terça-feira, 24 de junho de 2014

PORTUGAL ENFORCADO



Nuno Ramos de Almeida / jornal i, opinião

Em Portugal a corrupção não é um desvio do sistema, é a própria normalidade, num regime em que os pobres pagam os prejuízos do bancos e os ricos têm o dinheiro na Holanda

O responsável máximo da fundação do Pingo Doce, um think tank inteligente do neoliberalismo, declarou, ao jornal i, que os juízes do Tribunal Constitucional tinham mentalidade de funcionários públicos. Como se isso fosse um insulto, como se ser professor, médico, polícia, homem do lixo, funcionário de uma autarquia, bombeiro e enfermeiro desqualificasse as pessoas e significasse que andam a roubar o dinheiro dos outros.

Para certa gente, servir a população é um crime. Todos os serviços públicos e o Estado social são vistos como privilégios de madraços e coisas que em última instância estão a impedir algum negócio chorudo de um amigo privado.

No fundo o Sr. Garoupa tem alguma razão: neste país há duas atitudes mais pronunciadas, uma espécie de ideal de tipo weberiano, que resumiriam as atitudes em disputa: por um lado, temos a maioria da população, que tem "mentalidade de funcionário público", por outro lado, temos os governantes, as fundações, que justificam o nosso sistema, e as elites económicas, que têm mentalidade de banqueiro.

É essa atitude que permite o Sr. Ricardo Salgado ir ter com o primeiro-ministro, que ele ajudou a colocar no poder, e pedir 2500 milhões de euros para tapar um dos buracos no BES. Mentalidade de banqueiro é aquela que acha natural que os lucros da especulação sejam para os accionistas e os prejuízos dessa nobre actividade sejam pagos pelo contribuinte. Foi o que funcionou até agora. Nós pagamos os BPN, os BCP, as parcerias público-privadas e os swaps especulativos com os nossos ordenados, impostos e reformas. Infelizmente, para o líder do BES aproximam-se as eleições e nem mesmo Passos Coelho o pode salvar e tirar mais 2500 milhões de euros da cartola que alimentou tanto rico com o nosso dinheiro.

Mas não sejamos cegos, a crise continua a ser uma máquina ideológica que destrói a vida da maioria da população, aquela que tem a "mentalidade de funcionário público", e permite salvar os negócios da casta que manda neste país. No meio da maior crise que a Europa viu desde a Segunda Guerra Mundial, os mais ricos viram crescer a sua riqueza individual. É caso para usar uma expressão, do na altura primeiro-ministro Cavaco Silva, sobre alguns dos empreendedores portugueses dos anos 80: "Há milionários prósperos que são donos de empresas falidas."

Nos países da periferia da Europa a corrupção não é um acidente. Ela não é combatida pelo sistema porque é a própria garantia da manutenção das elites e da casta que manda e lucra. O capitalismo rentista, em que as fortunas são feitas à conta do Estado e do contribuinte, tem a desigualdade económica e política como condição de existência. Só uma sociedade em que a maioria da população é expulsa do campo da decisão política permite o seu roubo e empobrecimento continuado.

Mas de tanto puxar a corda, as coisas são cada vez mais voláteis. É por isso que ninguém pode dizer que o rei vai nu. Só assim se percebe que um estudante da Universidade do Algarve esteja a responder em tribunal por ter feito uma obra em que denunciava a situação no país. Como fez uma instalação em que enforcava a bandeira nacional, pode ir preso. Aqui em Portugal quem denuncia a pouca-vergonha pode acabar na cadeia, aqueles que na realidade enforcam o país e roubam a sua população ainda ganham medalhas de comendadores.

Editor-executivo / Escreve à terça-feira

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