sexta-feira, 27 de maio de 2016

DESTRUTURAÇÃO: A FASE ACTUAL DO NEOCOLONIALISMO



 Rui Peralta, Luanda 

Líbia, Sudão, Somália, Mali, pertencem á extensa lista das nações africanas que sofreram uma intervenção militar norte-americana e/ou europeia. Ao colonialismo seguiu-se o neocolonialismo, primeiro assente no aproveitamento das dinâmicas internas dos Estados africanos e, na actual fase, caracterizado pela destruturação das nações e sociedades africanas. A destruturação tem as suas reminiscências em contextos históricos anteriores, pertencentes ao colonialismo e/ou á primeira fase neocolonial e que não se completaram, não assumiram a sua forma final. É o caso da “balcanização” na Europa (no contexto histórico de finais do século XIX europeu), da “congolização” (os factos ocorridos no ex-Congo Belga, que levaram ao assassinato de Lumumba e que geraram um período de grande instabilidade no Congo, actual RDC, culminando com a ditadura de Mobutu) e da “somalização”.

Estas três etapas representam, também, uma mutação nas formas de racismo. Após a II Guerra Mundial o racismo cultural (etnema do neocolonialismo) substituiu o racismo biológico (etnema do colonialismo). O racismo cultural foi paulatinamente acrescido, a partir da segunda metade da década de 80 (quando se inicia o processo para terminar com o apartheid na África do Sul), pelo apartheid social, que apresenta-se sob diversas formas desde a questão religiosa (elemento amplificado com base no forma de racismo cultural, estruturado na ideologia da “guerra das civilizações”) até às formas mais requintadas e almofadadas do africapitalismo e das “reformas estruturais” do chamado “consenso de Washington”, que têm no Banco Mundial e no FMI os seus principais quartéis-generais, assessorados, claro, pela NATO.

A destruturação ganha forma como objectivo para África, na Somália (“somalização”, processo que foi experimentado, também, numa fase pré-negocial em Angola pela UNITA e que teve em Abel Epalanga Chivukuvuku – que parece continuar a ser recebido na Casa Branca com honras de chefe de Estado - o seu principal porta-voz, sob o olhar atento de Jonas Savimbi, não fosse o diabo tecê-las). Está presente na Líbia e na utilização do fascismo islâmico no continente (Mali, Níger, Nigéria, Camarões, Quénia e outros Estados) com o objectivo de “redesenhar a periferiaafricana”.

Esta nova forma que assume o neocolonialismo actual parte da velha tese colonial (e que já estava nas premissas neocoloniais da etnosofia da “negritude” de Senghor e da “autenticidade” de Mobutu, ou das ideologias de outros Estados africanos submetidos ao domínio neocolonial) de que algumas sociedades, culturas, religiões, estão dotadas de historicidade, enquanto outras não, afirmando que o “drama africano” consiste no facto do africano não “entrar o suficiente” na História. Neste sentido a nova tese neocolonial, a destruturação, retoma as ideologias imperiais da justificação da escravatura e da colonização. Desta forma legitima a presença dos colonizadores e certifica a inferioridade dos colonizados, através de um artefacto, que é a História Oral. A Europa é Histórica, tem tradição escrita. África é a-Histórica, a sua tradição é oral. Movida pelos seus valores intelectuais e espirituais a Europa desempenha, através da missão colonial, um movimento que provoca a entrada de África na História. Que ilusão falaciosa!

Esta leitura dos tempos do antanho prevalece, sob diversas capas e cores, assim como prevalece a sua função política e social que consiste em negar interacções. As interacções estão presentes em todas as dinâmicas da economia-mundo actual, ou melhor, todas estas dinâmicas são interactivas. Para neutralizar a interacção formalizam-se esquemas explicativos, fortemente hierarquizados. Estes esquemas representativos constituem a essência do racismo, tanto naquilo em que é constante, como nas suas mutações. Todos os rostos do racismo, desde o biologismo ao apartheid social, passando pelo culturalismo pretendem hierarquizar a humanidade. Por sua vez, cada rosto do racismo corresponde a um grau de relação económica, social e politica. Ao capitalismo monopolista correspondeu a escravatura e o colonialismo, como forma de dominação politica e económica, e o biologismo como forma de racismo. Ao capitalismo actual corresponde a destruturação – nova fase neocolonial - como forma de domínio e o apartheid social como forma de relacionamento. Pelo meio ficou o capitalismo que prevaleceu apos a II Guerra Mundial até á década de 90, caracterizado pelo primeiro modo de neocolonialismo como forma de dominação que o centro usava na periferia (e que ainda prevalece como dominante em África) e a “etno-cultura”, como racismo.

Esta nova orientação neocolonial não é uma simples opção ao nível da política externa mas, sim, a expressão de uma profunda alteração nas estruturas globais do capitalismo, em particular do capitalismo no Ocidente. O que suscitou a passagem do colonialismo ao neocolonialismo foi a monopolização do capitalismo. Da mesma forma, o que suscita a actual fase neocolonial - a da destruturação - está ligada ao aparecimento dos oligopólios globais e á extrema rapidez e fluidez de circulação dos capitais, assim como á consequente volatilidade a que os mercados internacionais estão sujeitos. A periferia africana necessita de ser redesenhada e a melhor forma de a redesenhar é destruturar o continente.

Destruturar o continente africano passa pela destruição da memória, também esta uma questão sociocultural. Para redesenhar mapas há que reescrever (ou "re-oralizar") o passado. E, para mistificar o passado, que se apague as memórias…

Guiné-Bissau. Baciro Dja empossado nove meses depois de ter renunciado



PR diz ser hoje um dia inesquecível

O Presidente da Guiné-Bissau Jose Mário Vaz deu posse no início da tarde desta sexta-feira, 27, a Baciro Dja como novo primeiro-ministro, nove meses depois de o mesmo ter sido obrigado a renunciar ao cargo por imposição do Supremo Tribunal de Justiça.

Ao intervir, o novo chefe do Executivo guineense reiterou que “a legitimidade do Governo decorre de uma maioria parlamentar e da responsabilidade perante o Presidente da República. Sem estas duas condições não há o regular funcionamento das instituições".

O antigo ministro e deputado dissidente do PAIGC, membro do chamado grupo dos 15 que em Dezembro votou contra o programa do Executivo de Carlos Correia, reconheceu que o PAIGC venceu as eleições de 2014, mas reiterou que "as dinâmicas posteriores ditaram uma nova configuração parlamentar" deixando o partido "impossibilitado de apresentar uma solução capaz de suportar o Governo".

Ao mesmo tempo, diz, "emergiu uma solução e a "oportuna interpretação do Presidente da República".

Por sua vez,José Mário Vaz considerou o dia "inesquecível" e justificou a sua decisão com o facto de que "só a segunda força mais votada no âmbito da dinâmica parlamentar" conseguiu ultrapassar o "bloqueio" na Assembleia Nacional Popular.

O Presidente da República demitiu o Governo de Carlos Correia na semana passada por, segundo justificou, não ter apoio parlamentar.

José Mário Vaz convidou o PRS que indicou Baciro Dja para formar o quarto Governo da Guiné-Bissau em 10 meses.

Entretanto, os membros do Executivo demitido encontram-se no Palácio do Governo e dizem que não vão sair de lá por não reconhecerem o novo primeiro-ministro.

Voz da América

Executivo demitido da Guiné-Bissau vai continuar concentrado em protesto



Membros do executivo demitido da Guiné-Bissau vão continuar hoje concentrados no Palácio do Governo, na capital do país, onde passaram a noite, em protesto contra a nomeação de um novo primeiro-ministro.

