Nuno
Ramos de Almeida – jornal i, opinião
Depois
da manifestação privada dos governantes longe dos povos, e rodeada de guarda-costas, devíamos perceber que o fundamentalismo é mais que um bando de loucos
Não
parece que estranho que os povos do livro, Torah, Bíblia e Corão, tenham vivido
em zonas de deserto. Quando olhamos as estrelas no meio das dunas tudo parece
mágico. As constelações têm densidade. A história do universo parece evoluir de
uma forma abrupta e real aos nossos olhos.
Fui
duas vezes ao Sara ocidental, em reportagem às zonas controladas pelos
guerrilheiros da Polisário. Estive com um povo que foi expulso de suas casas,
dizimado e torturado, a que não restou mais que fugir sob perseguição e
bombardeamentos pelos infernais caminhos do deserto. Vivem há 40 anos em
acampamentos de refugiados, numa das zonas mais inóspitas do planeta, à espera
de justiça por parte da chamada comunidade internacional. São mais de 100 mil
aqui presos e encafuados, numa vida a que retiraram toda a esperança.
São
pedras a perder de vista. Lápides irregulares espalhadas sobre a areia ao longo
de centenas de metros. O cemitério domina o campo de refugiados de Smara. As
tendas e as casas cor de terra estão lá em baixo, ocupam o horizonte,
confundem-se com o deserto. Cada pedra assinala alguém que morreu. A maioria
dos habitantes fugiram aos bombardeamentos marroquinos em 1976, mas muitos já
nasceram, viveram e terminaram aqui para todo o sempre. São a prova de que o
conflito do Sara ocidental dura há tempo de mais.
O
sarauí que nos acompanha, Deimi, aproveita para se prostrar junto ao lugar onde
repousa um familiar. A morte é dura em todo o lado, mas aqui parece mais
desesperada.
"Os
velhos quando sentem que vão morrer pedem-nos para ser enterrados nos territórios
libertados. Ninguém quer morrer aqui", diz-nos Sidahmed Ahmedbaceid
(Sidi), o guia.
Nestes
40 anos, os povos livres do deserto mudaram muito nestes campos de refugiados.
Bebo chá com o fotógrafo Mohamed Mouloud, que combateu e fotografou ao lado do
primeiro líder da Polisário, El-Ouali Mustapha Sayed, que morreu em combate
depois de ter atacado a capital da Mauritânia, um dos países, juntamente com o
reino de Marrocos, que ocuparam ilegalmente o Sara Ocidental. Mostra-me as
fotos do ano de 76, guerrilheiros e guerrilheiras irmanados. Elas de camisa
aberta, deixando vislumbrar o corpo, e cabelo ao vento - muito diferentes de
grande parte das mulheres tapadas que vejo nos campos de refugiados. Ele
explica-me que entre os povos berberes do deserto o papel das mulheres sempre
foi mais interventivo que nos árabes. Nos anos 70, os guerrilheiros sarauís
eram nacionalistas e revolucionários. As mulheres eram iguais aos homens em
tudo: na vida, no combate, na morte.
Nas
ruas improvisadas de Smara ouve-se o apelo à oração. A religião está muito mais
presente que a última vez que lá tinha estado, há dez anos. Nessa altura
dizia-se que no fim desse ano, devido ao acordo com Marrocos e a comunidade
internacional e os sarauís, eles iam regressar às suas cidades junto ao mar. E
ia haver um referendo. A vitória da independência nas urnas em Timor Leste trocou as
voltas. Marrocos deu o dito por não dito e nunca mais aceitou o referendo sobre
a autodeterminação do povo sarauí.
Os
homens e mulheres que vivem em pleno deserto, em campos de refugiados,
sentem-se presos e ignorados por todos. Estão aqui pelo crime de quererem ser
livres. Vivem à conta das esmolas da comunidade internacional. A Arábia Saudita
semeou aqui madrassas com a sua interpretação fundamentalista do Corão.
Enquanto
esperam o nada, numa vida que os poderes terrenos não resolvem, homens e
mulheres parecem voltar-se para os deuses. O fundamentalismo, como de costume,
é semeado pelas bombas, pelo desespero e pelo ódio. Aqui ainda não fez a sua
colheita, como aquela que saiu dos campos bombardeados do Iraque, da Palestina
e da Líbia, mas as sementes de uma tremenda injustiça estão lá.
Editor-executivo
- Escreve à quarta-feira
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