Vitória
de Trump sela o declínio da ordem mundial presidida pelos EUA. Como há um
século, virão tempos áridos — e o fascismo é ameaça real. Para enfrentá-lo, é
preciso nova esquerda
Jerome Roos,
em Jacobine –
Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho
Um
terremoto político acaba de criar uma fenda no mundo. Não pode haver dúvidas de
que a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos
marca um ponto de ruptura na política norte-americana e na ordem liberal
internacional estabelecida ao fim da Segunda Guerra Mundial. Nada será igual
depois disso. Mas é crucial recordar que este momento vem sendo construído há
um longo tempo.
Nos
últimos anos, os pilares gêmeos do sistema mundial do pós-guerra – mercados
capitalistas globais e instituições democráticas liberais – vêm declinando
consistentemente, sob as tensões de uma crise estrutural de financialização e
uma crise profunda de legitimação do establishment político neoliberal. O
choque dessa eleição indica que a dupla crise finalmente emergiu. O próprio
Trump irá ao fim mudar, mas a crise que sua ascensão expressa irá supurar e
finalmente transbordar a capacidade regulatória até mesmo do Estado mais
poderoso do mundo. Estamos agora nos dirigindo firmemente em direção ao tipo de caos
sistêmico mundial previsto pelos sociólogos Giovanni Arrighi e Beverly
Silver na virada do século.
Aqui
poderíamos dispensar imediatamente um mito disseminado e perigoso: a ascensão
de Trump não pode ser atribuída apenas à visão supostamente extremista e
retrógrada da classe trabalhadora norte-americana. Nos EUA, pelo menos, a
corrida para o populismo de direita parece ser uma resposta da classe média à dupla
crise do capitalismo global e da democracia liberal. Como diz Paulo
Mason, “Donald Trump ganhou a presidência – não por causa da ‘classe
trabalhadora branca’, mas porque milhões de cidadãos norte-americanos de classe
média e educados olharam fundo em sua alma e lá encontraram, depois de
despir-se de todos os conceitos, um sorridente branco racista. Além de reservas
inexploradas de misoginia.”
Foi
essa classe média branca, especialmente de homens, que deu
a Trump a presidência: a maioria daqueles que ganham menos de US$ 50 mil
por ano votou para Hillary, enquanto a maioria daqueles que ganham mais do que
isso votou para Trump. Quase dois em cada três homens brancos, 63% no total,
votou no candidato de extrema direita republicano. Mas esses números certamente
revelam um cenário desconcertante sobre o racismo profundamente enraizado no
coração da sociedade americana. Ao fim e ao cabo, Trump de fato amealhou uma
parcela do voto popular ainda menor do que Bush, Romney ou McCain. Trump não
venceu porque era popular; Hillaryb é que perdeu por ser tão extremamente
impopular.
A
pergunta que deveríamos fazer agora é por que eleitores brancos de classe média
se sentiriam confortáveis com a eleição de um candidato abertamente racista e
sexista como Trump. E aqui não poderíamos evitar as complexas interações entre
fatores culturais e econômicos. A literatura acadêmica do populismo de direita
e do sentimento anti-imigrante tem tratado essa relação, muito frequentemente,
como algum tipo de dicotomia. Na verdade, as duas estão profundamente
interligadas e não podem ser separadas uma da outra: é o medo existencial
gerado pela intensa insegurança socioeconômica que provoca a emersão de
preconceitos etnocêntricos profundamente assentados. Num clima de ansiedade,
moldado por décadas de reestruturação neoliberal e anos de crise econômica, a
sedução de um líder forte e a identificação de um conjunto de bodes expiatórios
podem irresistíveis para muitos.
Embora
Trump claramente não seja nem carismático nem honesto, Noam Chomsky
essencialmente previu,
há seis anos, os passos que levariam a uma “enlouquecida” vitória eleitoral
republicana de direita:
“Se
aparecer alguém carismático e honesto, este país estará em apuros por causa da
frustração, desilusão, raiva justificada e ausência de qualquer resposta
coerente. O que as pessoas devem supostamente pensar se alguém diz ‘Eu tenho a
resposta, nós temos um inimigo’? Já houve os judeus. Agora serão os imigrantes
ilegais e os negros. Dirão que temos de nos defender e à honra da nação. As
forças militares serão exaltadas. As pessoas serão espancadas. Isso poderia
tornar-se uma força avassaladora. E se isso acontecer, será mais perigoso do
que na Alemanha. Os Estados Unidos são um poder mundial, a Alemanha era
poderosa mas tinha antagonistas mais poderosos. Não acho que isso tudo esteja
muito longe. Se as pesquisas são confiáveis, não serão os republicanos, mas os
republicanos de direita, os republicanos enlouquecidos que levarão a próxima
eleição.”