Agnelo Regalla, ministro da Comunicação Social, disse hoje à agência Lusa que a equipa pretende "permanecer nas instalações e aguardar" por uma reunião de dirigentes do PAIGC de todo o país, que deverá acontecer hoje em Bissau.

Domingos Simões Pereira, presidente do partido, deverá chegar hoje a Bissau depois de uma viagem ao Senegal.

O Governo de Carlos Correia, demitido a 12 de maio, protesta contra o facto de o Presidente da República, José Mário Vaz, ter nomeado na quinta-feira um novo primeiro-ministro, Baciro Djá, um ato que considera inconstitucional.

"Estamos aqui para salvar a democracia", referiu Agnelo Regalla, presidente do partido União para Mudança, que integra o executivo do PAIGC.

A nomeação provocou também na quinta-feira distúrbios na Praça dos Heróis Nacionais, com dezenas de pessoas agrupadas junto à sede do PAIGC a atirar pedras contra o palácio da presidência e a queimar pneus no meio da estrada.

Os manifestantes foram desmobilizados pelas forças de segurança com gás lacrimogéneo e a praça voltou à normalidade durante a noite.

Apesar dos protestos, a presidência informou que a cerimónia de posse do novo líder de Governo está marcada para hoje, ao meio-dia, no palácio presidencial.

Baciro Djá tinha sido nomeado para o cargo a 20 de agosto de 2015, mas acabaria por apresentar a demissão dias depois, a 09 de setembro, quando o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) da Guiné-Bissau considerou inconstitucional a sua nomeação.

Na altura, os juízes do STJ afirmaram, num acórdão, que cabe ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), como vencedor das eleições de 2014, indicar o primeiro-ministro e não ao Presidente.

No decreto que nomeia Baciro Djá pela segunda vez, José Mário Vaz justificou-se na quinta-feira dizendo que, agora, o partido que venceu as eleições já não tem maioria no parlamento.

Um grupo de 15 deputados, em que se inclui Baciro Djá, afastou-se do PAIGC e juntou-se ao maior partido da oposição, PRS - Partido da Renovação Social, para formar uma nova maioria.

"Apenas a solução governativa protagonizada pelo segundo partido mais votado [PRS] mostra garantias de estabilidade até ao fim da presente legislatura", refere-se no decreto presidencial.

O PAIGC tem acusado José Mário Vaz de ser o percursor da instabilidade no parlamento e defende que a perda de mandato dos 15 deputados dissidentes e sua substituição já foi validada pela justiça, pelo que considera preservada a sua maioria parlamentar.

Agnelo Regalla acusa o chefe de Estado de querer dar posse a um Governo que sabe não ter suporte político, para depois "dissolver o parlamento" e manter em gestão um executivo "à sua imagem", em vez da equipa de Carlos Correia.

LFO/MB // ARA - Lusa

Centro de Bissau está deserto e circulação automóvel foi reaberta, após distúrbios



A Praça dos Heróis Nacionais, no centro de Bissau, está deserta e a circulação automóvel foi reaberta, depois dos distúrbios ocorridos ao princípio da noite de quinta-feira, quando o Presidente da República nomeou um novo primeiro-ministro.

Pouco depois das 22:00 (23:00 em Lisboa), as forças de segurança ordenaram a desmobilização de alguns manifestantes que se concentravam à porta da sede do PAIGC, ao lado do palácio presidencial, bem como do resto da população que tentava matar a curiosidade.

O acesso pedonal e automóvel foi interdito e toda a zona adjacente à Presidência ficou praticamente deserta.

Cerca de duas horas depois, parte dos elementos de segurança abandonaram o local e a circulação foi restabelecida, já com a praça vazia.

O ponto alto dos distúrbios aconteceu quando a nomeação do novo primeiro-ministro, Baciro Djá, foi anunciada, pouco depois das 19:00 (20:00 em Lisboa).

Algumas dezenas de manifestantes atiraram pedras contra o palácio presidencial e atearam fogo a alguns pneus nas imediações, relataram observadores que presenciaram os distúrbios.

As forças de segurança e militares responderam com gás lacrimogéneo e começaram a ocupar aquela zona central de Bissau, onde a sede do PAIGC abrigou vozes de protesto contra o presidente, José Mário Vaz, durante várias horas.

Fonte da presidência anunciou que a cerimónia de posse de Baciro Djá está marcada para o meio-dia (13:00 em Lisboa) de hoje.

LFO // FV - Lusa

PR angolano manda inspecionar contas do Ministério da Saúde



A Inspeção Geral da Administração do Estado (IGAE) de Angola iniciou uma inspeção às contas do Ministério da Saúde de 2015 e 2016, para analisar a despesa contraída e por pagar, conforme indicação do Presidente da República, José Eduardo dos Santos.

A informação consta de um despacho de 23 de maio, assinado pelo Inspetor-Geral do Estado, Joaquim Mande, documento ao qual a Lusa teve hoje acesso, dando conta ter recebido "ordem superior do titular do poder executivo" nesse sentido.

A comissão de inspeção entretanto constituída terá 45 dias, contados a partir de 13 de junho de 2016, para apresentar o relatório sobre a situação referente aos exercícios económicos do Ministério da Saúde desde 2015.

Proceder ao "levantamento do paradigma da aquisição de medicamentos" e verificar "o mecanismo de distribuição" dos mesmos, bem como identificar os seus fornecedores e respetiva situação fiscal, são objetivos específicos desta inspeção pedida pelo Presidente angolano.

A comissão de inspeção, formada por técnicos da IGAE e das Finanças, vai ainda proceder ao levantamento da dívida do Ministério da Saúde e "averiguar a correta classificação da despesa segundo o Orçamento", refere o mesmo despacho.

José Van-Dúnem foi ministro da Saúde durante vários anos, tendo saído das funções em março passado, aquando de uma alteração na composição do Governo decidida por José Eduardo dos Santos, substituído no cargo pelo então secretário de Estado da Saúde, Luís Gomes Sambo.

Angola vive uma profunda crise económica e financeira decorrente da quebra nas receitas com a exportação de petróleo e tem vindo a cortar nos gastos em vários setores do Estado.

O Ministério da Saúde contava no Orçamento Geral do Estado de 2015 com uma dotação financeira de 405,4 mil milhões de kwanzas (2,1 mil milhões de euros), verba que desceu para 341,5 mil milhões de kwanzas (1,8 mil milhões de euros) nas contas para este ano.

PVJ // VM – Lusa

Polícia angolana pede a partidos para comunicarem atos políticos e evitar incidentes



O comandante-geral da Polícia Nacional angolana pediu hoje aos partidos políticos para comunicarem às autoridades locais a pretensão de realizar atividades partidárias, para evitar incidentes iguais ao ocorrido com a UNITA, com três mortos.

Ambrósio de Lemos reagia aos confrontos entre militantes do maior partido da oposição angolana e do partido no poder, MPLA, na quarta-feira, na comuna de Capupa, município do Cubal, província de Benguela, que terá resultado em três mortes, quatro desaparecidos e três feridos, um dos quais agente da Polícia Nacional, admitindo que a atividade foi comunicada, mas que o programa inicial foi alterado.

Segundo o comandante-geral da Polícia Nacional, "há um órgão do Estado encarregue para estas questões e os membros dos partidos precisam de comunicar as autoridades locais para se criar medidas de segurança".

"As informações que me chegaram foram que as autoridades locais, a Polícia Nacional, a administração local e o Governo provincial tomaram medidas pertinentes, chamando à razão as áreas políticas, no sentido de evitar que situações do género tenham lugar no nosso país", disse o comissário-chefe Ambrósio de Lemos, citado pela agência noticiosa angolana, Angop.

