Carvalho
da Silva* – Jornal de Notícias, opinião
A
realidade de que nos falam Cavaco Silva, Passos Coelho e Paulo Portas, nas suas
pregações e "conversas em família", não cola com a vida concreta da
esmagadora maioria dos portugueses. Sustenta-se em ardilosos argumentos, em
meias- verdades ou mentiras exaustivamente repetidas, na exploração de medos
decorrentes dos complicados problemas que nos afligem no plano nacional e
europeu, na tortura de números para que digam o que eles pretendem. Esta
"realidade" vai pairando sobre a sociedade e pode impregnar-se e
atrofiar-nos o futuro.
Algumas
almas rendidas às "novidades" do neoliberalismo e os paladinos da
ordem das velhas sociedades clamam que a "realidade é de direita",
concluindo que não há alternativas porque é moderno sujeitarmo-nos a
humilhações, ao acentuar das desigualdades, ao estilhaçar da democracia.
Aquelas
três personagens, que nos últimos quatro anos articuladamente nos
desgovernaram, tudo fazem para que os portugueses se submetam às instituições,
aos tratados, às práticas políticas da União Europeia, quando está hoje sobejamente
demonstrado que os dogmas e valores por que se regem estão à margem da vontade
dos povos europeus, povos livres e iguais entre si, empenhados em construir
sociedades solidárias com desenvolvimento humano e paz. A realidade que nos
conduz ao futuro - sempre uma construção humana - é a que emana dos anseios das
pessoas, da sua ação individual e coletiva, não aquilo que nos querem impor a
partir do que cabe naqueles espartilhos.
A
vida dos portugueses nestes últimos anos foi marcada por muito sofrimento
injusto, por perda de esperança e de confiança, por sentimentos de impotência
face à avalancha de "políticas inevitáveis". O país está a perder
população e a desestruturar-se, a destruir capacidades para o seu
desenvolvimento.
O
caminho para dar a volta a este estado de coisas passa por não nos submetermos
"à realidade" inventada por estes governantes, por tomarmos o desafio
de exigir verdade e agir com dignidade. O que aquele trio da vida airada gerou,
como ainda esta semana a CGTP-IN denunciou, em consonância com outros estudos
sérios, foi o agravamento das desigualdades na repartição do rendimento - tendo
a riqueza relativa a ordenados e salários passado de 36,1% em 2011 para 34,5%
em 2014, enquanto os lucros, que já tinham um peso maior no PIB, passaram de
41,6% para 43,3% -; muitas mais horas trabalhadas por ano pelos mesmos
salários; um sistema tributário ainda mais injusto; mais pobreza e menos
recursos para quem é pobre; depauperação das funções sociais do Estado, com
profundas implicações para a coesão social e o desenvolvimento do país.
A
"estabilidade política" reclamada pelo presidente da República (PR) e
pelos partidos do Governo não é mais do que um convite aos portugueses para
aceitarem a inevitabilidade daquelas políticas desastrosas e se distanciarem do
acompanhamento crítico da vida política, da intervenção pública que põe a nu as
destruições causadas e obriga a mudanças de rumo.
Com
a crise, veio ao de cima a frágil formação democrática do PR, a sua perspetiva
económica que nega a economia política e expressões de compromisso com gente
que vive de promiscuidades. Isso articulou-se em pleno com os objetivos do
grande poder económico e financeiro internacional e nacional, de que Passos é o
governante de serviço, e com a agenda social retrógrada dos setores mais
conservadores e reacionários, de que Portas e outros ministros são eficazes
executantes.
A
Cavaco Silva só preocupa que o poder seja exercido por forças que garantam a
subjugação. Perante tantos desafios com que nos deparamos é incapaz de apelar
aos portugueses para fazerem do próximo ato eleitoral um tempo de debate sobre
os seus problemas, as suas causas e as formas de os resolver; nem um apelo para
que se mobilizem e participem ativamente nas eleições. Ele pré-define políticas
e governantes e convida os portugueses a sancionar as suas escolhas.
Para
travar a exploração, para recuperarmos soberania e democracia, é preciso
desconstruir este trio e derrotar as políticas que se propõe prosseguir.
*Investigador
e professor universitário
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