Expresso
das Ilhas, editorial
Recentemente
no elogio fúnebre das várias vítimas de crimes raciais no Estados Unidos o
presidente Obama foi peremptório ao afirmar: a história não pode ser uma
espada para validar injustiças ou um escudo contra o progresso. Deve ser sim um
manual para se saber como evitar repetir os erros do passado e como quebrar o
ciclo. O aviso de Obama devia servir bem para temperar o fervor com que o
Estado cabo-verdiano parece estar a abraçar a História contada pelos
construtores do regime do partido único. Uma história feita à medida de alguns
interessados em projectar uma imagem quase messiânica que os põe acima de
quaisquer criticismos, presentes ou futuros. Paradoxalmente, o Estado que
aceita isso é o mesmo que todos os anos pelo 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e
da Democracia, serve-se de todos os subterfúgios para não celebrar com a
solenidade exigida esses dois princípios e valores consagrados na Constituição
da República.
O
espírito prevalecente hoje em
Cabo Verde é de respeito pelo pluralismo, de defesa pacífica
de todas as ideias e de reconhecimento da igualdade de todos os cidadãos.
Ninguém considera legítimo a utilização da violência para impor convicções
políticas e estabelecer regimes contrários à liberdade e à dignidade das
pessoas. Os símbolos nacionais, os monumentos e quaisquer outros objectos
comemorativos devem ser tomados como pontos de encontro da comunidade nacional
e venerados por tal. Não podem ser pontos de confronto, de ofensa e agravo. A
memória democrática de como se chegou à liberdade deve ser preservada. Assim
como devem ser reconhecidas as vítimas do regime repressivo que teve os seus
pontos altos nas prisões de Maio/Junho de 1977 e de Agosto de 1981 em S. Vicente e S. Antão e
noutras ilhas. Também não se pode esconder quem eram os principais responsáveis
pela direcção do Estado.
A
generalidade dos países que deixaram a ditadura para trás procuram dar provas
do renovado gosto pela liberdade. Um dos gestos simbólicos de maior importância
são as condecorações feitas pelo presidente da república. A coerência dos actos
de reconhecimento da nação pela luta pela liberdade e consolidação das
instituições democráticas normalmente requer que se criem novas medalhas e
novas ordens honoríficas. Em Portugal, com a III República, deixou-se a Ordem
do Império, e criou-se a Ordem da Liberdade para homenagear quem se notabiliza
na luta pela democracia e pela sua consolidação. Na Espanha democrática
criou-se a Ordem de Mérito da Constituição e medalhas da liberdade encontram-se
por todos os países democráticos tanto os novos como a Estónia como os antigos
a exemplo dos Estados Unidos e da França. A própria Rússia deixou para trás a
Ordem de Lenine que vinha da antiga União Soviética.
A
opção até agora feita em
Cabo Verde de não criar outras ordens honoríficas faz com que
o país fique só com as ordens criadas durante o regime de partido único. As
emendas feitas em 1996 às leis de 1985 e 1987 que criaram as actuais ordens procuraram
dar um escopo maior ao processo de escolha de possíveis condecorados. Não deixa
porém de fazer falta uma ordem da liberdade e da democracia mais consonante com
os princípios e valores da Constituição. Sem falar no embaraço de se ter com a
Guiné-Bissau a ordem de Amílcar Cabral como a máxima condecoração do Estado de
Cabo Verde. Por outro lado, tanto para quem condecora como para quem é
condecorado uma medalha da liberdade sem quaisquer outras conotações
partidárias e ideológicas seria mais fácil de dar e de receber.
As
condecorações são distinções feitas em nome da Nação. Naturalmente que se
espera que não sejam nem banalizadas, nem instrumentalizadas. Contribui para
uma impressão negativa o número aparentemente excessivo de pessoas distinguidas
quando a expectativa geral é que a distinção deve ser rara e selectiva. Também
não ajuda quando já não é só o Presidente da República mas também o Primeiro
Ministro que aparece a colocar medalhas, num caso a dezenas de personalidades
(jornalistas) e noutro caso a centenas de pessoas (combatentes).
A
febre de homenagens atinge o rubro de cinco anos nas comemorações da
independência nacional que até agora têm coincidido com os anos
pré-eleitoriais. Este facto não ajuda em nada a dissipar a impressão de alguma instrumentalização
eleitoral desses actos, o que, a confirmar-se, não bonifica ninguém. A extensão
por largos meses das comemorações exacerba a situação e valida a percepção de
eleitoralismo. No ambiente de contínua interpretação histórica em que se enfatiza
o momento da independência ficam esquecidos os que depois sofreram com o regime
pós- independência. A injustiça de ontem continua a repetir-se. Não seria assim
se a independência fosse vista como indissoluvelmente ligada à liberdade, à
democracia e ao Estado de Direito.
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