Reiterou a necessidade de se dar a conhecer às autoridades a realização de qualquer ação, com vista a serem criadas condições para que haja recetividade por parte da população.

Sem comunicação, Ambrósio de Lemos frisou que situações como essas são suscetíveis de acontecer, porque, "somos todos angolanos, mas cada um tem as suas razões em relação à situação que está a viver ou que se viveu".

"E é preciso quebrar-se isso para evitar estes confrontos entre populares nas localidades", disse Ambrósio de Lemos, confirmando que a UNITA informou que pretendia realizar a referida atividade, mas o programa anunciado foi alterado.

A UNITA já anunciou que vai pedir uma comissão de inquérito urgente aos incidentes ocorridos, que envolveram ainda ameaças a três deputados do maior partido da oposição angolana.

A informação foi avançada, quinta-feira, à Lusa por Adalberto da Costa Júnior, um dos três deputados, que, segundo o próprio relatou, terão sido alvo, juntamente com outros militantes, de "emboscadas" e "ataques" alegadamente perpetrados por "apoiantes" do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), no poder, durante a visita de trabalho.

"É uma zona ciclicamente de muita intolerância política e onde nunca houve responsabilização deste tipo de ação. Mas o que aconteceu connosco não foi intolerância política e sim um ataque para matar", denunciou o deputado e líder da bancada parlamentar da UNITA, um dos visados.

Os ataques à comitiva e militantes da UNITA, disse ainda, terão envolvido, além de agressões e destruição de casas e viaturas de apoiantes do partido do "galo negro" durante o dia, "várias emboscadas num perímetro de oito a dez quilómetros". Inclusive com "árvores cortadas no meio da estrada para parar as viaturas" e a utilização de flechas, porretes, catanas e paus.

A UNITA associa "sem dúvidas" o ataque a apoiantes do MPLA, nomeadamente pela utilização de bandeiras daquele partido e pelo historial deste tipo de ações.

NME // EL - Lusa

Confrontos "ensombram" investigações sobre vala comum em Moçambique – Comisão Parlamentar



O presidente da Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e Legalidade do parlamento moçambicano considerou hoje que os confrontos militares no centro do país "ensombram" as investigações em torno de uma alegada vala comum com mais de cem corpos.

"A localização geográfica e o contexto de tensão político-militar que acontece constitui sem dúvida uma limitante que tem vindo a ensombrar todas as investigações", afirmou Edson Macuácua, presidente da comissão, em declarações aos jornalistas, referindo-se às denúncias de camponeses de uma vala comum com mais de uma centena de corpos.

Falando no final de uma audição parlamentar ao delegado da Lusa em Maputo, na sequência de notícias da agência em torno de denúncias dos camponeses e da descoberta confirmada de corpos abandonados nas proximidades da alegada vala comum, Macuácua disse que a comissão que dirige está ciente das dificuldades que encontrará no terreno e que fará o melhor para apurar a veracidade dos factos.

Uma equipa da Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade vai deslocar-se na próxima semana ao centro do país para realizar um inquérito em torno da denúncia de existência de uma vala comum na região.

Na segunda-feira, a Procuradoria-Geral da República de Moçambique disse que ainda não encontrou a vala comum denunciada em abril por camponeses no centro do país, assegurando que vai continuar a averiguar o caso.

Em relação à descoberta de corpos abandonados entre os distritos de Macossa e Gorongosa, o porta-voz da Procuradoria-Geral da República, Taíbo Mucobora, afirmou que uma equipa enviada ao local identificou a existência de 11 corpos e instaurou um processo visando o apuramento das circunstâncias das mortes.

"A procuradoria foi ao local para ver o que estava a acontecer, acompanhada de outras entidades que são chamadas ao caso e com destaque para um técnico de medicina, que fez a vez de um médico legal. Já se instaurou um processo que está a correr seus termos, e os corpos encontrados foram em número de 11", disse Taíbo Mucobora

A 30 de abril, jornalistas de vários órgãos de comunicação social, incluindo a Lusa, testemunharam e fotografaram 15 corpos espalhados no mato em dois locais entre Macossa e Gorongosa, no centro do país.

Uma semana mais tarde, o canal televisivo moçambicano STV mostrou 13 corpos no mesmo local.

As zonas apontadas quer pela Lusa quer posteriormente pela STV ficam muito próximas, no limite das fronteiras entre os distritos de Gorongosa e Macossa e também entre as províncias de Sofala e Manica, e os corpos devem ser os mesmos.

Os corpos foram abandonados nas proximidades do local onde camponeses alegam ter observado uma vala comum com mais de cem cadáveres, até ao momento desmentida pelas autoridades, e sem confirmação dos jornalistas, numa zona de forte presença militar, no quadro do conflito que se vive no centro do país.

Apesar de vários desmentidos, a descoberta de corpos abandonados e as denúncias dos camponeses levaram a Comissão Nacional de Direitos Humanos de Moçambique, instituição estatal, a pedir o "acesso incondicional" de entidades nacionais ou internacionais aos locais.

O Escritório do Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos afirmou estar em contacto com as autoridades moçambicanas para aceder à zona dos corpos abandonados.

PMA (HB/AYAC/EYAC) // EL – Lusa

Assassinatos e sequestros em Moçambique atentam contra os direitos humanos - relatório



A onda de assassinatos e sequestros que assola Moçambique constitui um atentado aos direitos humanos em Moçambique, considera o relatório sobre Moçambique no quadro da situação nos Estados membros da União Africana (UA).

Intitulado "Relatório do Estado da União Africana: Relatório de Moçambique" e realizada pela organização não-governamental Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade Civil (CESC), a avaliação, que cobre o período entre 2013 e 2015, refere que os direitos humanos no país têm sido negativamente afetados por assassinatos e sequestros.

"Além disso, registou-se, por exemplo, a persistência de casos de uso excessivo da força pela polícia e detenções para além dos prazos legalmente definidos. Este contexto contribuiu para a deterioração da segurança das pessoas", realça o relatório.

Lusa

Quase um quarto da população prisional em Timor em prisão preventiva - Ministério da Justiça



Díli, 27 mai (Lusa) - Quase um quarto da atual população prisional timorense está em prisão preventiva e mais de metade dos estrangeiros detidos estão nesta situação, segundo dados do Ministério da Justiça.

Dados do Departamento de Segurança e Execução Penal divulgados na página do Ministério da Justiça indicam que no final de abril estavam detidas nas prisões de Timor-Leste, Becora e Gleno, 656 pessoas, incluindo 27 estrangeiros.

Entre os detidos contam-se 484 a cumprir sentenças, 159 em prisão preventiva e 13 como "medida de segurança", cujos contornos não são explicados.

Os dados indicam que entre os presos efetivos há 422 homens, 21 mulheres e 26 jovens (até aos 21), a que se somam sete homens e oito mulheres estrangeiras.

Os detidos em prisão preventiva são quatro mulheres, 134 homens e nove jovens, mais 12 homens estrangeiros.

ASP // FV


Autoridades de Macau detetam casos de burla para obtenção de mais de 100 mil euros em subsídios



Macau, China, 27 mai (Lusa) -- O Comissariado contra a Corrupção (CCAC) de Macau detetou dois casos suspeitos de falsificação de documentos para obtenção do subsídio complementar aos rendimentos, envolvendo 900 mil patacas (cerca de 100.500 euros).

