domingo, 20 de julho de 2014

A ESTEPE (2)



Rui Peralta, Luanda (conclusão) – Ler A ESTEPE (1)

V - Muitas das empresas que conhecemos hoje e uma grande parte dos grupos económicos mais influentes do mercado global tiveram origem nos mercados ilegais que predominaram em 1945, actuando num cenário dantesco de escombros, fome e miséria. Muitas das empresas industriais italianas, a maioria das fortunas japonesas feitas no sector imobiliário e aplicadas posteriormente nas indústrias e finanças e grande parte dos negócios que impulsionaram a actual robustez da Alemanha, iniciaram-se de forma predatória. Foi no mercado ilegal e nas redes de distribuição do mercado informal que - á maneira das hienas - os empresários da época acumularam o capital que os conduziu às "nobres virtudes éticas".

Algumas das principais empresas metalúrgicas e de maquinaria, italianas (que preenchiam a paisagem da Emilia-Romagna) foram equipadas com máquinas, ferramentas e equipamentos diversos pilhados aos comboios da Wehrmacht abandonados nos carris, quando do avanço dos aliados em 1943. No Japão alguns dos grandes "samurais" da indústria eram senhores do jogo, proxenetas, fornecedores de cigarros, de carne enlatada e vestuário, desviados dos armazéns militares norte-americanos. Na Alemanha do após II Guerra os bordéis, os clubes nocturnos e o proxenetismo foram o prelúdio de muitas carreiras empresariais nos sectores químicos, farmacêuticos e construção. Outros preferiram as bebidas alcoólicas, alimentos e vestuário (tudo desviado dos armazéns militares norte-americanos e ingleses), aplicando depois os seus lucros na compra de locais bombardeados, aguardando, tranquilos, pela rápida valorização da propriedade. Por toda a Europa em escombros, acabada a guerra, as matilhas adquiriram ruinas e restos da guerra, para venderem fragmentos metálicos á metalurgia, ou tecido às fábricas de vestuário. Foi desta forma que os resíduos da guerra tornaram-se os primeiros produtos da paz.

No espaço soviético, nos finais da década de 80 e durante a década de 90, ocorreram situações similares ás da Europa Ocidental e do Japão pós-guerra. É necessário, no entanto, recordar que a economia soviética caracterizava-se por produção em grande escala (directamente proporcional ao enorme desperdício). Em 1989 produzia cerca de 6 kW per capita (quase o dobro da Itália, no mesmo ano), 557 kg, per capita, de aço (contra 382 kg dos USA), 119 kg, per capita, de fertilizante mineral (contra 12 kg do Japão) 488 kg, per capita, de cimento, contra 469 kg da França, 1,9 tractores agrícolas por mil pessoas (contra 1,3 da RFA) e nem a sua produção de carne, nesse ano (70 kg per capita) era tão baixa (32 kg no Japão, 63 kg em Itália, 96 kg na RFA e 120 kg nos USA.

Quanto ao desperdício...basta referir o pesadelo que representava para o consumidor soviético adquirir manteiga, ou as conexões que teria de estabelecer para comprar um par de sapatos com um mínimo de qualidade. A politica de defesa consumia 30% do PIB da URSS e muitos economistas fazem um grande alarido desse facto esquecendo-se, no entanto de referir que a diferença entre a produção de elementos básicos e o fornecimento de produtos acabados, prontos para consumo e realmente utilizados pelo consumidor soviético é muito superior a 30%. Ora, o que acontecia, então, a este excedente?

A explicação reside na ineficácia e na incapacidade da economia soviética em explorar ao máximo os seus recursos. Matérias-primas de qualidade entravam na industria ligeira para gerarem produtos acabados de muito baixa qualidade. Mas também a industria pesada sofria do mesmo mal. O ferro, o aço e o cimento utilizados na construção, eram desperdiçados porque o ritmo lento da construção (5 anos era a média para edifícios de habitação) fazia com que o cimento secasse nos sacos e o ferro enferrujasse antes de ser usado. Na agricultura dezenas de milhar de tractores eram anualmente substituídos por falta de manutenção. Toneladas de ferragens apodreciam nos celeiros e o mau uso dos fertilizantes e dos pesticidas aumentavam os índices de desperdício e reduziam a produção. Seria, pois, inevitável um processo de restruturação económica, com o objectivo de "limar as arestas". Mas o problema não era o desgaste das arestas...O desgaste maior - e mais perigoso - era o das elites.

