Luísa
Rogério – Rede Angola, opinião
Ser
apanhado em “flagrante delito” por atentar contra a segurança do estado deve
ser grave em qualquer país do mundo. Até aí há acordo. As reticências começam
quando se cita o controverso processo “15+1”, do qual resultou a detenção de
jovens conotados com o Movimento Revolucionário. As divergências assentam na
sustentabilidade da acusação de tentativa de golpe de Estado porque na prática
é disso que são acusados. Discussões à parte, consta que a principal arma para
derrubar o governo é o livro intitulado Da Ditadura à Democracia, da
autoria de Gene Sharp, conhecido académico norte-americano, considerado
altamente subversivo em meios afectos ao poder.
Desestabilizar
a ordem pública com recurso a poderosa arma letal disfarçada de livro
instigador de revoluções pacifistas já seria um prato para a imprensa.
Relacionar os detidos a forças externas mancomunadas para estremecer Angola
condimentou o assunto. O que muitos julgavam tratar-se de equívoco de mau
gosto, principalmente ao se associar a um programado governo de salvação
nacional, comentado em tom de brincadeira no Facebook, ganhou outra dimensão.
Detidos a 20 de Junho, os jovens chegaram a ser colocados em celas solitárias.
Ficaram dias privados da luz do sol. Em determinado período foi-lhes negado o
direito de receber visitas que não fossem familiares de primeira linha. Cá
fora, entretanto, ganharam estatuto de presos políticos.
Concluída
a instrução, o processo foi encaminhado ao Tribunal, enquanto os arguidos
aguardam pelo julgamento na cadeia.
Entretanto,
o movimento “Liberdade Já” cresce livre e solto pelo mundo. No país, quase
todas manifestações de solidariedade acabaram reprimidas. Que o digam as mães e
familiares dos acusados, vergonhosamente afugentadas por homens armados e por
cães. Em sinal de protesto contra o excesso de prisão preventiva, pontualmente
denunciada pelos advogados, alguns detidos desencadearam uma greve de fome a 21
de Setembro. Um nome ganhou notoriedade: Luaty Beirão! O jovem, de 33 anos, vem
manifestando “um comportamento diferente em relação aos alimentos”, designação
encontrada por uma repórter da nossa televisão pública para contornar a
expressão greve de fome. O estado de Luaty inspira cuidados. Aumentam os apelos
dirigidos ao Presidente da República no sentido de se evitar o pior.
Na
prática eles foram condenados antes do julgamento. Tornaram-se presumíveis
culpados quando as alegadas provas foram partilhadas sem possibilidade de se
defenderem numa altura em que as investigações decorriam sob segredo de
justiça.
A
atitude de Luaty arrasta questões pertinentes. Além de dividir operadores de
Direito, este deixou de ser apenas um processo jurídico com conotações
políticas. A discussão coloca-se em torno da vida ou morte. Luaty assinou uma
declaração a assumir a responsabilidade pela greve de fome. Parece disposto a
levar a decisão às últimas consequências se as suas reivindicações não forem
atendidas. São momentos difíceis de uma agonia sentida na carne por ele, mas
que atinge familiares, amigos, simpatizantes e o cidadão comum.
A
onda de solidariedade cresce assim como as teorias defendidas pelos apologistas
da tese golpe de Estado. Consideram Luaty teimoso, qual menino mimado birrento.
Vasculham o seu passado em busca de práticas criminosas. Chamam-no chantagista.
Exaltam a necessidade de se manter firmeza sob o risco de se abrir precedentes
negativos para o sistema judiciário. À “boca pequena” porque não cabe no âmbito
do politicamente correcto, determinados detractores de Luaty vão dizendo que a
projecção do activista resulta de lobbies de mulatos e brancos por se
tratar de um luso-descendente.
Recentemente
introduziram na abordagem o factor dupla nacionalidade. Sendo também português
é natural que os seus outros concidadãos reclamem a sua liberdade e dos
companheiros. Anormal seria o contrário. Li algures que Luaty é proprietário de
bens que incluem acções num banco e que não terão sido comprados unicamente com
o fruto do trabalho dos seus familiares. Pedem-lhe coerência para se desfazer
de supostas riquezas. Haja sensatez! Oxalá um por cento dos herdeiros dos
quatro mil e novecentos milionários angolanos tivesse sensibilidade para
esboçar alguma reacção face as abismais diferenças.
Com
argumentos anedóticos os detractores de Luaty pretendem descredibilizá-lo e, de
“esquebra”, atingirem o movimento Revú. Pior do que os falsos problemas é
evocar questões raciais, ainda que este seja um assunto mal resolvido em
Angola. Quando é que a dupla nacionalidade virou problema? Quem nunca viu
viajantes angolanos em missão de serviço, portadores de passaportes oficiais, a
se encaminharem para a cabine destinada a cidadãos comunitários ou apresentarem
a correspondente identificação na África do Sul onde não precisam de visto?
Milhares de angolanos de diferentes tons de pele, com e sem ascendentes
europeus têm passaportes portugueses.
Metódico
e inteligente, com duas licenciaturas obtidas em Inglaterra e França, Luaty
Beirão poderia viver tranquilamente em qualquer país do hemisfério norte.
Estaria distante das assimetrias, da má distribuição da renda nacional, da
falta de energia eléctrica, de água potável, da pobreza e misérias que nos
fustigam. Poderia criar a filha noutras paragens, desfrutando da dita riqueza
em arenas de luxo. Teria, seguramente, espaço em páginas cor-de-rosa do
emergente jet set nacional. Mas Luaty preferiu viver na sua pátria.
Obviamente só isso não faria dele herói já que, a partir dessa perspectiva,
heróis seriam todos os angolanos.
Vi
pessoalmente o Luaty Beirão pouquíssimas vezes. Foi quanto bastou para perceber
que é extremamente culto e articulado. E comprometido com causas, advindo daí a
sua visibilidade mediática. Exigir direitos, comprar todas as brigas
decorrentes do seu posicionamento crítico ao sistema e a frontalidade algo
dolorosa fazem dele uma figura invulgar. Por este ser humano forte, pessoas de
boa fé intercedem para que saia daquele leito melhor do que entrou. A razão
cede lugar à espiritualidade. Aumenta a crença num poder extraordinário capaz
de o fazer desistir da greve de fome sem abdicar dos princípios. A história do
país conta com demasiados mártires. Não precisa de agregar a falência múltipla
dos órgãos do Luaty. Tão pouco de carregar o fardo de permitir que as suas
cinzas sejam precocemente lançadas ao mar. Herói o Luaty já é. Um herói que se
quer vivo e inspirador. De outro modo perderiam sentido todas orações à beira
do vão.
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