segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Portugal: A RÁBULA DE PIRES DE LIMA



Tomás Vasques – jornal i, opinião

Há quem olhe para esta intervenção do ministro Pires de Lima como uma salutar irreverência a quebrar o cinzentismo a que os deputados nos habituaram

O senhor ministro da Economia, o centrista Pires de Lima, deu início, numa audição, a um novo estilo de discurso parlamentar. Usando a ironia, e alguma lábia, montou uma paródia, bem ensaiada, do género revisteiro, para responder aos deputados. Não faltou sequer o arrastar da voz, a imitar o actor Camilo de Oliveira, quando este cantava "ai Agostinho, ai Agostinha, que rico vinho". O estilo encontrado pelo senhor ministro, profusamente divulgado e parodiado, como facto insólito, na comunicação social e nas redes sociais, teve um inegável mérito: esconder que estava ali o representante do governo que mais "taxas e taxinhas" criou em Portugal, pelo menos nos últimos 40 anos, associando essa responsabilidade a António Costa, o líder do maior partido da oposição. O que quer dizer que a rábula, nesse sentido, funcionou. Mas, se a moda pega, e todos os deputados, nas suas intervenções adoptarem o novo estilo, ressuscita-se finalmente o teatro de revista, e o Parque Mayer renasce no Palácio de São Bento.

Há quem olhe para esta intervenção do ministro Pires de Lima como uma salutar irreverência a quebrar o cinzentismo a que os deputados nos habituaram. Sabemos que o Palácio de São Bento, noutros tempos Palácio das Cortes, hoje, da Assembleia da República, em regra foi palco, desde 1834, da mais assustadora mediocridade nacional. Cito Eça de Queirós: "A deputação é uma espécie de funcionalismo para quem é incapaz de qualquer função." E o autor das Farpas, escrevia que os portugueses seguiam os debates parlamentares com a "mesma distração com que ouviam falar dos negócios do Cáucaso". Estávamos em 1871, ano em que o primeiro-ministro da altura, o regenerador Fontes Pereira de Melo, proibiu as Conferências do Casino. Pouco ou nada mudou, desde então: há dias, o director da Faculdade de Direito de Coimbra proibiu um debate naquela faculdade pelas mesmas razões, sem que os nossos parlamentares tivessem a dignidade de um sobressalto democrático. O primeiro-ministro da altura disse que os "conferencistas não passam de meia dúzia de desvairados". Referia-se a Eça de Queirós, Antero de Quental, Teófilo Braga, Oliveira Martins e Manuel de Arriaga. Os "preguiçosos e patéticos" de hoje. A história repete-se, seja como tragédia ou como farsa.

Mas a mediocridade parlamentar, alternou com grandes intervenções políticas e com aguerridos debates parlamentares, onde a defesa das ideias políticas se fez com fina ironia e muito sarcasmo. Com agressividade, humor e irreverência, mas com um recorte literário que há muito se perdeu. Pelo Palácio de São Bento passaram alguns dos nossos melhores escritores, como Pinheiro Chagas e Guerra Junqueiro, para lembrar dois exemplos politicamente opostos que deram lustre àquela casa. E algumas afrontas políticas foram tratadas à bengalada. Pinheiro Chagas, um brilhante parlamentar, reacionário até à medula, apanhou umas valentes bengaladas, nas galerias do parlamento, dadas por um professor primário, anarquista, na sequência de uma polémica, nos jornais, sobre a Comuna de Paris. E, ali, em 1906, Afonso Costa proferiu o seu famoso discurso em que antecipa o assassinato do Rei, e a queda da Monarquia, ao dizer: "Por muitos menos crimes do que os cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XVI".

Ao contrário, a "irreverência" que o ministro Pires de Lima introduziu no debate parlamentar tem mais a ver com parolice do que com literatura; tem mais a ver com brejeirice do que com fina ironia; tem mais a ver com anedotário do que com política.

PS - A coordenadora da "Agenda para a Década" proposta por António Costa, durante um programa da TSF, em que participava por telefone, incomodada com as perguntas do jornalista, desligou-lhe o telefone na cara, deixando-o a falar sozinho. Esta atitude revela, obviamente, falta de humildade democrática. Depois não se queixem dos cidadãos escaldados de tanto engano, dizerem: "Isto é tudo a mesma coisa".

Jurista. Escreve à segunda-feira

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