“NÃO PERCEBI O PORQUE É QUE FIZERAM ISSO COMIGO”
Folha
8 digital
Apesar
da extrema cordialidade e generosidade do Director da Prisão de Alta Segurança
de Calomboloca não foi permitida a entrada de telemóveis e outros meios
pessoais que não sejam um único documento. É uma clara regra de segurança
admissível numa penitenciária de tão elevado nível. Por isso, a conversa que se
segue resulta de um esforço de memória sobre o diálogo com Luaty Beirão ao
longo de uma visita feita na qualidade de amigos e pessoas que cruzaram os
caminhos na base de uma empatia natural e estando a defender ideais de reforma
do Estado para que melhor se adapte as necessidades de todas as gerações de
angolanos.
O
que atrai e é superior em Luaty Beirão, é o sentido de verticalidade moral que
erradia em todas as suas acções, vindo disso um profundo sentimento de
solidariedade e uma clara convicção suportada por uma expressiva inteligência
muito rara em jovens da sua idade. Tão cara é a personalidade deste jovem, que
não é possível privar com ele sem que se lhe ganhe a confiança e o
companheirismo de tão naturalmente solidário que é. E o que é curioso em Luaty
Beirão é em como um ateu convicto como é, chega ter mais fé do que os mais
fervorosos religiosos, tal como é curioso que as suas feições se assemelhem a
imagem de Jesus Cristo tal como é perfeitamente pintado sobre telas sacras.
É
evidente que a conversa aqui expressa não representa se quer 15% de tudo quanto
falamos. São apenas resquícios de uma memória ainda fresca e não é
completamente fiel à letra dos argumentos expendidos. Mas exprime claramente o
espírito do que foi falado. O diálogo assumido por mim, é apresentado no plural
considerando a participação de outras pessoas. Por razões de protecção de
direitos de personalidade das partes intervenientes, o diálogo não faz
referência de qualquer delas.
Estando
num estado de manifesta debilidade física, Luaty Beirão foi trazido até nós com
apoio de agentes da guarda prisional. Depois de um demorado abraço, a conversa
entre nós fluiu:
PERGUNTA
- Sabes, Luaty, viemos de emergência por ter recebido uma mensagem que dizia
que estavas em estado crítico de saúde.
LUATY
BEIRÃO: Agradeço a vossa visita. Nem sei como é que conseguiram que eu fosse
solto da cela em que me encontro. Estou há 20 dias sob castigo e estou
proibido de receber visitas. Fico muito feliz por terem conseguido que isto
acontecesse…!
P-
Não somos os únicos, tens mais visitas a aguardarem lá fora.
LUATY
BEIRÃO: Porque é que não entram?
P
- Infelizmente foi aberta uma excepção apenas para nós, dada a urgência que
temos em falar sobre a tua greve de fome!
LUATY
BEIRÃO: Ah, ok !(arrastou os dedos trémulos sobre o cabelo escuro descuidado).
P
- Como é que te sentes?
LUATY
BEIRÃO: Muito mal. Hoje acordei com tonturas. Mas o resto está tudo bem.
Continuam com o plano da concertação? É que precisamos encontrar um equilíbrio
entre o poder e o povo. Precisamos de continuar a pensar na necessidade de
reduzir os conflitos na sociedade. Não podemos continuar a viver numa situação
em que as boas intenções das pessoas não são levadas em conta. Eu nem
compreendi porque é que nos prenderam…!
P
- Continuamos sim a pensar numa estratégia de aproximação entre a sociedade e
o poder político. Já começamos a sentir mais vontade de dialogar em toda a
sociedade. Acho que a vossa prisão despertou a sociedade para os exageros que
têm acontecido e os excessos de zelo desnecessários. Participamos nas jornadas
parlamentares dos partidos da oposição realizadas há semanas e sentimos a
manifestação dessa vontade pelos partidos políticos. Nas recomendações finais
ficou a ideia da necessidade de diálogo com o partido no poder. Só não sabemos
se entre os partidos políticos isso tem pernas para andar. Mas foi bom ouvir
isso dos próprios
líderes dos partidos políticos.
LUATY
BEIRÃO: Procurar equilíbrios. É necessário. A sociedade não pode continuar a
mergulhar em conflitos sociais cada vez mais profundas. Estamos a pressionar
para que aceite dialogar connosco. Você sabe disso. E as nossas manifestações
são pacíficas por isso mesmo. Olha, comecei a escrever umas notas sobre a
TEORIA DO PERDÃO para avançarmos para uma fase em que os angolanos têm que se
perdoar mutuamente e promover harmonia entre si. Essa teoria não é para achar
culpados e meter na cadeia. É para que as pessoas saibam apenas o que as
pessoas fizeram e depois tudo se perdoa. É a melhor forma de recomeçarmos essa
sociedade. Mas era para enriquecer aquele documento sobre a concertação
politica e económica que nós elaboramos da outra vez. Lembras-te?
