Manuel
Carvalho da Silva – Jornal de Notícias, opinião
Há
momentos em que parece haver uma fábrica onde se cozem ideias pronto-a-vestir e
empresas que as distribuem rapidamente a todas as casas. A respeito da vitória
de Trump, são três as principais ideias deste tipo que os comentadores dos
grandes meios de comunicação nos apresentam.
A
primeira. Dizem-nos que, na realidade, a vitória de Trump não faz grande
diferença, pois nos EUA existem contrapoderes capazes de garantir que o
"sistema" funcione sempre de forma idêntica, independentemente de
quem ocupa o posto de comando. Veremos se assim é.
Por
certo, Wall Street, agora com reforço do poder dos banqueiros e a Goldman Sachs
bem à cabeça, continuará a nomear os conselheiros económicos e os lugares-chave
da administração. A conceção imperialista e as atuações de intromissão abusiva
e violenta do poder norte-americano noutros países não são novas, agora poderão
alterar-se as prioridades e ser ainda mais brutal, mas para os produtores
destas ideias isso é normal. Ao mesmo tempo escamoteiam ou secundarizam mudanças
de maior significado. É que, não é mesma coisa desregular ainda mais o sistema
financeiro e descer os impostos para os rendimentos elevados e as grandes
empresas, ou deixar de o fazer. Não é a mesma coisa denunciar o Acordo de Paris
sobre as alterações climáticas ou cumpri-lo. Não é a mesma coisa deportar
emigrantes ou deixar de o fazer. Não é mesma coisa pôr termo ao débil sistema
de saúde pública criado por Obama, ou procurar melhorá-lo. Não é a mesma coisa
liberalizar ainda mais o comércio de armas, ou procurar limitá-lo.
Trump
sem dúvida significa mudança, significa aprofundamento do retrocesso face a
todos os progressos conseguidos desde a 2.ª Guerra Mundial. Trump adiciona ao
poder de Wall Street novas e duras doses de violência, de autoritarismo e de ódio,
e propõe-se utilizar instrumentos do Estado autoritário de que o poder da
finança e dos negócios parece carecer para fazer face à "crise"
incubada por esse mesmo poder.
A
segunda. A ideia de que quem deu a vitória a Trump foi a "classe
média" e a classe trabalhadora, "brancas" e
"iletradas". Ora, de facto, o que deu a vitória a Trump foi um voto
muito transversal a todas as classes - do 1% do topo que espera ver os seus
impostos ainda mais reduzidos, ao 1% da base que tem insatisfações fundadas e
naturais desejos de mudança. Trump, embora com demagogia e muita mentira,
disse-lhes que vai reconstruir a indústria e criar novos empregos à custa de
emigrantes expatriados. O que deu a vitória a Trump foi ter como adversária uma
candidata enredada nas malhas da finança, da promiscuidade de interesses e do
desrespeito por valores éticos, que personificam o cerne do status quo.
A
terceira. Desavergonhadamente é-nos vendida a ideia de que Trump é uma das
faces do "protecionismo retrogrado" que se opõe à "globalização"
inelutável e progressiva, que está a retirar milhões de pessoas da miséria. A
outra face deste protecionismo é a "extrema-esquerda", dizem-nos.
Para esses fazedores da "realidade", tudo é "populismo", no
mesmo saco. Os factos mostram, entretanto, que a "globalização" de
que se fala pouco mais é que um redesenho da divisão internacional do trabalho,
muito sustentada em barreiras tecnológicas libertas de decisões políticas que
as coloquem ao serviço das pessoas, e escoradas por direitos de propriedade intelectual
reforçados. No essencial é um Mundo divido por um muro que tem de um lado
trabalho intensivo e sem direitos para muitos - Trump é um antissindicalista
primário - e, do outro, "serviços" tecnológicos bem remunerados para
uma minoria bem-sucedida e com uma massa de desempregados ou subempregados com
cada vez menos direitos. Muitos destes já não são classificados de
trabalhadores, mas sim de executores de atividades da "economia
colaborativa".
Enquanto
o protecionismo de Trump é demagogia que serve o propósito de neutralizar o
descontentamento e submeter as pessoas, a proteção social da Esquerda, a busca
de regras para a economia e valores éticos e morais para a política, são a
resposta necessária a um poder do capital que se torna exorbitante e despótico,
quando deixa de ter limites e fronteiras.
*Investigador
e professor universitário
2 comentários:
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