De acordo com um comunicado hoje publicado, num dos casos, o proprietário de uma empresa de administração de condomínios e limpeza apresentou à Direção dos Serviços de Finanças (DSF) um requerimento para este subsídio "a favor dos seus trabalhadores", prestando "informações falsas" no que toca aos seus rendimentos, bem como ao número de horas que trabalhavam. A burla envolveu "um montante total de mais de 700 mil patacas" (78.200 euros), indica o CCAC.

No segundo caso, entre 2012 e 2015, o presidente do conselho de administração de um edifício apresentou requerimentos deste subsídio a favor de administradores de condomínio, declarando "montantes de rendimento do trabalho inferiores aos que verdadeiramente recebiam". Além disso, uma parte dos salários era "paga sob a descrição 'subsídio e prémio', num dia diferente do de pagamento do salário, com o objetivo de ocultar a totalidade dos rendimentos auferidos por estes trabalhadores". Este método resultou na atribuição de mais de 200 mil patacas (22.345 euros).

Lançado como medida provisória em 2008, o subsídio destina-se aos residentes permanentes -- que nasceram ou vivem há mais de sete anos em Macau -- que auferem rendimentos mensais inferiores a 5.000 patacas (558 euros), dado que o valor da subvenção serve para colmatar a diferença.

Ao abrigo do programa, são elegíveis os residentes permanentes com idade igual ou superior a 40 anos que tenham trabalhado um mínimo de 152 horas por mês. Exceção feita aos que exerçam atividade na indústria têxtil, do vestuário e do couro, onde são exigidas menos horas (128 por mês).

As pessoas, que segundo o CCAC terão cometido os crimes de falsificação de documento e burla, foram encaminhados para o Ministério Público.

ISG (DM) // ARA


Brasil. ROMERO JUCÁ, SÍNTESE DE UM SISTEMA FALIDO



Como ele, cria da ditadura, pôde ser líder de FHC, Lula e Dilma. Seus interesses: mineração e aristocracia financeira. O que seu protagonismo revela sobre o esvaziamento da democracia

Antonio Martins – Outras Palavras

“Tem que ter o impeachment, não tem saída (…) Tem que resolver esta porra. Tem que mudar o governo para estancar esta sangria”, diz o então senador Romero Jucá (PMDB-RR), ao telefone. Seu interlocutor, Sérgio Machado, ex-presidente da Petrobrás Transportes (entre 2005 e 2015, por indicação do PMDB), e alvo da Lava Jato, concorda: “É, um acordo. Botar o Michel, num grande acordo nacional”. Ao que Jucá completa: “Com o Supremo, com tudo”.

Se alguém ainda duvidava que o impeachment da presidente Dilma está sendo tramado para preservar a corrupção na vida institucional brasileira, o diálogo revelado esta manhã será um esclarecimento definitivo. Jucá, que poucas horas mais tarde prometeu licenciar-se do ministério do Planejamento de Michel Temer, não terá – tudo indica – sobrevida longa. Como atuava, assumidamente, como uma espécie de porta-voz informal do “presidente” (leia entrevista concedida a El País), sua queda será, também, um duro golpe contra o governo interino.

Mas o episódio permite examinar algo ainda mais crucial. Jucá teve presença destacada em quase todos os governos da Nova República – de José Sarney a Dilma Rousseff. Seu ziguezague partidário constante revela muito mais que uma possível tendência oportunista. No Congresso, ele nunca frequentou o “baixo clero”; sempre foi personagem central. Seu protagonismo duradouro, suas vitórias seguidas e os interesses em favor dos quais atuou demonstram como o sistema político brasileiro bloqueia a democracia. Seja qual for o partido no poder, ele funciona, essencialmente, para ampliar a dominação da aristocracia financeira, expandir a predação da natureza e manter um oligopólio de mídia que esconde do país seus problemas essenciais.

Pernambucano de origem e economista de formação, Jucá ligou-se à política durante a ditadura. Ocupou desde 1979 – então, aos 25 anos – postos de segundo escalão nas gestões dos governadores Moura Cavalcanti e Marco Maciel (Arena-PDS). A queda do regime, em 1984, não frustrou seus planos – ao contrário. Após a transição sem ruptura que marcou o início da Nova República, Marco Maciel foi homem forte do governo José Sarney. Jucá integrava a equipe de jovens tecnocratas formada pelo ex-govenador. Rapidamente chegou às presidências da Fundação Projeto Rondon (1985) e da Funai (1986). Neste último posto, pratica atos que lhe renderão, mais tarde, as primeiras acusações (que sempre contestou) por corrupção, formação de quadrilha e peculato – a apropriação ou desvio de valores ou bens móveis de propriedade pública.

Dois anos depois, dá o passo que o levará à distante Roraima. É nomeado por Sarney, com aprovação do Senado, para o governo do então território federal. O mandato durará apenas dois anos. Em 1990, Jucá não consegue eleger-se governador do Estado, recém-criado. Mas é em Roraima que descobre um dos eixos de sua atuação política: a defesa da expansão do capitalismo – em especial, mineradoras e agronegócio – em terras intocadas ou habitadas por índios.

A estreia de Jucá neste papel ocorre já em 1989. A partir de 1987, o território ianomâmi fora invadido por 40 mil garimpeiros, o que gerou conflitos, mortes e, após a difusão das notícias em todo o país, uma primeira grande crise. O governador não-eleito bloqueia a retirada dos garimpeiros das terras indígenas, alegando que buscava proteger suas famílias. Cinco anos depois, em 1994, elege-se senador pelo PPR (um precursor do atual PP, dirigido então por Paulo Maluf). Irá se reeleger em 2002 (pelo PSDB) e em 2010 (pelo PMDB).

Ao longo de toda a sua atuação parlamentar, Jucá advogará – na tribuna do Senado, em artigos e entrevistas – contra a demarcação das terras originais indígenas, argumentando que suas dimensões estão “superdimensionadas”. É o autor do Projeto de Lei (PL)1610/1996, aprovado pelo Senado há uma década e ainda não votado na Câmara, devido a seu caráter polêmico e à oposição de povos indígenas. O projeto autoriza mineração em terras demarcadas dos povos originais, mesmo quando estes se oponham a tal exploração. É, por isso, considerado, por muitos, afronta ao Artigo 231 da Constituição, segundo o qual garante-se aos índios o respeito à “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, além dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Embora o PL1610 tramite agora na Câmara, Jucá não se cansa de defendê-lo, da tribuna do Senado. Sabe converter uma causa dos grupos econômicos ligados exploração do subsolo num interesse também pessoal. Em agosto de 2012, a revista Época noticiou que Marina Jucá, filha do senador, é proprietária da Boa Vista Mineração, uma empresa interessada em extrair ouro em lavras na fronteira entre Brasil e Venezuela – em parte, situadas em terras habitadas há séculos pelos índios Macuxi e Wapichana.

Mas o senador não seria uma figura proeminente no Congresso se se limitasse a defender interesses familiares, ou os favores oferecidos às empresas ávidas em minerar os grotões do país. Seus negócios são maiores. Desde seu primeiro mandato, Romero Jucá tem proposto, relatado ou defendido projetos que preservam os interesses da aristocracia financeira junto ao Estado. Servindo a distintos governos, ele especializou-se em batalhar para que a parcela de recursos públicos destinada ao pagamento de juros fosse mantida ou ampliada, sobrepondo-se a investimentos sociais.

Começa com FHC. Em abril de 1995, Jucá deixa o PPR e filia-se ao PFL (atual DEM), que compõe com o PSDB a base de apoio ao governo. Em 1996, é um dos grandes defensores do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), que retira 20% das verbas destinadas pela Constituição a Saúde e Educação. Sua atuação aproxima-o do presidente; ele migra para o PSDB e exerce pela primeira vez, entre 1999 e 2003, o posto de líder do governo no Senado.

