Público,
editorial
Em
1999, as milícias pró-indonésias destruíram Timor Leste à frente dos nossos
olhos. Não foram só as casas e os edifícios públicos que ficaram em pó. De um dia para o outro,
desapareceram do país praticamente todos os quadros porque os quadros eram
sobretudo ocupados por indonésios, não por timorenses. Raras vezes na história
a ideia do “nascimento” de uma nação foi tão literal. Os timorenses não
começaram do zero absoluto. Tinham a sua cultura, língua e costumes. Mas se
pensarmos em democracia falar em zero não é exagero.
Nada
disto pode ser ignorado quando pensamos na incrível decisão do governo
timorense de expulsar os magistrados estrangeiros, entre os quais alguns
portugueses. O sistema de justiça timorense tem 12 anos. Começou a ser
construído do zero, quando não havia um tribunal em pé e, mais importante,
nenhum magistrado. Quando em 2000, com o país em cinzas, as Nações Unidas
começaram a reconstruir o país, distribuíram panfletos de helicóptero a pedir
em tetum e bahasa indonésio algo do tipo: “Se estudou Direito ou trabalhou num
tribunal, fale connosco”. Apareceram 17 timorenses. Este foi o ponto de
partida. Pouco depois, foram nomeados 25 juízes, 13 procuradores e nove
defensores oficiosos. Todos tinham estudado em universidades indonésias e quase
todos tinham sido confinados a tarefas laterais na justiça. Quando começaram,
tiveram de mergulhar num corpo legal novo (e desconhecido), com leis em
português (uma língua desconhecida) e tradutores fracos.
Dez
anos depois, um relatório independente escrevia isto: “Treze juízes, independentemente
do seu mérito e dedicação, simplesmente não conseguem dar resposta às
necessidades de justiça de mais de um milhão de pessoas espalhadas pelo país,
muitas delas em áreas remotas.” Segundo a ONU, há hoje 17 juízes, 15
procuradores e 11 defensores oficiosos timorenses. A estes, juntavam-se cerca
de 50 profissionais de justiça estrangeiros, 10 dos quais juízes. Numa frase, a
justiça timorense é isto. A que se somam os problemas descritos em pormenor em
inúmeras avaliações, como a da ONG local Judicial System Monitoring Programme,
que há uns meses fez inspecções e encontrou tribunais sem um único computador a
funcionar, sem livros de Direito, sem email e mesmo sem electricidade.
Numa
década não se constrói um sistema judicial. Sobretudo num país onde 50% dos
adultos são analfabetos e 50% da população vive abaixo do limiar da pobreza. O
primeiro-ministro Xanana Gusmão fala em “interesse nacional” para justificar as
expulsões. Fala dos magistrados portugueses como se tivessem cometido um crime
de enorme gravidade. Nada nem nenhuma insatisfação em relação ao seu trabalho
justifica um tratamento tão humilhante. A arrogância demonstrada pelo poder
timorense poderá ter explicações várias. Os timorenses querem ter o controlo
sobre os destinos do seu país. Imaginaram que o processo de “capacitação” dos
seus quadros seria mais rápido. Que os estrangeiros deveriam ser apenas
assessores e mentores e não decisores. Poderão ter desejado não perder nenhum
caso em tribunal. É legítimo. Mas é no mínimo injusto transformar os
estrangeiros em bodes expiatórios para a sua frustração.
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