Por
fim, a “frustração, desilusão e raiva justificada” que alimentaram a vitória de
Trump têm raiz não apenas na péssima gestão da crise financeira global e da
Grande Recessão; mas remonta a quatro décadas de globalização econômica e
declínio democrático que a precederam. Esse é um ponto crucial. Afinal, se
Trump fosse meramente um sintoma da crise financeira, uma retomada econômica
sustentável poderia eventualmente miná-lo. Mas se, ao contrário, sua ascensão é
de fato o resultado de um conjunto mais profundo de contradições do capitalismo
global e da democracia liberal, os fatores que alimentaram sua vitória irão
provavelmente persistir – e o sentimento antiestablishment irá provavelmente
intensificar-se.
Em A
Grande Transformação, Karl
Polanyi identificou um conjunto muito similar de desenvolvimentos que levavam a
uma ruptura da ordem mundial liberal no início do século 20. Como ele apontou,
o ascenso do fascismo não foi apenas resultado da Grande Depressão, mas, ainda
mais importante, da liberalização extensiva dos mercados mundiais na primeira
onda de globalização do século dezenove. Para Polanyi, foi a desvinculação das
relações econômicas de todas suas restrições sociais, a mercantilização de
esferas da vida que estavam até então protegidas dos “caprichos do mercado”, e
as profundas inseguranças sociais geradas por essa “grande transformação” que
finalmente impulsionaram o crescimento de contramovimentos nacionalistas contra
o liberalismo econômico – um retrocesso popular contra as altas finanças
cosmopolitas, personificadas pelo estereótipo racista do judeu ganancioso, e
contra o establishment político da época.
Donald
Trump, o bilionário magnata do setor imobiliário com seu estilo de vida luxuoso
e cosmopolita não convencional não é, claramente, um simples fascista ou
nacional-socialista do tipo de 1930. Mas embora a história não se repita,
literalmente, há ao menos um aspecto importante no qual a situação de hoje ao
menos assemelha-se aos tempos de Polanyi. O que estamos testemunhando neste
momento parecem ser os estágios iniciais de um prolongado processo de
fragmentação política, polarização ideológica e decomposição institucional que
serão marcadas pela intensificação do caos sistêmico e uma escalada de
conflitos políticos que atingirão a todos. Não é nada improvável que esses
desenvolvimentos culminem, ao fim, num colapso gradual da Pax Americana,
exatamente como a desordem global do período entre-guerras levou ao fim da Pax
Britannica.
Essa
crise, em outras palavras, é estrutural – e Trump não deveria ser visto
isoladamente. Entre o Brexit, Marine Le Pen na França, Alternativa para
Alemanha (AfD), Aurora Dourada na
Grécia, Geert Wilders na Holanda e Viktor
Orban na Hungria, o nacionalismo de extrema-direita está crescendo em
ambos os lados do Atlântico. Se incluímos o golpe constitucional no Brasil e o contragolpe de
Erdogan na Turquia, podemos até estender essa mesma linha de análise aos países
emergentes. A desordem política prevista por Arrighi e Silver está se tornando
consistentemente generalizada. A crise da democracia nacional e o renascimento
do nacionalismo econômico são, claramente, um fenômeno internacional. Com
razão, o economista político Mark Blyth refere-se a isso como “Trumpismo Global”.
Essa
onda de ódio anti-establishment continuará a espalhar-se, e deveríamos esperar
novos choques nos meses e anos à frente – talvez mais precisamente na Itália,
onde o primeiro ministro Matteo Renzi parece prestes a perder um referendo
constitucional no fim deste ano– o que pode ressuscitar a crise da dívida da
Eurozona, que ficou latente desde que os governos da União Europeia esmagaram
um outro governo antiestablishment de curta duração na Grécia, ao passado. Há
poucas dúvidas, portanto, de que 2016 ficará para a história como o corolário
político de 2008. A crise do capitalismo global e da democracia liberal vai
continuar a aprofundar-se, e as coisas irão ficar provavelmente muito piores
antes que venham a melhorar.
Nossa
resposta a essa crise deve ser guiada pela observação de Walter Benjamin de que
a ascensão do fascismo é sempre um indicador de uma revolução fracassada.
Agora, mais que nunca, precisamos de uma esquerda revigorada e movimentos
sociais fortes para construir poder coletivo a partir de baixo. Apenas uma
democracia radical pode superar as ruínas da ordem liberal decadente e derrotar
a direita antes que ela cause dano irreversível a nosso planeta e a seus
habitantes. Esse é o momento para nos organizar e intensificar nossas lutas.
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