Mas sente a mudança de ares e bandeia-se. Reeleito em 2002 pelo PSDB, passa ao PMDB no ano seguinte para integrar-se à base de apoio a Lula. Torna-se breve ministro da Previdência (2005) e, de novo, líder do governo no Senado – de 2006 até o 2012. Nesse ano, Dilma troca-o por outro peemedebista, Eduardo Braga, que também irá traí-la mais tarde, na votação do impeachment.

Mas, mesmo após deixar a liderança, Jucá segue com o governo – ou, melhor, com a aristocracia financeira. Em 2015, afinado com a política de “ajuste fiscal” a que a presidente adere, atua como relator doProposta de Emenda Constitucional (PEC) 143, ainda em tramitação. O objetivo é o mesmo da FEF para a qual trabalhara dez anos antes, sob FHC. Mas agora, Dilma e Jucá defendem que, além da União, também os Estados e Municípios possam desviar para outros fins recursos destinados a investimentos sociais. O ministério da Saúde alerta: a proposta retirará, a cada ano, R$ 35 bilhões do SUS.

Há alguns meses, Jucá tornou-se partidário do golpe contra Dilma. Diz ter concluído que a presidente perdeu condições de governabilidade. Sua proximidade de Temer e seu protagonismo no Senado tornaram-no figura central no “governo” interino. Em 12 de maio, assumiu o poderoso ministério do Planejamento. Foi chamado, mais uma vez, a cumprir um conhecido papel. Conforme contou a O Globo há dias,preparava-se para propor nesta segunda-feira, no Congresso, medida que autoriza a União a desviar para outros fins – leia-se: pagamento de juros – uma parcela ainda maior (agora, 25%) dos recursos destinados a Educação e Saúde.

Como tantos outros, entre seus pares, Jucá percebeu que o esvaziamento da democracia exige o controle da mídia. Em 2014, a Procuradoria Geral da República processou-o por falsidade ideológica. Diz ter apurado que o senador serviu-se de um “laranja” – o empresário Geraldo Magela – para adquirir, quatro anos antes, a TV Caburaí, afiliada à Rede Bandeirantes em Roraima. O artigo 54 da Constituição proíbe deputados e senadores de possuírem concessionárias de serviços públicos – caso das emissoras de rádio e TV. A medida é comumente contornada por meio de artifícios como o utilizado por Jucá em Roraima.

O senador é citado em outros casos de corrupção. Em 19/5, o ministro Marco Aurélio Mello autorizou a quebra dos seus sigilos bancário e fiscal, entre 1996 e 2002. Acolheu denúncia segundo a qual houve, no período, superfaturamento de obras financiadas por recursos federais destinados, por meio de emendas propostas por Jucá, ao município deCantá (RR). Parte do valor pago a mais pelas empreiteiras teria sido destinada ao cofres do senador.

Jucá também é citado nas delações premiadas de dois dos investigados pela Operação Lava Jato. Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás, relacionou-o entre 28 políticos que receberiam propinas a partir de desvio de recursos da estatal. Também o senador Delcídio Amaral teria feito denúncias a seu respeito. Até o momento, foram convenientemente ocultadas pela Procuradoria Geral da República e pela mídia – certamente, para que a opinião pública associe apenas ao PT a corrupção que domina a vida institucional brasileira.

É provável que o vazamento de seu diálogo com Sérgio Machado torne mais difícil a vida dos golpistas. Já será um enorme favor. Mas quem examina os interesses que Jucá defendeu ao longo de mais de duas décadas no Senado; e a facilidade com que estes interesses tornaram-se centrais para todos os governos do período percebe que o buraco é bem mais embaixo. Ou a sociedade encara a urgência desesperada da Reforma Política, ou “democracia” será, cada vez mais, sinônimo de mesmice e hipocrisia.

Fernando Henrique Cardoso, embaixador do golpe no Brasil



Sem se preocupar com a existência de crime de responsabilidade, o ex-presidente move desde 2014 então campanha aberta pela remoção da presidente eleita.

João Feres Júnior – Carta Maior

A Latin American Studies Association (LASA) convidou para a mesa principal de seu próximo encontro, que ocorrerá de 26 a 31 maio, em Nova York, Fernando Henrique Cardoso e Ricardo Lagos, ex-presidente do Chile, para falarem sobre os caminhos da democracia na América Latina. O evento foi organizado por Maurício Font, amigo pessoal de FHC e organizador do livro “Charting a New Course”, uma coleção de textos mais ou menos acadêmicos antigos e muitos discursos políticos do senador e presidente, proferidos durante seus mandatos. O apresentador da sessão é nada menos que o próprio presidente da LASA, Gilbert Joseph. Em suma, o evento foi desenhado para ser a joia do congresso da associação.

Logo que a programação do congresso foi anunciada, começou a reação de acadêmicos filiados à LASA, brasileiros, norte-americanos e de outros países, que viam na participação de FHC em sessão tão importante do congresso para falar de democracia uma ofensa e um grave erro, pois ele e seu partido, o PSDB, lideram o movimento de ataque às instituições democráticas brasileiras com o objetivo de remover Dilma Rousseff da presidência conquistada nas urnas em 2014. Organizou-se um abaixo-assinado para pedir o cancelamento do convite, que obteve centenas de assinaturas. Os amigos de FHC, quase nenhum filiado à associação, revidaram com um outro abaixo-assinado que acusava o primeiro de promover a censura à liberdade de expressão. Perante tamanha grita, a LASA reagiu com uma solução de compromisso: trocaram o nome da sessão para “Fifty Years of Latin American Public Life: A Dialogue about the Challenges of Politics, Scholarship, and History”, e criaram uma mesa para acomodar gente crítica ao impeachment em outro slot da conferência, bem longe daPresidential Session.

Plus ça change plus c'est la même chose, diria a gente cheirosa de Higienópolis, pois, a despeito do novo nome da sessão, FHC terá garantido para si um microfone aberto para falar o que quiser sem qualquer contraditório, a não ser eventuais perguntas da audiência ao final, que ele pode responder se e como quiser. Será tratado como acadêmico e estadista, ainda que é na verdade seja ex-acadêmico e ex-estadista. Não produz texto verdadeiramente acadêmico há décadas e deixou a presidência há 14 anos.

Latin American public life! É exatamente a “vida pública” de FHC que o coloca em suspeição para desempenhar tal papel no encontro da LASA. Para provar o que estou dizendo, faço aqui uma análise rápida das colunas mensais publicadas pelo ex-presidente no jornal O Estado de S. Paulo e, eventualmente, replicadas em O Globo desde a campanha eleitoral de 2014. A seleção não tem nada de aleatória: compreende todos os textos do ex-sociólogo publicados durante este período nos jornais, listados na página do Instituto FHC. 

Desde a derrota eleitoral, o PSDB e a grande mídia brasileira (principalmente Grupo Globo, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo e Grupo Abril) tentaram por vários canais reverter o resultado eleitoral: rejeição de contas de campanha no TSE, rejeição das contas do governo no TCU, mobilização de grupos de direita e extrema direita, aliança com os setores mais corruptos e reacionários do sistema político brasileiro, etc. O espetáculo da votação do impeachment da Câmara, que assombrou o mundo e cobriu a todos nós brasileiros de vergonha, foi só o ápice de um sem número de ações não menos vexatórias.

