domingo, 18 de outubro de 2015

Angola. DIÁLOGO EXCLUSIVO COM LUATY BEIRÃO




“NÃO PERCEBI O PORQUE É QUE FIZERAM ISSO COMIGO”

Folha 8 digital

Apesar da extrema cordialidade e generosidade do Director da Prisão de Alta Segurança de Calomboloca não foi permitida a entrada de telemóveis e outros meios pessoais que não sejam um único documento. É uma clara regra de segurança admissível numa penitenciária de tão elevado nível. Por isso, a conversa que se segue resulta de um esforço de memória sobre o diálogo com Luaty Beirão ao longo de uma visita feita na qualidade de amigos e pessoas que cruzaram os caminhos na base de uma empatia natural e estando a defender ideais de reforma do Estado para que melhor se adapte as necessidades de todas as gerações de angolanos.

O que atrai e é superior em Luaty Beirão, é o sentido de verticalidade moral que erradia em todas as suas acções, vindo disso um profundo sentimento de solidariedade e uma clara convicção suportada por uma expressiva inteligência muito rara em jovens da sua idade. Tão cara é a personalidade deste jovem, que não é possível privar com ele sem que se lhe ganhe a confiança e o companheirismo de tão naturalmente solidário que é. E o que é curioso em Luaty Beirão é em como um ateu convicto como é, chega ter mais fé do que os mais fervorosos religiosos, tal como é curioso que as suas feições se assemelhem a imagem de Jesus Cristo tal como é perfeitamente pintado sobre telas sacras.

É evidente que a conversa aqui expressa não representa se quer 15% de tudo quanto falamos. São apenas resquícios de uma memória ainda fresca e não é completamente fiel à letra dos argumentos expendidos. Mas exprime claramente o espírito do que foi falado. O diálogo assumido por mim, é apresentado no plural considerando a participação de outras pessoas. Por razões de protecção de direitos de personalidade das partes intervenientes, o diálogo não faz referência de qualquer delas.

Estando num estado de manifesta debilidade física, Luaty Beirão foi trazido até nós com apoio de agentes da guarda prisional. Depois de um demorado abraço, a conversa entre nós fluiu:

PERGUNTA - Sabes, Luaty, viemos de emergência por ter recebido uma mensagem que dizia que estavas em es­tado crítico de saúde.

LUATY BEIRÃO: Agradeço a vossa visita. Nem sei como é que conseguiram que eu fosse solto da cela em que me en­contro. Estou há 20 dias sob castigo e estou proibido de re­ceber visitas. Fico muito feliz por terem conseguido que isto acontecesse…!

P- Não somos os únicos, tens mais visitas a aguardarem lá fora.

LUATY BEIRÃO: Porque é que não entram?

P - Infelizmente foi aberta uma excepção apenas para nós, dada a urgência que temos em falar sobre a tua greve de fome!

LUATY BEIRÃO: Ah, ok !(ar­rastou os dedos trémulos so­bre o cabelo escuro descui­dado).

P - Como é que te sentes?

LUATY BEIRÃO: Muito mal. Hoje acordei com tonturas. Mas o resto está tudo bem. Continuam com o plano da concertação? É que precisa­mos encontrar um equilíbrio entre o poder e o povo. Pre­cisamos de continuar a pensar na necessidade de reduzir os conflitos na sociedade. Não podemos continuar a viver numa situação em que as boas intenções das pessoas não são levadas em conta. Eu nem compreendi porque é que nos prenderam…!

P - Continuamos sim a pen­sar numa estratégia de aproximação entre a socie­dade e o poder político. Já começamos a sentir mais vontade de dialogar em toda a sociedade. Acho que a vossa prisão despertou a sociedade para os exageros que têm acontecido e os ex­cessos de zelo desnecessári­os. Participamos nas jor­nadas parlamentares dos partidos da oposição realiza­das há semanas e sentimos a manifestação dessa vontade pelos partidos políticos. Nas recomendações finais fi­cou a ideia da necessidade de diálogo com o partido no poder. Só não sabemos se entre os partidos políticos isso tem pernas para andar. Mas foi bom ouvir isso dos próprios líderes dos partidos políticos.

LUATY BEIRÃO: Pro­curar equilíbrios. É necessário. A socie­dade não pode con­tinuar a mergulhar em conflitos sociais cada vez mais profundas. Estamos a pressionar para que aceite dialog­ar connosco. Você sabe disso. E as nossas mani­festações são pacíficas por isso mesmo. Olha, comecei a escrever umas notas sobre a TEORIA DO PERDÃO para avançarmos para uma fase em que os angolanos têm que se perdoar mutuamente e promover harmonia entre si. Essa teoria não é para achar culpados e meter na cadeia. É para que as pessoas saibam apenas o que as pessoas fizeram e depois tudo se perdoa. É a melhor forma de recomeçar­mos essa sociedade. Mas era para enriquec­er aquele documento sobre a concertação politica e económica que nós elaboramos da outra vez. Lembras-te?