VI - Para lá de todas as esperanças suscitadas no movimento operário (que a impulsionou e a tornou possível), a revolução russa de Outubro de 1917 revelou-se um sofisticado mecanismo de renovação das elites. Em Fevereiro do mesmo ano a burguesia russa tentou a sua sorte mas os tempos eram demasiado conturbados para o projecto liberal democrático. Em Outubro (Novembro) a Rússia retoma a sua posição intercontinental, aproveitando a força do movimento operário, adoptando o marxismo como discurso ideológico, encetando o modernizador projecto que efectivou a revolução industrial nas suas fronteiras.

A ausência de mecanismos democráticos torna violentos os rejuvenescimentos das elites. A democracia liberal era demasiado frágil e não teve tempo para implementar os seus mecanismos institucionais, limitando-se a um czarismo constitucional. Os mecanismos burgueses sustentados pela democracia politica não estavam suficientemente implantados na sociedade russa. O proletariado, ao nível das suas estruturas de classe praticava os procedimentos democráticos e constituía ilhas de democracia (os sovietes, por exemplo) mas sem força suficiente para implementar o seu projecto democrático de sociedade, em ruptura com a solução liberal, assumindo (porque para essa posição foi empurrado pela repressão) um posição insurreta. 

Os bolcheviques, nascidos no seio da social-democracia russa (e nela morrendo 80 anos depois) eram uma elite intelectual e administrativa que optaram por uma posição de proximidade ao movimento operário, infiltrando os sovietes e adoptando o discurso marxista-revolucionário, para melhor se demarcarem das posições reformistas dos sociais-democratas russos. Com a chegada ao poder, os bolcheviques - por serem uma elite intelectual e administrativa - minaram facilmente as instituições criadas na revolução e o aparelho de estado, acolhendo no seu seio os funcionários administrativos do aparelho czarista, que para manterem as suas funções e empregos trocaram rapidamente as imagens e símbolos do czar pelos retratos de Lenine e substituíram nos seus gabinetes a águia bicéfala pela foice e martelo com fundo vermelho. Dominado o aparelho do Estado e utilizando a guerra civil para submeter os sovietes, a nova elite abriu o caminho para o seu domínio.

Em 1939 os burocratas bolcheviques constituíam uma massa de 15 milhões de habitantes, socialmente distintos, usufruindo de privilégios inacessíveis á maioria da população - absorvida e desbaratada pelo esforço de trabalho da campanha stakhanovista - e que tragavam 40% da produção. O plano económico foi um assunto exclusivo da burocracia e os investimentos, realizados á conta do erário público, feitos em função dos interesses da camada dirigente. A burocracia estabeleceu uma rede interna de interesses comuns entre as diversas camadas e funções (funcionários, técnicos, policias, militares, jornalistas, académicos, intelectuais, dirigentes sindicais, ou seja, o Partido) que estava acima de qualquer crítica e responsabilidade. Os erros e os desvios em relação às metas estabelecidas pelos planos económicos eram atribuídos aos trabalhadores e não aos planificadores (quando a burocracia criticava ou atribuía responsabilidades a um dos seus era porque havia conflitos internos que terminavam com a vitoria de uma das facões e a expulsão da derrotada.

As "purgas" eram um mecanismo de renovação das elites e o partido um grande aviário para a reprodução das diversas camadas da elite). Os tubarões sindicais, convertidos em funcionários) colocados entre os trabalhadores, tinham como função obter informações sobre o descontentamento laboral e impedir greves (neste contexto não existiam grandes divergências entre a burocracia sindical soviética e a norte-americana). A força de trabalho foi convertida em trabalho forçado e os proletários russos, de facto, não morreram da "doença" capitalista, mas sim da "cura" socialista. Desprovido de tudo (até dos seus direitos, tão formais que eram virtuais, o que se coadunava com o formalismo socialista que servia de camuflagem ética á elite burocrática) o proletariado soviético via como a posse do Estado conferia á burocracia a posse dos bens móveis e imóveis "socializados".