FHC foi protagonista neste processo. Presidente de honra do PSDB, ele usou seus artigos de jornal para dar o tom do ataque ao governo Dilma, feito pela via do esgarçamento das instituições democráticas do país: Judiciário, MP e PF manipulados politicamente e Câmara sob a batuta de um facínora, cooperando para que um processo sem base substantiva lograsse o feito de cancelar o resultado do voto popular. Vergonha é o termo aqui, ou decoro, seu sinônimo. Isso faltou a muita gente durante o processo: ao juiz Sergio Moro, cabeça da operação Lava Jato e violador contumaz do Estado de Direito, a ministros do Supremo como Gilmar Mendes e Celso Mello, que atacaram publicamente Lula e o Partido dos Trabalhadores, a Teori Zavascki que sentou em cima do processo contra Cunha até o último minuto, ao Procurador Geral da República, que também atacou publicamente o PT e permitiu que seus comandados cometessem todo tipo de abuso durantes as investigações da Lava Jato, e entre outros, a FHC, ex-Presidente da República, pelo conteúdo do que escreve e fala.

Comecemos pelos meios escolhidos pelo ex-presidente para se expressar. Os jornais O Globo e Estadão são dois dos órgãos de imprensa mais reacionários do Brasil, em toda sua história. Apoiaram com empenho o Golpe Militar de 1964 e depois o regime autoritário que se instaurou. Mais tarde, no período de redemocratização, aderiram de maneira recalcitrante à mudança política. Já no período democrático, eleição após eleição, têm apoiado os candidatos do PSDB à presidência da República, fazendo uma cobertura eleitoral escandalosamente tendenciosa, contra os candidatos da esquerda, mormente do PT. Para quem não conhece os níveis absurdos de viés da cobertura eleitoral feita por O Globo, Estadão e Folha de S. Paulo, visitem o site Manchetômetro (www.manchetometro.com). Em uma palavra, são jornais de direita. Até aí, o PSDB é um partido que nasceu na centro-esquerda e foi migrando para a direita à medida que o PT ocupou a centro esquerda. Hoje é, sem sombra de dúvida, um partido de direita. Assim, é natural que seu presidente de honra publique nessas mídias, marcadamente neoliberais e avessas aos movimentos sociais, pois ideologicamente ele está em seu elemento.

Claro que é triste para quem é da esquerda democrática ver um herói da teoria da dependência, como foi FHC, que ajudou a desmascarar a mente colonialista das teses da teoria da modernização e inspirou um sem número de cientistas sociais progressistas, particularmente nos EUA, se transformar em um publicista reacionário. Mas o ex-presidente foi muito além. Ele assumiu o papel de arauto de um golpe contra a democracia brasileira.

Vejamos. De maio de 2014 até o presente são 22 artigos escritos por ele e publicados nos jornais citados, segundo as informações fornecidas por seu próprio Instituto. Já no primeiro artigo FHC começa diz que a corrupção política chegou a níveis alarmantes no Brasil porque o PT tem “vocação de hegemonia”, expressão que viria a repetir neste mesmo texto e em outros artigos inúmeras vezes. De passagem, alfineta o ex-presidente Lula, sugerindo que ele é responsável por esse “desvio de personalidade” do partido. O raciocínio é que para obter a hegemonia, o PT corrompeu o sistema político. A solução propugnada por nosso publicista, que aparecerá em quase todos os textos, é uma reforma política que redunde na diminuição do número de partidos e em maior fidelidade partidária. A solução faz sentido dentro do argumento, mas FHC termina o artigo em tom de ameaça: se o sistema político não for reformado por via democrática, o será pela “vontade férrea de um Salvador da Pátria”.

No artigo do mês seguinte, o ex-sociólogo volta à carga contra o PT, agora utilizando um bordão que reaparecerá em quase todos seus artigos subsequentes: lulopetismo. Trata-se não de um termo analítico, mas depreciativo, um tipo de xingamento, tão comum nas arengas públicas mas que cientistas sociais de verdade e estadistas devem evitar. Foi cunhado provavelmente por Demétrio Magnoli, publicista de direita que frequenta as páginas dos mesmos jornais. É também intensamente empregado por Merval Pereira, jornalista que é feroz detrator de Lula e do PT e porta-voz informal das organizações Globo, e pela editoria do jornal O Estado de São Paulo. Significa basicamente uma organização partidária encastelada no poder e manipulada por uma figura carismática, no caso Lula, que a utiliza para fins sempre viciosos e deletérios. Perfaz, ao mesmo tempo, ataque duplo: ao partido e à figura de Lula.

Até o final da eleição os artigos se resumem a ataques ferozes a Lula e ao PT. FHC trata o petista como um gênio do mal, que é “mestre” em agir como se “a melhor defesa fosse o ataque”. Vai além, e comete a extrema deselegância de escrever que Lula pronuncia “zelite”, ao invés de “as elites”, caricaturando o falar do político nordestino de origem popular. E além de outras tiradas preconceituosas e racistas que se permite publicar, como dizer que o PT no governo promove o “capitalismo da companheirada”, conclama seus leitores a “tirar o Pai%u001s do labirinto lulopetista”.

Em outubro, às vésperas do segundo turno publica outro artigo, talvez já pressentindo a derrota, no qual retoma a retórica a ameça, dizendo que que a reeleição de Dilma representaria risco à economia e ao regime político.

Da derrota eleitoral em diante, as colunas de FHC tornam-se uma vitriólica campanha para deslegitimar o governo Dilma, o PT e Lula, e clamar para que as oposições, o Judiciário e o MP não sosseguem enquanto não a destituírem da presidência. Seus artigos adquirem aspecto ainda mais formulaico e inflamado; tornam-se verdadeiros panfletos de agitação golpista.

A fórmula é repetida à exaustão, com algumas variações de ênfase: começa com a leitura economicista da situação nacional, culpa Lula, o PT e Dilma, tratando-os de maneira extremamente violenta, sugere como remédio a reforma política, e às vezes outras reformas, como previdência, leis trabalhistas e impostos, e fecha conclamando as oposições, o Judiciário e o Ministério Público a apearem Dilma do cargo.

O ressentimento contra Lula que transpira nestas colunas é assustador. O ex-professor dedica textos inteiros para atacar o ex-metalúrgico, como o de agosto de 2015 e o de fevereiro de 2016. Chama-o de “língua solta”, entre outros impropérios e utiliza o termo ofensivo lulopetismo abundantemente.

Como bom publicista conservador, as reformas propugnadas são ou neoliberais (flexibilização das leis trabalhistas, diminuição do gasto público) ou focadas na diminuição da influência popular por meio do voto (sistema semiparlamentarista e voto distrital misto).

Em meados de 2015, o colunista introduz uma inovação: passa a cobrar de Dilma a renúncia, para que o impeachment seja evitado. As palavras escolhidas são dramáticas: ou Dilma “abre mão voluntariamente do poder pela renúncia” ou só “sobra o remédio do impedimento, uma espécie de morte assistida”. Essa chantagem será repetida em praticamente todos seus textos, até a votação do impeachment em abril de 2016. Na coluna publicada às vésperas da votação do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, ele, depois de malhar o PT e o “lulopetismo” por vários parágrafos, declara que uma vez que Dilma não aceitou a renúncia, só lhe sobrará o impeachment.   

FHC é tratado por muita gente, inclusive por instituições como a LASA, como se fosse um grande acadêmico, coisa que deixou de ser há muito tempo. Logo a LASA, que se consolidou ao final da década de 1960 sob a direção de pesquisadores progressistas. Muitos deles foram críticos acerbos do intervencionismo norte-americano na América Latina durante a Guerra Fria, que patrocinou tantos golpes militares, inclusive o nosso. Essa geração de latino-americanistas progressistas foi influenciada pela teoria da dependência, que lhes dava uma narrativa contra a lógica intervencionista. E Fernando Henrique Cardoso foi o autor que mais teve sucesso no “consumo da teoria da independência nos EUA”, título de um artigo de sua própria lavra. Mas assim como o professor da década de 60 não era o presidente entusiasta do neoliberalismo privatizante dos anos 90, que uma vez declarou ser o Estado incapaz de diminuir a desigualdade social – coisa que Lula provou ser uma falácia --, o publicista que hoje prega o golpe contra Dilma Rousseff não é o presidente de ontem. O PSDB caminhou muito para a direita e FHC o liderou por esse caminho. Nessa marcha para a direita acabou por cruzar os limites do decoro que se espera de um ex-presidente e do que é aceitável dentro do jogo democrático.