P
- Claro. E continuamos a enriquecer com novas ideias.
LUATY
BEIRÃO: E só não entendo porque nos confundem com gente de má fé. Nós devíamos
ser aproveitados para ser a ponte entre o poder e o povo. Mas ninguém quer
saber de nós. Ninguém quer dialogar…É muita pena!
P
- Falando da tua greve de fome. Não achas que devias suspendê-la?
LUATY
BEIRÃO: Suspendê-la para quê? Hoje fiz 18 dias desde que deixei de comer e já
não me resta muito tempo de vida!
P
- Conhecendo como és, sabemos que não é fácil demover-te das tuas convicções.
Mas não achas que a tua greve de fome seria mais eficaz se a fizesses na fase
do julgamento que é a altura propícia para a tua defesa?
LUATY
BEIRÃO: Albano, eu sei que está tudo perdido. Para um processo que vem sendo
viciado desde o inicio, não me parece prudente esperar que eu venha a ser
inocentado, mesmo sendo realmente inocente em relação as acusações. Então o
que pretendo é estar provisoriamente livre para estar com a minha família pela
última vez e enquanto aguardo pelo julgamento. Se o crime admite liberdade
provisória porquê é que não me libertam? Nem se quer estou a pedir para não ser
julgado e condenado. Isso é outra fase. Quero apenas gozar dessa liberdade que
a lei me permite para estar com a minha família. E depois me conformo com o
tempo de condenação que eles darem!
P
- Mas com essa greve de fome nem se quer chegas a fase de julgamento, que é o
verdadeiro momento da defesa dos teus ideais e do contágio ao público, porque
as pessoas estão curiosas em ouvir da vossa própria voz, o que se passou
realmente para serem presos. Se não chegas ao julgamento, aí o movimento
revolucionário perde liderança…!
LUATY
BEIRÃO: Oh, Albano, você sabe que eu detesto esse nome. Não me fale em movimento
revolucionário e eu não sou líder de nada!
P
- Luaty, a chefia escolhe-se. Mas a liderança de um indivíduo flui entre os
membros do grupo de forma natural. Ela impõe-se por si mesma através da
admiração que os outros nutrem pelos valores que defende e pelo sentido de coerência
que manifestas. Estivemos na área do bloco em que estás encarcerado e percebemos
que todos os reclusos e muitos dos guardas prisionais admiram muito a tua verticalidade
e sentem-se tocados pela causa que defendes. Isso é liderança…!
LUATY
BEIRÃO: Albano, sabes que sempre defendi que os grupos não devem ter líderes.
Eu acho que sou igual a qualquer um e faço o que posso e devo fazer!
P
- Seja como for, acabas sendo a pessoa com a maior ascendente moral sobre os
outros. A tua verticalidade acaba impondo isso, mesmo. Percebe-se que aqui um
generalato em que estás no topo…!
LUATY
BEIRÃO: (Risos). Eu percebo aonde queres chegar. Mas olha a decisão da greve de
fome foi tomada em grupo. Eu nem se quer queria toma-la porque achava que era
uma medida extrema. Mas a maioria acabou optando porque concluímos que
enquanto não nos libertassem ninguém pararia com a greve de fome!
P-
Mas os outros pararam de fazer greve de fome.…!
LUATY
BEIRÃO: Sei que pararam. Mas a minha decisão está tomada. Já não posso recuar.
É minha palavra dada ao grupo!
P
- Mas em nome do grupo devias parar…!
LUATY
BEIRÃO: Não faz qualquer sentido. Onde fica a minha honra? Saiba que a minha
própria mãe esteve cá
e implorou para que eu parasse com a greve. A minha esposa trouxe a minha filha
para o mesmo objectivo. Se para as pessoas mais prezadas da minha vida eu não
abri excepção, faz algum sentido eu parar com a greve agora, que já nem posso
comer e estou muito debilitado? Eu já fiz o meu pedido a família para quando
morrer ser cremado e ter as cinzas atiradas ao mar!
P
- Não temos palavras para tanta elevação moral e firmeza de espírito!
LUATY
BEIRÃO: Olha que ao longo desse tempo que estou em greve, hoje foi a primeira
vez que senti falha no sistema nervoso central. Sinto falhas na memória e as
vezes não sinto as pernas. Não me parece que eu venha a resistir mais 2 dias!
