Pedro
Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
Poderemos
acreditar, como pretende o Governo e o seu vice-primeiro-ministro, que a
implicação de altos funcionários do Estado no escândalo dos vistos gold é um
mero incidente ou caso de rotina?
A
mesma Europa que condena à morte por afogamento os milhares de imigrantes e
refugiados que se aventuram a cruzar o Mar Mediterrâneo na tentativa de
alcançar as suas praias, escancara as portas das suas muralhas e concede vistos
de ouro aos estrangeiros endinheirados que se deixam seduzir pela miragem de paz
e abundância com que engana uns e outros. A Europa "fortaleza",
acantonada no interior das fronteiras externas dos estados- membros, parece
ambicionar o mesmo destino que condena ao declínio os "estados-nação"
que a integram. Esta é a caricatura mais trágica da venalidade e da degradação
a que chegaram os velhos "estados soberanos"! Das fronteiras que
retalham o continente africano, diz-se que são artificiais. Mas não são menos
artificiais que todas as outras, incluindo as europeias. Basta conferir as
datas das mais recentes alterações do mapa político da Europa, por exemplo, nas
duas "Alemanhas", na antiga Jugoslávia ou, ainda em processo de
atualização, na Ucrânia e na Crimeia...
Ao
"artificialismo" das fronteiras, liga-se, imediatamente, o pretenso
"artificialismo" da construção política dos "estados" e das
conquistas seculares das revoluções liberais e das instituições democráticas.
Os ultraconservadores correntemente designados por "neoliberais",
pretendem contrapor ao "artifício político" do "Estado de
direito", a autenticidade, a espontaneidade e a genuína
"naturalidade" dos "mercados". Provavelmente nunca leram
Adam Smith e, seguramente, nunca refletiram sequer sobre o significado do
título que ele escolheu para a sua principal obra de referência: "A
riqueza das nações". A construção moderna do "Estado" não é mais
artificial nem mais recente do que a construção política dos
"mercados" modernos. As revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX -
de que as democracias constitucionais contemporâneas são legítimas herdeiras -
não visaram apenas derrubar os monarcas absolutos. Pretendiam, igualmente,
destruir os vínculos senhoriais arcaicos que, à sombra do absolutismo
monárquico ou da opressão colonial, continuavam a constranger o florescimento
cultural e o dinamismo económico do "Ocidente" sob o "antigo
regime". As "leis do mercado" não descrevem o funcionamento
ideal de uma sociedade previamente "despolitizada". Pelo contrário, a
sua força vinculante decorre do mesmo quadro legal e político que promove a
representação democrática, garante os direitos humanos ou prevê a contratação
coletiva tal como defende a livre concorrência, combate a fraude ou assegura a
indemnização dos cidadãos lesados pelo não cumprimento de um contrato. O
problema mais grave que agora nos coloca a desregulação económica e financeira
internacional, é que o enfraquecimento dos estados condena à irrelevância o
poder político democrático que neles arduamente se tinha instituído, sem que se
tenha encontrado até hoje sucedâneos adequados. O ceticismo antropológico dos
novos "ideólogos" é apenas o disfarce populista de um projeto
planetário de efetivo retrocesso civilizacional.
Um
episódio anedótico oferece-nos demonstração flagrante das motivações
ideológicas, porventura inconscientes, dos arautos da nova barbárie. Refiro-me
à obstinação com que o Governo e a ministra das Finanças, em audição
parlamentar, recusam assumir qualquer responsabilidade na solução adotada para
acudir à falência do Banco Espírito Santo, segundo eles, decisão da exclusiva
responsabilidade do governador do Banco de Portugal e do Banco Central Europeu.
De facto, sistematicamente lavam as mãos de todas as responsabilidades
políticas: são meros agentes da vontade dos mercados ou dos interesses dos
credores. Por isso, o primeiro-ministro pode dizer que não se preocupa com
eleições: porque despreza intimamente o princípio da legitimação democrática
dos órgãos de soberania!
É
este o mais sério desafio que enfrentamos: um combate cívico, político e
ideológico, jurídico e doutrinal, a que não podemos dar tréguas.
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