Não há um pingo de sociologia no que escreve FHC, quanto mais rigor acadêmico, mesmo para o nível intelectual médio dos leitores dos jornais nos quais publica seus textos. Há sim uma sanha de atingir seus inimigos políticos a cada parágrafo com todo tipo de imprecações. Há sim uma tentativa de propagandear mais reformas neoliberais e uma reforma política que mistura boas medidas, como o fim da coligação para eleições proporcionais, com medidas que vão em detrimento do poder do voto popular, como a volta do financiamento privado de campanha e a adoção do parlamentarismo no país. Há sim um ódio profundo de Lula: dos 22 artigos, somente três não destilam tal sentimento. Se não bastasse essa campanha de difamação que move contra Lula, ao saber da nomeação deste para o Ministério da Casa Civil de Dilma, FHC reagiu ferozmente chamando-o de “analfabeto” e conclamando a sociedade a reagir energicamente contra sua nomeação. E por fim, há sim uma devoção de cristão novo à causa da derrubada da Presidente Dilma Rousseff. FHC sequer se dedica a discutir em qualquer dos artigos se houve ou não crime de responsabilidade de Dilma.

A partir da derrota eleitoral de seu candidato, o ex-presidente começou uma campanha renhida. Dos dezessete artigos publicados desde então, somente quatro não tratam do assunto. Em setembro de 2015, ele inovou o argumento, adicionando uma retórica que mistura ameaça e chantagem: ou renúncia ou “morte assistida”, isto é, impeachment.

Aliado a empresas de mídia de tradição antidemocrática e elitista, que defende repetidamente em seus textos, Fernando Henrique Cardoso tem exercido desde a eleição passada o papel vexatório de arauto de um golpe político que fragilizou as instituições da democracia brasileira a ponto de tornar incerto o futuro do regime inaugurado pela Nova República com a Constituição de 1988. Agora, de arauto quer se converter em embaixador do golpe e usar o encontro da Latin America Studies Association para tal. Pela sua tradição de apoio incondicional à democracia e em respeito aos milhares de associados brasileiros, norte-americanos e estrangeiros que estão profundamente preocupados com o golpe nas instituições democráticas ora em curso no Brasil, a LASA não pode tomar o partido de FHC, permitindo que ele faça do Congresso mais um palanque na sua sombria campanha política.

João Feres Júnior
Instituto de Estudos Sociais e Políticos - IESP
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

Créditos da foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

“Angela Merkel é eleita pelos alemães e não por 500 milhões de europeus” - Anne-Marie Le Gloannec



Teresa de Sousa, entrevista em Público

A Alemanha decide e, muitas vezes, os outros sofrem as consequências. Nem a França nem a Comissão conseguem equilibrar o seu poder. Apenas Draghi. A Europa revelou-se mortal e ninguém tem a certeza se é ainda possível salvá-la, diz a investigadora francesa Anne-Marie Le Gloannec.

Anne-Marie Le Gloannec, uma das mas consideradas especialistas francesas da Alemanha, é directora de Investigação do CERI em Sciences Po e investigadora convidada do Instituto Nobel de Oslo. Ensinou na Universidade Libre de Berlim, na Universidade de Colónia e de Estugarda. Escreveu em 1989 uma obra que marcou o debate sobre a unificação alemã: “La Nation Orpheline: les Alemagnes en Europe”. Hoje, reconhece que continua a haver no centro da integração europeia uma “questão alemã”. Critica a forma como Merkel lidera a Europa. Olha para a França com desilusão. Perante a mortalidade da União Europeia, que a crise fez descobrir, pensa que alguma coisa ficará. Está pessimista "mas não totalmente pessimista".

A Europa ainda pode ser salva, agora que descobrimos que ela é mortal? 

Questão muito difícil. É verdade que compreendemos que a União Europeia é mortal, mesmo que, infelizmente, não tenha a certeza de que toda a gente tenha compreendido. Há os que desejam que ela morra. Os que têm medo de que ela seja mortal, que são os pró-europeus, incluindo os governos, a classe política e intelectual e as elites em geral. E depois há uma enorme proporção de pessoas que nem sequer sabem bem o que é União Europeia e que não se interessam por saber se ela vai ou não morrer. Não faz parte da sua paisagem política. Podemos salvar a Europa, sabendo que ela é mortal? Há ainda um modo de salvá-la? Bom, eu sou pessimista, mas não totalmente pessimista. Por um lado, ela vai mal em toda a parte. Mas podemos dizer que não é mais disfuncional do que a América, com Trump, que a Rússia, que é governada por uma ditadura, que o Brasil, que a China…

Mas esses países são nações, nós somos uma União de nações. 

Mas há coisas que ainda se mantêm. Há coisas muito importantes que integram o nosso quotidiano - os direitos, a liberdade, a protecção dos consumidores, o mercado comum, que as empresas europeias querem preservar. Em tudo isto, há leis, há regras comuns e desfazê-las pareceria algo de inacreditável. Até podemos pensar num euro reduzido a meia dúzia de países, mas imagine um mercado comum que se reduz. O que quero dizer é que haverá sempre qualquer coisa que se vai manter.

A diferença é que, até esta crise, nunca tínhamos tido esta sensação de mortalidade.

Exacto, mas o que eu penso é que ela nunca desaparecerá totalmente. Dito isto, há uma multiplicidade de crises, que se reforçam mutuamente e que multiplicam as fracturas. Vivemos crises múltiplas e podemos vir a viver uma crise que ainda nem sequer imaginamos, uma espécie de “Cisne Negro” que nos pode levar a uma crise sistémica de grande dimensão. A eleição de Donald Trump, por exemplo, iria criar uma crise maior, que nos atingiria a todos.

Salvar, mas salvar o quê? O que nós vemos é que há já um bom par de anos o Conselho Europeu passou a ter todos os poderes e isso cria problemas. Primeiro, porque ele está completamente submergido pelas crises e, em segundo lugar, porque, quando se trata de questões como as quotas para os refugiados, pura e simplesmente não funciona.

Cá está uma crise que, lamentavelmente, divide toda a agente.

Já foram tomadas muitas medidas, algumas vão avançar, outras não. Outras ainda, exigem mais tempo, como é o caso da Turquia. Ainda não sabemos se vai haver dispensa de vistos para os turcos porque o Conselho e o Parlamento europeus ainda têm de se pronunciar. Mas, se acabarmos com os vistos, teremos menos refugiados mas mais turcos. Qual será o efeito disto sobre o referendo britânico? Não sei. É extremamente difícil de antecipar. Esta situação da Europa faz-me lembrar um conto que li quando era pequena, passado na Holanda, em que um rapazinho descobre um buraco na mangueira e põe lá o dedo, mas rapidamente descobre que há imensos buracos e que não tem dedos que cheguem. A dúvida que resta é saber se vamos enfrentar um sobressalto de tal dimensão, em que a mortalidade se coloca, levando toda a gente a perceber que é preciso fazer alguma coisa. A alternativa é mergulhar no pânico geral.