P - Claro. E continua­mos a enriquecer com novas ideias.

LUATY BEIRÃO: E só não entendo porque nos confundem com gente de má fé. Nós devíamos ser aprovei­tados para ser a ponte entre o poder e o povo. Mas ninguém quer saber de nós. Ninguém quer dialogar…É muita pena!

P - Falando da tua greve de fome. Não achas que devias sus­pendê-la?

LUATY BEIRÃO: Sus­pendê-la para quê? Hoje fiz 18 dias desde que deixei de comer e já não me resta muito tempo de vida!

P - Conhecendo como és, sabemos que não é fácil demover-te das tuas convicções. Mas não achas que a tua greve de fome seria mais eficaz se a fizesses na fase do julgamento que é a altura propícia para a tua defesa?

LUATY BEIRÃO: Alba­no, eu sei que está tudo perdido. Para um pro­cesso que vem sendo viciado desde o inicio, não me parece pruden­te esperar que eu venha a ser inocentado, mes­mo sendo realmente inocente em relação as acusações. Então o que pretendo é estar provisoriamente livre para estar com a minha família pela última vez e enquanto aguardo pelo julgamento. Se o crime admite liberdade provisória porquê é que não me libertam? Nem se quer estou a pedir para não ser julgado e condenado. Isso é outra fase. Quero apenas go­zar dessa liberdade que a lei me permite para es­tar com a minha família. E depois me conformo com o tempo de conde­nação que eles darem!

P - Mas com essa greve de fome nem se quer chegas a fase de jul­gamento, que é o ver­dadeiro momento da defesa dos teus ideais e do contágio ao públi­co, porque as pessoas estão curiosas em ou­vir da vossa própria voz, o que se passou realmente para serem presos. Se não che­gas ao julgamento, aí o movimento revolu­cionário perde lider­ança…!

LUATY BEIRÃO: Oh, Albano, você sabe que eu detesto esse nome. Não me fale em movi­mento revolucionário e eu não sou líder de nada!

P - Luaty, a chefia es­colhe-se. Mas a lider­ança de um indivíduo flui entre os membros do grupo de forma natural. Ela impõe-se por si mesma através da admiração que os outros nutrem pelos valores que defende e pelo sentido de co­erência que manifes­tas. Estivemos na área do bloco em que estás encarcerado e per­cebemos que todos os reclusos e muitos dos guardas prisionais ad­miram muito a tua ver­ticalidade e sentem-se tocados pela causa que defendes. Isso é liderança…!

LUATY BEIRÃO: Al­bano, sabes que sempre defendi que os grupos não devem ter líderes. Eu acho que sou igual a qualquer um e faço o que posso e devo fazer!

P - Seja como for, acabas sendo a pessoa com a maior ascend­ente moral sobre os outros. A tua verticali­dade acaba impondo isso, mesmo. Percebe-se que aqui um gener­alato em que estás no topo…!

LUATY BEIRÃO: (Risos). Eu percebo aonde queres chegar. Mas olha a decisão da greve de fome foi toma­da em grupo. Eu nem se quer queria toma-la porque achava que era uma medida extrema. Mas a maioria acabou optando porque con­cluímos que enquanto não nos libertassem ninguém pararia com a greve de fome!

P- Mas os outros pa­raram de fazer greve de fome.…!

LUATY BEIRÃO: Sei que pararam. Mas a minha decisão está tomada. Já não posso recuar. É minha palavra dada ao grupo!

P - Mas em nome do grupo devias parar…!

LUATY BEIRÃO: Não faz qualquer sentido. Onde fica a minha hon­ra? Saiba que a minha própria mãe esteve cá e implorou para que eu parasse com a greve. A minha es­posa trouxe a minha filha para o mesmo objectivo. Se para as pessoas mais preza­das da minha vida eu não abri excepção, faz algum sentido eu parar com a greve ag­ora, que já nem posso comer e estou muito debilitado? Eu já fiz o meu pedido a família para quando morrer ser cremado e ter as cinzas atiradas ao mar!

P - Não temos pala­vras para tanta ele­vação moral e firmeza de espírito!

LUATY BEIRÃO: Olha que ao longo desse tempo que estou em greve, hoje foi a primei­ra vez que senti falha no sistema nervoso central. Sinto falhas na memória e as vezes não sinto as pernas. Não me parece que eu venha a resistir mais 2 dias!

