sexta-feira, 11 de novembro de 2016

MEDO



David Pontes* – Jornal de Notícias

Na última crónica, deixava aqui o meu voto de que os norte-americanos, com a eleição de uma mulher presidente, ajudassem a humanidade a dar um passo em frente. Não foi o que aconteceu, antes fizeram-na recuar uns tantos passos até, talvez, aos anos 30 do século passado.

Nos próximos tempos, andaremos a escalpelizar como isto aconteceu, o que motivou os eleitores a tomarem esta decisão, que ambiente político e cultural permitiu que um personagem tão escatológico subisse ao lugar público mais importante do Mundo. E vamos fazê-lo, pensando que há muitas coisas que são específicas dos Estados Unidos, mas sabendo, com um nó na garganta, que em breve o mesmo pode suceder do lado de cá do Atlântico.

Porque, por muitas razões que possamos elencar, ninguém me tira que há uma poderosa força motriz por trás das motivações dos eleitores que Trump soube capitalizar: o medo. Pode ser da globalização, da economia, de um Mundo em mudança, certamente dos emigrantes, dos muçulmanos. Medo, essa sensação básica que faz disparar o nosso instinto de sobrevivência mas que, simultaneamente, é capaz de despertar os comportamentos mais irracionais. É difícil discutir com o medo, mas é fácil fazê-lo crescer entre quem se sente mais frágil. Não por acaso, Clinton ganharia facilmente se só votassem os mais novos, enquanto Trump foi o porto seguro para os mais velhos, que ouviram um candidato berrar aquilo que alimentava as suas angústias.

Na semana passada, pude ouvir uma reportagem sobre a forma como a vinda de um grupo de refugiados somalis para uma pequena cidade no meio da América transformou "gente razoável" em gente temerosa de que aqueles muçulmanos fossem uma ameaça para a sua forma de vida. Nessa reportagem, uma professora resumia de forma singular: "Eu percebo que as pessoas possam ter uma sensação de medo e não podemos discutir com uma sensação. Só que as pessoas têm direito de ter uma sensação, mas não têm o direito a dar largas a isso. Como eu digo à minha filha, tu tens o direito de chorar ou de estar zangada, mas não tens o direito de bater com as portas".

Agora, os norte-americanos baterem a porta com tanta força, que o barulho que fizeram vai ecoar durante muito tempo. Mas não vale a pena acharmos que, por muito absurdo ou errado que tenha sido o seu voto, isso faz deles uma qualquer espécie de humanos muito diferentes de nós. Se não acham isso, respondam-me como é possível continuar a achar normal entrar em lojas onde os comerciantes colocam sapos de louça para afugentar ciganos.

* Subdiretor

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