Manuel
Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
A
oposição entre Estado e mercado marca, em boa medida e com regularidade, o
debate político e mediático. Mas esta é uma falsa oposição, já que não existem
mercados sem a intervenção direta do Estado, efetivada através do aparelho
regulatório ou das infraestruturas que o último garante aos agentes privados
que atuam em cada mercado. Contudo, existem bens e serviços com propriedades
materiais tais e/ou de tal forma essenciais ao funcionamento das nossas
sociedades, que a sua provisão é ainda mais exigente, necessitando de uma
intervenção pública que vai muito para além do enquadramento das relações
mercantis. O caso mais saliente dos últimos anos foi o do setor bancário, alvo
de inúmeros "resgates". Aprendemos que a banca privada não pode
falir, sob risco de arrastar a restante economia consigo, dada a importância da
moeda e do sistema de pagamentos.
A
eletricidade é outro exemplo. Sem ela - e sem outros bens e serviços básicos
como a água, o gás, as telecomunicações, os transportes - os restantes setores
da economia e a sociedade que hoje conhecemos não podem funcionar. Para lá da
sua importância, que torna impossível a "falência" dos seus
provedores, a maioria destes bens e serviços tem caraterísticas materiais e
tecnológicas que impedem qualquer funcionamento de mercado com base em preços
determinados pela oferta e procura momentâneas. No caso da produção elétrica,
não podemos ter barragens hidroelétricas e outros tipos de centrais de produção
que concorram nas mesmas condições (dadas as particularidades físicas em que se
inserem); não podemos ter redes de alta tensão concorrentes; e não podemos ter
diferentes contadores elétricos em nossas casas para diferentes fornecedores.
Ora,
a impossibilidade de mercados concorrenciais nestes setores não os afastou da
expansão neoliberal. "O neoliberalismo é um programa de sociedade"
que embora aparentemente pregue o contrário, entrega ao Estado tarefas
importantes para este organizar a economia e a regular a favor de interesses
privados, para garantir mecanismos de corte nos direitos dos trabalhadores e
fundamentar uma harmonização social no retrocesso, para estruturar uma
redistribuição da riqueza debaixo para cima, favorecendo o topo da pirâmide.
Sob
o mantra da superior eficiência do "privado", fragmentaram-se,
segmentaram-se e privatizaram-se as empresas públicas destes setores
estratégicos do bem comum, e procurou-se "imaginar" como funcionaria
o mercado nos preços, nas quantidades e na organização da produção, criando
novas entidades reguladoras como "garante" dessa ficção. O resultado
está à vista. No caso da EDP, verdadeiro monopólio da provisão de eletricidade
em Portugal, desenharam-se contratos com base em informação que só a EDP
detinha, que garantem elevadíssimas rentabilidades quaisquer que sejam as
condições mais gerais da economia. O resultado traduz-se em lucros excessivos
para os acionistas, elevados custos da eletricidade para empresas e famílias e,
ao que parece, relações onde grassa a corrupção. Pior para Portugal não podia
ser.
Não
surpreende, pois, que em países onde estas experiências foram mais longe, como
o Reino Unido, apareçam agora programas políticos com grande apoio popular como
o de Jeremy Corbyn, que propõe não só a defesa de setores estratégicos, como a
renacionalização dos transportes ferroviários, correios, água e energia. Para
uma economia mais eficiente e limpa de negociatas privadas, estes setores têm
de estar sob propriedade pública. Contudo, a propriedade pública é condição
necessária, mas não suficiente. Só com qualificação de quadros e uma efetiva
participação democrática que envolva o Estado, os trabalhadores, os
consumidores, atores económicos e outros agentes públicos, podemos ter serviços
públicos de qualidade ao serviço da economia e do bem estar das pessoas.
Existem
setores produtivos que são públicos por natureza. É o caso da energia, mas
também das telecomunicações e dos transportes. Pode-se fingir que existe um
mercado neste setores e até tentar criá-lo. Mas isso sai caro e quem paga somos
todos nós.
Amplie-se
o combate tomando um seguro pressuposto que os neoliberais utilizam há muitas
décadas: "nada é inevitável na existência social".
*Investigador
e professor universitário
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