Falou de 28 países, mas, nos últimos anos, é apenas um que decide. Continuamos com a mesma questão alemã que herdamos da unificação? 

Absolutamente. E o problema é que Angela Merkel é eleita pelos alemães, e não por 500 milhões de europeus. Ela é responsável perante o eleitorado alemão. Mudou algumas vezes de opinião do dia para a noite, fez várias reviravoltas políticas. Por exemplo, estava disposta a deixar cair a Grécia [em 2010], quando compreendeu que a banca alemã ia perder muito dinheiro. O problema é que ela é muito poderosa e tem um verdadeiro talento, no Conselho Europeu, para convencer uns e outros. Mas não tem sempre uma linha de orientação clara e leva tempo a decidir. E isso, obviamente, causa problemas.

Para os outros.

Sim. Todas as decisões que ela toma vão ter um impacto no resto da União. Por exemplo, na questão dos refugiados, o que se lhe critica, e acho que com razão, é o seu famoso discurso em que propõe uma política de portas abertas. Aliás, essa decisão é mais complicada do que parece. Foi o Departamento Federal para os Refugiados e Migrantes que, desde o início do ano passado, avisou que não tinha meios suficientes para tanta gente e que, por isso, ia aligeirar o procedimento de pedido de asilo. A partir de Agosto, esse afluxo aumentou ainda mais e o mesmo departamento federal disse que deixaria de fazer entrevistas. A mensagem espalhou-se por todo o Médio Oriente e vieram ainda mais. Merkel foi confrontada com esta realidade e teve a inteligência de dizer que a Alemanha conseguiria aceitar o desafio. Simplesmente, quando disse isso, esqueceu-se de que havia vias de trânsito na passagem entre a Grécia e a Alemanha. Inicialmente, a Hungria, a Croácia e a Eslovénia disseram que os refugiados poderiam passar. Mas eles atravessavam as estradas, os campos, as cidades e que é preciso dar-lhes apoios de toda a ordem, o que criou rapidamente uma situação ingerível. Ela não pensou nisso. Foi como no abandono do nuclear [depois de Fukushima], quando decidiu de um dia para o outro, sem pensar nas consequências que a sua decisão teria para os seus parceiros.

Agora decidiu construir um segundo gasoduto, o Nord Stream II, entre a Rússia e a Alemanha, sem consultar ninguém e fazendo o mesmo que Schroeder. 

Faz a mesma coisa, sem sequer falar no assunto. É inadmissível porque já conhecemos as consequências da sua decisão sobre a Polónia e a Ucrânia e boa parte da União Europeia. Há neste momento um excesso de reservas de gás na Europa. A pressa é apenas para satisfazer algumas empresas alemãs. É inaceitável.

E não leva em conta as decisões europeias, por exemplo, em matéria de segurança energética. 

E ela sabe que o negócio do gás é controlado directamente pelo Kremlin e não obedece a nenhuma regra empresarial. Isso é inexplicável da parte de uma chanceler alemã com o seu passado e com os seus princípios.

Como é que se explica esse unilateralismo? Pensa que a Alemanha já estabilizou o seu papel na Europa? 

Não. A crise dos refugiados desestabilizou a chanceler no Conselho Europeu. Antes, ela tinha esse talento de convencer uns e outros. Tinha uma espécie de “toque de mágica”. 
Creio que o perdeu com o caso da Turquia.

Porquê?

Porque é totalmente contraditório com os seus princípios morais e com o que tinha dito antes sobre as portas abertas. Foi um choque ver arame farpado na fronteira da Hungria, quando a mesma Hungria, em 1989, cortou o arame farpado para deixar passar os alemães de Leste para Oeste. Depois, a demografia. Merkel diz há anos que a Alemanha é um país de imigração - é a primeira chanceler conservadora a dizê-lo. Construiu um discurso corajoso e inteligente. Mas concluir um acordo com um Presidente turco cada vez mais autoritário é outra coisa. Erdogan não perde uma oportunidade para gozar com a União Europeia, os direitos das pessoas são ignorados nas universidades, nos jornais. Confia-se a um Governo assim a protecção dos refugiados? É isto que é escandaloso.

Percebe-se que Berlim tenha decidido aproveitar a crise para redesenhar a estrutura económica e monetária da Europa? O resultado abriu feridas enormes.

Sim, podemos dizer isso. E não apenas feridas. Isso coloca um vasto conjunto de questões. Por exemplo, nos anos 90, a Comissão exigiu à Hungria que liberalizasse a economia, o que levou a que os bancos húngaros fossem todos comprados pelos bancos suíços e austríacos, que passaram a oferecer crédito fácil às pessoas que, agora, têm as suas dívidas em francos suíços ou em euros. Vai ser preciso um dia escrever a História para perceber a repetição destes erros através das políticas de austeridade. O que é que os países do Sul podem fazer? Vendem tudo o que têm? Vendem o porto do Pireu aos chineses?

Em Portugal também. 

Eu gostava de saber se a Comissão fez o cálculo de quanto os chineses compraram desde que começou a crise, graças a esta política de austeridade, que liberaliza e vende. Lamento mas o que vejo é um governo chinês completamente autoritário, que controla muitas dessas empresas. Para mim, este é um problema grave. Esta espécie de cegueira em nome de um dogma.

Disse-me uma vez que o drama da Alemanha era ser demasiado grande e, no entanto, demasiado pequena. É esse o drama da liderança alemã? 

É uma frase de Kissinger. É verdade. Mas faltam contrapoderes no seio da União. O único contrapoder é Mario Drahgi e o BCE.

Mas não da França?

Acabou esse papel da França. É uma relação cada vez mais desequilibrada. Não há contrapoder da França, não há da Comissão. É só Draghi. Mas já ouvi dizer em Berlim que, quando terminar o seu mandato, é preciso substitui-lo por um alemão. Merkel cultiva um estilo relativamente ambíguo em matéria de liderança. Aceitou a liderança no caso da Rússia porque era do seu próprio interesse. Tenta estabelecer uma linha intermédia que evite a provocação. Tem uma participação militar na Síria. É uma evolução progressiva. Mas não pode liderar a diplomacia europeia porque não há diplomacia europeia, há apenas uma política de caso a caso.

Como avalia o risco de um "Brexit"? 

Penso que ninguém quer o "Brexit", nem o Governo alemão nem o francês. O risco é se os jovens não votarem ou se acontece alguma coisa de negativo na Europa antes do dia 23 de Junho. Mas custa-me a acreditar. O problema é que, seja qual for o resultado, o referendo vai inspirar outros países, abrindo as portas a uma Europa cada vez mais a la carte: eu quero isto e eu quero aquilo.

O que podemos esperar da França? É um país enfraquecido? 

A maior fraqueza é o problema estrutural da sua economia. A dívida sobe, o desemprego é estrutural, perde quotas de mercado no exterior. Vivemos na ilusão durante muito tempo. Sarkozy ajudou a manter esta ilusão, fingindo que era ele que influenciava a chanceler. Agora a assimetria é demasiado grande para iludir seja quem for.

Mas qual é o papel que a França quer ter? 

Não sei. Creio que pode liderar em questões como o terrorismo e na crucial partilha de informação entre um núcleo de países, incluindo a Alemanha. Também sobre a ciberguerra.


Mas ainda tem muitos instrumentos de poder ao seu alcance. Capacidade militar, capacidade nuclear. Assinou um tratado de defesa com Londres.

Não vejo isso assim. Durante muito tempo, havia uma legitimidade política e militar que contrabalançava a sua fraqueza económica em relação à Alemanha. Agora temos a impressão que estamos um pouco isolados e que isso deixou de pesar.

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