele) as consequências do embuste. Os acontecimentos
na península coreana após a II Guerra Mundial levaram á construção de uma
realidade assente no binómio bem/mal, em que a guerra fria transformou os
factos e desfez as realidades. No esquecimento ficaram massacres cometidos
pelos bons, como os da ilha de Jeju, em 1948, onde as milícias do sul e
soldados norte-americanos (todos, milicianos e soldados, dirigidos por oficiais
norte-americanos) executaram cerca de 60 mil agricultores e pescadores que
protestavam contra a divisão do país, forçada pelos USA em 1945. Este massacre,
tal como outros ocorridos no mesmo período na península coreana, foi varrido da
memória, assim como a campanha que hoje se desenrola nessa mesma ilha contra a
construção de uma base militar dos USA, é varrida pelos órgãos da comunicação
social.
A Coreia foi uma
nação dividida pelo Paralelo 38, definido e traçado por Dean Rusk um oficial
norte-americano que consultou o mapa durante a noite do dia seguinte ao do
lançamento da bomba atómica sobre Nagasaki. O mito da boa Coreia (a do Sul) e
da má Coreia (a do Norte) foi inventado, assim, por um tipo cuja única
preocupação era colocar “os amarelos comedores de arroz na ordem e evitar que
servissem de soldados para os vermelhos”. Para trás e no esquecimento ficou a
epopeia histórica da resistência do povo da península coreana contra a ocupação
japonesa e da sua luta contra o feudalismo. Esta memória foi apagada no preciso
momento em que os norte-americanos, derrotando o Japão, ocuparam a ilha e
desarmaram a resistência coreana que combateu o fascismo nipónico, porque
suspeitavam que muitos dos resistentes eram “comunas”.
As atrocidade
cometidas durante a Guerra da Coreia (1950-1953) são outra parte da memória que
foi apagada. Morreram mais coreanos, durante este período de três anos, do que
japoneses durante a II Guerra Mundial. No Norte da península os níveis de
destruição das cidade foi muito elevado: 75% de Pyongyang foram varridos pelos
bombardeamentos, Sariwon quase desapareceu e em Sinanju nenhum edifício ficou
intacto. Os diques localizados a norte foram bombardeados, provocando imensos e
destruidores tsunamis interiores. Populações inteiras e vastas áreas florestais
e agrícolas sofreram bombardeamentos de napalm (e os efeitos eram observados e
analisados pelos norte-americanos, não só os efeitos no ambiente e nas espécies
vegetais e animais, como também nas pessoas).
Os bombardeamentos
norte-americanos assolaram as terras do norte da Coreia, durante três
intermináveis anos de sofrimento, moldando o solo e moldando o temperamento dos
norte-coreanos, que aprenderam a viver nos abrigos, nas caves, nas montanhas e
nos tuneis, criando um mundo subterrâneo que serviu de base para a reconstrução
do país. O líder do governo instalado no norte da península, Kim Il Sung,
liderou as guerrilhas contra o fascismo nipónico, uma longa luta armada
iniciada em 1932. Derrotados os japoneses, entraram os norte-americanos.
Desconheciam o percurso dos guerrilheiros e pouco ou nada sabiam da resistência
coreana. Para os USA o desconhecido Kim Il Sung e o seu “bando” de
guerrilheiros eram todos “comunistas adestrados por Estaline”.
Ao verificarem que
não podiam tratar a Coreia como o quintal da nova vivenda, os USA iniciaram as
suas habituais manobras de desestabilização e colocaram os seus agentes internos
no terreno (grande parte dos agentes coreanos que colaboraram com os
norte-americanos tinham colaborado com os japoneses). Criaram a maniqueísta
ideia das duas Coreias (a “boa” Coreia, a Sul e a “má” Coreia a Norte) e
puseram em práctica a sua invenção, através dos bombardeamentos
indiscriminados.
É usual, quando se
fala da Coreia do Norte, referir-se que é um país “estranho” e um regime
“anacrónico”. Quanto dessa estranheza e desse anacronismo não foram causados
pelos bombardeamentos intensivos, pelas cidades e aldeias transformadas em
escombros e pelo napalm?
IV - O embuste (o
da Síria, o da Ucrânia, o da Coreia…) é divulgado e praticado, também, em
Angola. Podemos vê-lo e ouvi-lo na Televisão Publica de Angola (já foi Popular,
como a Republica), podemos lê-lo em jornais de Angola (diários e semanários),
ou apenas ouvi-los na rádio. Já sei, já sei…a liberdade de expressão, a
liberdade de informação, o direito de opinião, etc., etc.. Mas o problema
reside mesmo na liberdade e no direito inerente a uma sociedade democrática.
