David
Pontes* – Jornal de Notícias
Na
última crónica, deixava aqui o meu voto de que os norte-americanos, com a
eleição de uma mulher presidente, ajudassem a humanidade a dar um passo em
frente. Não foi o que aconteceu, antes fizeram-na recuar uns tantos passos até,
talvez, aos anos 30 do século passado.
Nos
próximos tempos, andaremos a escalpelizar como isto aconteceu, o que motivou os
eleitores a tomarem esta decisão, que ambiente político e cultural permitiu que
um personagem tão escatológico subisse ao lugar público mais importante do Mundo.
E vamos fazê-lo, pensando que há muitas coisas que são específicas dos Estados
Unidos, mas sabendo, com um nó na garganta, que em breve o mesmo pode suceder
do lado de cá do Atlântico.
Porque,
por muitas razões que possamos elencar, ninguém me tira que há uma poderosa
força motriz por trás das motivações dos eleitores que Trump soube capitalizar:
o medo. Pode ser da globalização, da economia, de um Mundo em mudança,
certamente dos emigrantes, dos muçulmanos. Medo, essa sensação básica que faz
disparar o nosso instinto de sobrevivência mas que, simultaneamente, é capaz de
despertar os comportamentos mais irracionais. É difícil discutir com o medo,
mas é fácil fazê-lo crescer entre quem se sente mais frágil. Não por acaso,
Clinton ganharia facilmente se só votassem os mais novos, enquanto Trump foi o
porto seguro para os mais velhos, que ouviram um candidato berrar aquilo que
alimentava as suas angústias.
Na
semana passada, pude ouvir uma reportagem sobre a forma como a vinda de um
grupo de refugiados somalis para uma pequena cidade no meio da América
transformou "gente razoável" em gente temerosa de que aqueles
muçulmanos fossem uma ameaça para a sua forma de vida. Nessa reportagem, uma
professora resumia de forma singular: "Eu percebo que as pessoas possam
ter uma sensação de medo e não podemos discutir com uma sensação. Só que as
pessoas têm direito de ter uma sensação, mas não têm o direito a dar largas a
isso. Como eu digo à minha filha, tu tens o direito de chorar ou de estar
zangada, mas não tens o direito de bater com as portas".
Agora,
os norte-americanos baterem a porta com tanta força, que o barulho que fizeram
vai ecoar durante muito tempo. Mas não vale a pena acharmos que, por muito
absurdo ou errado que tenha sido o seu voto, isso faz deles uma qualquer
espécie de humanos muito diferentes de nós. Se não acham isso, respondam-me
como é possível continuar a achar normal entrar em lojas onde os comerciantes
colocam sapos de louça para afugentar ciganos.
*
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