Quanto á "revolução internacional", uma premissa fundamental da mitologia bolchevique (e de todas as concepções proletárias não reformistas, marxistas revolucionárias ou anarquistas) foi colocada na gaveta (em virtude da sua não realização). Estaline arrumou de vez a questão, russificando o assunto com a tese oficial do "socialismo num só país" (este fenómeno ocorreu na China, Indochina, Cuba e outros e prende-se com a necessidade das elites - sejam administrativas ou de mercado - apenas poderem implementar-se e desenvolver-se no espaço nacional. Surgem com uma componente cosmopolita e evoluem depois para o espaço ultranacionalista e identitário, em virtude de afirmarem o seu domínio no mercado nacional. Poderão depois voltar a um discurso global, se tiverem, caso dos BRICS, as ferramentas necessárias para actuar no mercado mundo, em circunstancias competitivas com os centros globalizados).

Foi esta elite que esgotou a sua capacidade de rejuvenescimento e de reprodução, recorrendo ao mercado (decorrente dos escombros) para injectar sangue novo.

VII - A Federação Russa nasce deste cruzamento, gerando um compromisso entre as agressivas elites de mercado e as renovadas (e reproduzidas) elites administrativas. É a continuidade do processo iniciado com a formação do Estado russo, afirmando-se, desde então, como centro da Eurásia. As tentativas para transformarem a Rússia numa periferia da Europa goram-se perante a imensidão de culturas e esbatem-se num modelo de Estado que poucas alterações sofreu. O capitalismo liberal representaria a periferização da Rússia. 
A opção pelo capitalismo de estado -de facto não é uma opção, mas sim o único modelo que consegue entrecruzar-se com as elites administrativas formadas sob a égide de Bizâncio e que prevaleceram até á actualidade, através do lento processo de rejuvenescimento que as caracteriza - permitiu levar por diante a revolução industrial e o enorme esforço modernizador que se esgotou no modelo soviético. A economia russa que em 1985 caracterizava-se por um papel interventivo total das autoridades estatais centrais, regionais e/ou locais na indústria e serviços e quase total na agricultura, apresentou em 1998 uma substancial redução do papel do estado nos serviços e na agricultura, mantendo o estado o seu papel na indústria, papel que actualmente ainda é considerável, embora nos serviços e agricultura seja muito reduzida. A banca privada e a pública partilham o mercado e existem algumas restrições á actividade bancária e bolsista. Não existe planificação centralizada da economia e tem um reduzido grau de regulamentação e licenciamento.

As relações com os dois blocos orientais (China e India) são boas e partilham uma opção estratégica que pela primeira vez move a Ásia e a Eurásia para além dos seus espaços continentais, envolvendo-se na América do Sul e em África através dos BRICS, com o Brasil e a África do Sul. Óbvio que as contradições com a China (e não apenas devido ás contradições nas respectivas periferias) poderão acentuar-se com o desenrolar das dinâmicas de desenvolvimento (é bom não esquecer que nos anos 60 e 70 estas divergências acentuaram-se).

De momento a concertação de interesses aponta para um reforço da coligação e para um eventual alargamento. Os recentes acontecimentos da Ucrânia e a forma hábil como a Federação Russa lida com o assunto (oposto á inabilidade europeia, excepto a Alemanha que tem a sua agenda bem definida a Leste) demonstra as intenções russas em enquadrar o espaço euroasiático de forma privilegiada na economia-mundo. O "ocidente livre" terá de rever o seu posicionamento em relação á Eurásia. É tempo de a Europa considerar a Rússia como um parceiro estratégico que tem duas grandes vantagens: 1) não está do outro lado do Atlântico; 2) existem, entre russos e europeus, cruzamentos históricos que prendem-se com a formação das respectivas identidades.

Ou será que a Ocidente a identidade centra-se em torno de si próprio, sendo todos os outros o "Outro", ou melhor, o oposto á sua mistificação? Ou estaremos na presença de um “espelho meu” que diz ao Ocidente que, afinal, ele não é tão belo assim…

Fontes
Aslund, A. How Russia became a market economy Brookings Institution, Washington, 1995.
Groh, D. La Rússia e l'autocoscienza d'Europa Einaudi, Turim, 1980.
Yanov A. The origins of autocracy University of California Press, Berkeley, 1980
Irwin, D. Against the tide: an intellectual History of free trade Princeton University Press, Princeton, 1996
Amin, S. Les defis de la mondialisation P.U.F., Paris, 1996
Rizzi, B. A burocratização do mundo Antígona, Lisboa, 1989
Luttwak, E. Turbo capitalism Ocean, London, 1998
Luttwak, E. Strategy: the logic of war and peace Harvard University Press, Harvard, 1987
Heritage Foundation / Wall Street Journal - Index of economic freedom - 1985/2013

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