P
- Tens bebido água?
LUATY
BEIRÃO: Tenho. Parece ser água com soro…Não sei bem!
P
- Disseram-nos que já tinhas sido encaminhado para o Hospital-Prisão de São
Paulo para internamento…!
LUATY
BEIRÃO: Chegaram a levar-me em companhia de mais presos. Mas acabei sendo o
único que não saiu da viatura e voltou a regressar para aqui. Não percebi o
porque é que fizeram isso comigo!?
P
- Aqui te é permitido ler?
LUATY
BEIRÃO: Posso. Tenho lido alguns livros. A minha esposa trouxe-me uma Bíblia
Sagrada…!
P
- Ainda, bem que tens a Bíblia Sagrada. Se não a tivesses nós traríamos uma na
próxima visita…
LUATY
BEIRÃO: Já li a Bíblia Sagrada debaixo para cima. Já li a maioria dos livros todos
do Velho Testamento e todos os livros do Novo Testamento e fiz anotações e
tudo. Temos tido missas, vem um pastor ou um padre para essas coisas. Mas sabes
que não acredito em Deus. Como é que vou acreditar num Deus que mata os próprios
filhos, que se vinga …! (risos)
P
.…Que se arrepende. Qualquer dia ainda acorda e diz que o homem já não vai para
o paraíso porque está fechado! (risos)
LUATY
BEIRÃO: Vê lá meu! (risos)
P
- (risos) Olha a tua história me faz lembrar a do filho de Winston Churchill,
o estadista britânico da 2ª guerra mundial. O Pai era crente mas o filho não.
Um dia o pai pediu a um pastor para que persuadisse o filho a ler a Bíblia
Sagrada. E então o pastor conseguiu aproximar-se ao filho e propôs que lesse
apenas duas ou três páginas. Caso não gostasse do que leria podia devolva-lo.
Aconteceu que o filho leu toda a Bíblia Sagrada e inclusive fez anotações, tal
como fizeste na tua. O pastor entusiasmado com a sua vitória sobre o filho,
regressou vários dias depois, curioso em saber se tinha gostado. O filho pôs-se
a rir e respondeu: “Afinal é este Deus que vocês adoram? Tão sádico, homicida,
vingativo, rancoroso…não acredito que se possa acreditar num ser tão cruel”
(risos)
LUATY
BEIRÃO: Vê lá meu! (risos)
P
- É claro que Deus não pode ser entendido dessa forma. Não se pode conceber um
Deus com emoções e todos os defeitos humanos tal como vem escrito na
literatura sacra. Há uma hermenêutica mais profunda que nos coloca diante de
um Deus que torna o próprio mal e o bem como partes que concordam num todo
harmonioso e elevam a sua verdadeira estatura de regulador universal. Se Deus
é amor, faz algum sentido que ele mande matar o seu povo de forma sádica e
homicida tal como vem no velho Testamento? Se Deus é todo-poderoso que sentido
faz haver um outro ser chamado diabo que o contraria? Alguma coisa está errada
na hermenêutica Bíblica Sagrada. Por isso, eu entendo que Deus é a combinação
do bem e o mal e tudo que acontece tem alguma coerência lógica que entendermos
a Bíblia para além das palavras. A tua situação por exemplo é parecida com a
história do Job.
LUATY
BEIRÃO: Já li. Um tipo que tinha tudo e por causa de uma discussão entre Deus e
o diabo acabou perdendo tudo só porque Deus deu ordens ao Diabo para testar a
sua fé! (risos)
P
- Parece ser duas entidades (Deus e diabo) em conflito. Mas a história de Job
é uma alegoria que exprime o
conflito que ocorre na nossa própria consciência. O que se passou é que era a
própria consciência de Job em conflito de fé. Estava ele na luta entre defender
os seus ideais e a família ou bens materiais. É essa a hermenêutica
subjacente nesse livro. E então aconteceu que ao escolher os seus princípios
morais (sua fé) acabou perdendo a família e os bens materiais. Empobreceu e
apanhou lepra. Vinham amigos para demovê-lo dos princípios e ele não aceitava,
até que um dia apareceu alguém que se sentou ao lado sem lhe contrariar num
mero acto de solidariedade. E a firmeza nos princípios foi tal que quando já
estava prestes a morrer de tanto mal causado pela doença. As circunstâncias
alteraram favoravelmente, sobreviveu e isso tornou ainda mais forte a sua
convicção (risos)!
LUATY
BEIRÃO: Ok!