Implica dois factores, essenciais em qualquer sociedade pluridimensional e
aberta: o contraditório e a verdade. È que um não pode existir sem o outro. São
factores dialécticos e complementares.
A liberdade de
informar, a liberdade de expressão, o direito á opinião, o direito de informar
e de ser informado, são assumidos como direitos e como liberdade, apenas na
verdade dos factos e é em função da realidade que a todos nos rodeia que esses
direitos são exercidos. E depois vem o contraditório, claro, como consequência
da liberdade de exprimir a interpretação da realidade. Não é apenas uma questão
deontológica ou ética (a ética é um elástico que estica em todas as direcções e
a deontologia um chá que pode ser bebido com ou sem açúcar, quente ou frio, ao
gosto do sujeito sobre o qual recai o objecto deontológico), é, isso sim, um
ponto de honra, uma questão de dignidade e um acto de cidadania. Não é,
portanto, de direito de opinião que se trata ou que se esteja a questionar (o
que seria de mim sem a liberdade de expressão, de informação e de
opinião…passaria o resto dos meus dias numa cela escura…), mas sim de embuste,
de “pintar o cenário”, seja porque se escondeu a cabeça no chão, seja porque se
esteja a precisar de uns “kumbus”, seja porque se é assumidamente embusteiro.
Os embusteiros têm
vários níveis, não são todos iguais (são é todos farinha do mesmo saco). Uns
residem no país, outros residem no exterior e outros, ainda, residem cá e lá.
Uns são bajuladores militantes, outros rolhas que se direcionam com o vento e
há também os do contra, que de forma decidida camuflam as suas frustrações.
Muitos escribas, faladores e fotogénicos embusteiros quando se referem ao
“regime sírio”, ao “regime pró-russo da Ucrânia” ou ao “regime norte-coreano”,
fazem lembrar, em primeiro lugar, os outros embusteiros que falam de Angola
referindo o “regime angolano” ou o “regime de José Eduardo dos Santos” ou ainda
(já se ouve menos, pois nem mesmo os inimigos e adversários acreditam que o
MPLA ainda seja um “partido de camaradas”) o “regime do partido dos camaradas”.
Mas isso seria de
somenos importância (deslizes de linguagem), se não fosse o esquecimento de que
a Síria, a União Soviética (que na época englobava a Ucrânia e a Rússia) e a
Republica Democrática e Popular da Coreia, estiveram do lado do Povo Angolano
(em diversos níveis de presença e de solidariedade) quando em 1975, após Angola
conquistar a independência, foi forçada a combater os agentes internos e
externos do neocolonialismo e do imperialismo (lembram-se do Mobutu e do
apartheid?). Esquecem-se também (a falta de memoria é terrível) que estes
países foram dos que estavam connosco quando comemorámos pela primeira vez o
Carnaval da Vitória (lembram-se? Estamos a comemorar agora, mas recordam-se
porque foi o Carnaval da Vitória?)
Serão estes
esquecimentos provocados pelo “amigo alemão”, arteriosclerose, reumatismo
encefálico ou paludismo cerebral? Serão saudades dos outros tempos? Serão os
dólares a tilintar? Ou será que estamos na presença de embusteiros
profissionais que trabalham pelo perpetuar do embuste através do apagar de
memória e da lavagem cerebral? (independentemente de apresentarem sintomas de
Alzheimer).
A propósito de
esquecimento e de embuste… será que no outro dia li bem? Desfolhava eu pela
manhã um jornal, quando li qualquer coisa sobre o “regime castrista” e “o
comunismo dos irmãos Castro”…Não era nenhuma publicação “anticastrista” da
Fundação Cubano-Americana, ou semelhantes. Era um jornal de Angola…e quem
escrevia era um dos escribas do “regime de Angola”…Francamente! Cuba, o seu
povo e o seu Estado, foram os mais solidários para connosco, nos momentos
difíceis. O escriba que escreveu aquelas linhas escreveu-as porque muitos
cubanos combateram lado a lado com os “combatentes angolanos, solidários com os
povos oprimidos”. Esse foi um dos muitos factores que contribuiu para que ele
hoje possa escrever, saiba ler e consiga exercer uma profissão. E mais…para que
ele hoje tenha uma bandeira, uma pátria que é a sua e uma identidade.
Meus senhores (se é
que ainda têm algo que se assemelhe a dignidade) tenham vergonha na cara! Não
sejam embusteiros e não caiam no embuste!
Imagem: Picasso
Fontes
Cohen, Stephen http://www.thenation.com/article/178344/distorting-russia
Cohen, Stephen
Soviet Fates and Lost Alternatives: From Stalinism to the New Cold War
Princeton University Press, 2013
Zinn, Howard A
People’s History of the United States Free Press, 1980
Sem comentários:
Enviar um comentário