P - Tens bebido água?

LUATY BEIRÃO: Ten­ho. Parece ser água com soro…Não sei bem!

P - Disseram-nos que já tinhas sido encaminhado para o Hospital-Prisão de São Paulo para inter­namento…!

LUATY BEIRÃO: Che­garam a levar-me em companhia de mais presos. Mas acabei sen­do o único que não saiu da viatura e voltou a re­gressar para aqui. Não percebi o porque é que fizeram isso comigo!?

P - Aqui te é permitido ler?

LUATY BEIRÃO: Posso. Tenho lido alguns liv­ros. A minha esposa trouxe-me uma Bíblia Sagrada…!

P - Ainda, bem que tens a Bíblia Sagrada. Se não a tivesses nós traríamos uma na próxima visita…

LUATY BEIRÃO: Já li a Bíblia Sagrada debaixo para cima. Já li a maio­ria dos livros todos do Velho Testamento e todos os livros do Novo Testamento e fiz ano­tações e tudo. Temos tido missas, vem um pastor ou um padre para essas coisas. Mas sabes que não acred­ito em Deus. Como é que vou acreditar num Deus que mata os próp­rios filhos, que se vinga …! (risos)

P .…Que se arrepende. Qualquer dia ainda acorda e diz que o homem já não vai para o paraíso porque está fechado! (risos)

LUATY BEIRÃO: Vê lá meu! (risos)

P - (risos) Olha a tua história me faz lem­brar a do filho de Win­ston Churchill, o es­tadista britânico da 2ª guerra mundial. O Pai era crente mas o filho não. Um dia o pai pediu a um pastor para que persuadisse o filho a ler a Bíblia Sagrada. E então o pastor con­seguiu aproximar-se ao filho e propôs que lesse apenas duas ou três páginas. Caso não gostasse do que leria podia devolva-lo. Aconteceu que o filho leu toda a Bíblia Sagrada e inclusive fez anotações, tal como fizeste na tua. O pastor entusiasmado com a sua vitória so­bre o filho, regressou vários dias depois, curioso em saber se tinha gostado. O filho pôs-se a rir e respon­deu: “Afinal é este Deus que vocês ado­ram? Tão sádico, homi­cida, vingativo, ran­coroso…não acredito que se possa acredi­tar num ser tão cruel” (risos)

LUATY BEIRÃO: Vê lá meu! (risos)

P - É claro que Deus não pode ser enten­dido dessa forma. Não se pode conceber um Deus com emoções e todos os defeitos hu­manos tal como vem escrito na literatura sacra. Há uma her­menêutica mais pro­funda que nos coloca diante de um Deus que torna o próprio mal e o bem como partes que concordam num todo harmonioso e elevam a sua verdadeira es­tatura de regulador universal. Se Deus é amor, faz algum sen­tido que ele mande matar o seu povo de forma sádica e homi­cida tal como vem no velho Testamento? Se Deus é todo-poderoso que sentido faz haver um outro ser chamado diabo que o contraria? Alguma coisa está errada na hermenêu­tica Bíblica Sagrada. Por isso, eu entendo que Deus é a combi­nação do bem e o mal e tudo que acontece tem alguma coerên­cia lógica que enten­dermos a Bíblia para além das palavras. A tua situação por ex­emplo é parecida com a história do Job.

LUATY BEIRÃO: Já li. Um tipo que tinha tudo e por causa de uma discussão entre Deus e o diabo acabou per­dendo tudo só porque Deus deu ordens ao Diabo para testar a sua fé! (risos)

P - Parece ser duas en­tidades (Deus e diabo) em conflito. Mas a história de Job é uma alegoria que exprime o conflito que ocorre na nossa própria con­sciência. O que se pas­sou é que era a própria consciência de Job em conflito de fé. Estava ele na luta entre de­fender os seus ideais e a família ou bens ma­teriais. É essa a her­menêutica subjacente nesse livro. E então ac­onteceu que ao escol­her os seus princípios morais (sua fé) acabou perdendo a família e os bens materiais. Em­pobreceu e apanhou lepra. Vinham amigos para demovê-lo dos princípios e ele não aceitava, até que um dia apareceu alguém que se sentou ao lado sem lhe contrariar num mero acto de soli­dariedade. E a firmeza nos princípios foi tal que quando já estava prestes a morrer de tanto mal causado pela doença. As cir­cunstâncias alteraram favoravelmente, so­breviveu e isso tornou ainda mais forte a sua convicção (risos)!

LUATY BEIRÃO: Ok!