P - E no seu caso, os princípios morais impuseram-se igualmente. Preferiste sacrificar
a família e os bens materiais para salvaguardares os teus princípios morais (a
tua fé). E estás neste estado de debilidade física que não é diferente de uma
doença como a lepra. Já vieram muitos amigos para tentar dissuadir-te. Hoje
que estás há dois dias do prazo de resistência fisiológica razoável viemos nós.
E pela primeira vez tens pessoas que concordam com os teus princípios!
(risos)!
LUATY
BEIRÃO: Então acreditas no destino?!
P
- Claro. Sou determinista e não causalista!
LUATY
BEIRÃO: Nesse caso acreditas que o que estou a fazer é algo predestinado. Tinha
que fazê-lo?
P
- Se isto é tão forte em si. É porque foste preparado para isso. E se nós
aparecemos nessas circunstâncias é porque alguma vontade suprema nos guiou e
pretende que tudo termine, porque já deste provas bastantes da tua fé nos teus
princípios!
LUATY
BEIRÃO: Olha a primeira vez que eu ia acreditando em Deus foi quando sai de
Portugal a pé até Angola?
P
- De Portugal à Angola, a pé?
LUATY
BEIRÃO: A pé, de carro, de burro, mas tudo a boleia. Foi depois de terminar a
formação na Europa. Decidi sair de Portugal passando pelo Tânger e seguindo por
vários países africanos até chegar a Luanda. Não fui assaltado em toda a viagem
até chegar no Sambizanga quando já estava uns quilómetros de casa (risos). Mas
o que me impressionou foi quando cheguei aos Camarões. Eu não tinha aonde
dormir e pedia ajuda a pessoas e não via ninguém interessado. E era a primeira
vez que não sentia solidariedade nenhuma. Eu já estava sem alternativas,
quando de repente apareceu um tipo que simpatizou-se comigo e disse que era
angolano e vivia há 15 anos no país. Foi ele que me acolheu e tive até uma
grande refeição. Foi uma experiencia muito forte na minha vida!
P
- Realmente é uma experiência extraordinária. Quando já estavas no limite das
tuas possibilidades, surgiu a solução!
LUATY
BEIRÃO: Então se está escrita que vou passar por isso então só me resta
manter-me firme. Se sobreviver será vontade de Deus ou seja o que for, se não
então também é vontade dele.
P
- Percebo que não é fácil contrariar os próprios princípios, mas terás de compreender
que se não resistes até a fase do julgamento, no mínimo tens de escrever algo
em tua defesa para que possamos utilizar como o teu desejo póstumo em termos
de ideais perseguidos e justificar as tuas nobres visões sobre o Estado e
povo.
LUATY
BEIRÃO: Não sei. Já não leio em condições. Estou a perder a visão… (Suspiro
profundo)!
P
- Se queres que aceitemos a tua morte, no mínimo prometa-nos que vais fazer
apontamentos em tua defesa. Em defesa da causa que sempre defendeste para que
ela não se perca no esquecimento contigo mesmo…!
LUATY
BEIRÃO: Está bem, Albano. Vou fazer algum esforço. Mas compreenda que nessa
altura é quase sobre-humano… (Suspiro profundo)! Mas devo reconhecer que desde
que estou aqui preso nunca tive tanto tempo de conversa com uma visita. É
extraordinário o que vocês conseguiram e estou profundamente
grato por isso!
A
FORÇA DA ALMA
N.B:
Ao longo do diálogo de cerca de 3 horas, percebia-se que o esforço de Luaty
Beirão em manter a conversa vinha do próprio espírito entusiasmado pela nossa
presença, que lhe permitiu abrir-se e expor-se tão a vontade como se
desabafasse para a sua própria alma. Mesmo com a visível fraqueza do corpo chegava
a dar gargalhadas em volta dos vários temas que tratamos. Embora ateu, a alma
divina estava nele. Claro é apenas ateu porque não crê no Deus sádico tal como
não creio. E essa alma fazia a sua parte sobrenatural num corpo fragilizado.
Infelizmente, receio que tudo isso se repercuta negativamente na sua saúde já
debilitada. Mas foi concerteza um diálogo necessário e uma momento impar na
própria vida de Luaty Beirão. Pois, percebi que acabou saindo com uma nova fé
e com um Deus renovado na sua percepção.
O
MEU CHORO
(P.S:
Depois de ter deixado a prisão, longas horas depois de conter as fortes
emoções que me provocaram a imagem deplorável e a integridade impar de Luaty
Beirão, e percebendo nele uma jóia rara a desaparecer, explodi em choros e
lágrimas, como nunca mais me aconteceu desde o fim da infância.)
*Jurista
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