P - E no seu caso, os princípios morais impuseram-se igual­mente. Preferiste sac­rificar a família e os bens materiais para salvaguardares os teus princípios morais (a tua fé). E estás neste estado de debilidade física que não é difer­ente de uma doença como a lepra. Já vi­eram muitos amigos para tentar dissuadir-te. Hoje que estás há dois dias do prazo de resistência fisiológica razoável viemos nós. E pela primeira vez tens pessoas que concord­am com os teus princí­pios! (risos)!

LUATY BEIRÃO: Então acreditas no destino?!

P - Claro. Sou deter­minista e não causal­ista!

LUATY BEIRÃO: Nesse caso acreditas que o que estou a fazer é algo predestinado. Tinha que fazê-lo?

P - Se isto é tão forte em si. É porque foste preparado para isso. E se nós aparecemos nessas circunstân­cias é porque alguma vontade suprema nos guiou e pretende que tudo termine, porque já deste provas bastantes da tua fé nos teus princípios!

LUATY BEIRÃO: Olha a primeira vez que eu ia acreditando em Deus foi quando sai de Portu­gal a pé até Angola?

P - De Portugal à An­gola, a pé?

LUATY BEIRÃO: A pé, de carro, de burro, mas tudo a boleia. Foi depois de terminar a formação na Europa. Decidi sair de Portugal passando pelo Tânger e seguindo por vários países africanos até chegar a Luanda. Não fui assaltado em toda a viagem até chegar no Sambizanga quando já estava uns quilómetros de casa (risos). Mas o que me impressionou foi quando cheguei aos Camarões. Eu não tinha aonde dormir e pedia ajuda a pessoas e não via ninguém interes­sado. E era a primeira vez que não sentia soli­dariedade nenhuma. Eu já estava sem alternati­vas, quando de repente apareceu um tipo que simpatizou-se comigo e disse que era angolano e vivia há 15 anos no país. Foi ele que me acolheu e tive até uma grande refeição. Foi uma expe­riencia muito forte na minha vida!

P - Realmente é uma experiência ex­traordinária. Quando já estavas no limite das tuas possibilidades, surgiu a solução!

LUATY BEIRÃO: Então se está escrita que vou passar por isso então só me resta manter-me firme. Se sobreviver será vontade de Deus ou seja o que for, se não então também é vontade dele.

P - Percebo que não é fácil contrariar os próprios princípios, mas terás de com­preender que se não resistes até a fase do julgamento, no mínimo tens de escrever algo em tua defesa para que possamos utilizar como o teu desejo pós­tumo em termos de ideais perseguidos e justificar as tuas no­bres visões sobre o Es­tado e povo.

LUATY BEIRÃO: Não sei. Já não leio em con­dições. Estou a perder a visão… (Suspiro pro­fundo)!

P - Se queres que aceitemos a tua morte, no mínimo prometa-nos que vais fazer apon­tamentos em tua def­esa. Em defesa da causa que sempre defendeste para que ela não se perca no esquecimento contigo mesmo…!

LUATY BEIRÃO: Está bem, Albano. Vou fazer algum esforço. Mas com­preenda que nessa altura é quase sobre-humano… (Suspiro profundo)! Mas devo reconhecer que desde que estou aqui pre­so nunca tive tanto tem­po de conversa com uma visita. É extraordinário o que vocês conseguiram e estou profundamente grato por isso!

A FORÇA DA ALMA

N.B: Ao longo do diálo­go de cerca de 3 horas, percebia-se que o es­forço de Luaty Beirão em manter a conversa vinha do próprio espíri­to entusiasmado pela nossa presença, que lhe permitiu abrir-se e expor-se tão a vontade como se desabafasse para a sua própria alma. Mesmo com a visível fraqueza do corpo che­gava a dar gargalhadas em volta dos vários te­mas que tratamos. Em­bora ateu, a alma divina estava nele. Claro é ap­enas ateu porque não crê no Deus sádico tal como não creio. E essa alma fazia a sua parte sobrenatural num cor­po fragilizado. Infeliz­mente, receio que tudo isso se repercuta nega­tivamente na sua saúde já debilitada. Mas foi concerteza um diálogo necessário e uma mo­mento impar na própria vida de Luaty Beirão. Pois, percebi que aca­bou saindo com uma nova fé e com um Deus renovado na sua per­cepção.

O MEU CHORO

(P.S: Depois de ter deix­ado a prisão, longas ho­ras depois de conter as fortes emoções que me provocaram a imagem deplorável e a integri­dade impar de Luaty Beirão, e percebendo nele uma jóia rara a desaparecer, explodi em choros e lágrimas, como nunca mais me aconteceu desde o fim da infância.)

*Jurista

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