Manuel Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Uma
vaga de incêndios em circunstâncias semelhantes em Portugal e Espanha (Galiza)
desencadeou diferentes reações no espaço público. Em Espanha, as autoridades
autonómicas e estaduais evocaram como causa principal um "terrorismo
incendiário", não especificado. Em Portugal, a opinião instalada nos
grandes meios de Comunicação Social e os partidos da Oposição apontaram o dedo
aos decisores políticos e operacionais agora em funções, ou seja, a pessoas
concretas, mas só àquelas que não podem fugir da responsabilidade. São
automaticamente ilibados todos os que ao longo de décadas geraram os obstáculos
que alimentaram a tragédia. Quer em Espanha, quer em Portugal, estes mecanismos
acusatórios fazem lembrar a criança que culpa a parede, em que acabou de
colidir, pela dor provocada pelo choque. São sintomas de uma insanidade
coletiva, que busca a todo o custo imediatos culpados, quantas vezes
transformada em processos de caça às bruxas.
Existem
incendiários? Existem pessoas incompetentes em cargos de responsabilidade? Em
Portugal, o Governo empurrou problemas com a barriga e não teve atempada
consciência da tragédia? Certamente que sim e a cada um devem ser atribuídas a
responsabilização e a penalização adequadas, no seu devido tempo. O Governo
pagará a fatura dos seus erros e terá de ser muito mais responsável e eficaz
pois o tempo não apaga tudo. Entretanto, não se pode instrumentalizar o drama
das pessoas para uma oportunista tentativa de recuperação da Direita. É
legítimo que a Direita queira recuperar. Esse é, até, um desiderato já antes
afirmado pelo presidente da República. Mas façam-no com dignidade.
O
enfoque na atribuição de responsabilidade política "criminosa" aos
decisores da atual circunstância tem como consequência a degradação das
condições para o debate e, sobretudo, para a ação que urge.
Julgadores,
sejam eles jornalistas ou atores políticos, como os que nos últimos dias não se
eximiram de produzir títulos como "Cem mortos depois, ministra
demite-se", ou formular sentenças como "erros de Costa custam
vidas", pensam estar a coberto do julgamento por nunca terem feito nada
para provocar ou apagar incêndios. Enganam-se. Todos partilhamos algo da culpa,
e aqueles julgadores devem ser julgados pelo ruído insuportável com que estão a
prejudicar o debate, a tornar mais improvável que a ocasião da catástrofe possa
servir para, pelo menos, começar a resolver algumas das causas que estão na sua
origem.
É
tempo de ação imediata. O território a norte do rio Tejo, com as suas
florestas, paisagens, campos e estruturas agrícolas, habitações, empresas e serviços
públicos, sofreu impactos semelhantes aos que resultam de uma guerra. Toda a
organização da vida das pessoas e das estruturas naquele território foi
abalada. A intervenção pública - do Estado - corre contra o tempo. É premente
indemnizar justa e solidariamente as famílias dos mortos e feridos e apoiar as
pessoas nas diversas reconstruções. Tem de haver um plano de investimento que
motive as pessoas a não abandonarem aquelas sub-regiões. Se a necessária
reconstrução não for agilizada e urgente, arriscamo-nos a que estes incêndios
se transformem num novo contributo à desertificação de vastas áreas do
território nacional, arrastando consigo outras desertificações e um
atrofiamento ao desenvolvimento harmonizado do país.
Os
tempos de discussão do Orçamento do Estado são uma oportunidade para assegurar
os recursos necessários à intervenção do Estado, que não se pode limitar ao
ordenamento do território e à proteção civil. Os portugueses e as suas forças
políticas e sociais têm também o direito e o dever de reclamar apoios da União
Europeia. Nós cometemos os nossos próprios erros, mas há políticas europeias,
como a política agrícola e mais recentemente a austeridade imposta, que
contribuíram para a acumulação de causas desta catástrofe. O investimento na
reconstrução é bem mais prioritário que o serviço da dívida.
Só
com um novo impulso de investimento público, que rapidamente recupere os postos
de trabalho perdidos e crie novos em setores estratégicos, podemos ter um
território ocupado e capaz de prevenir futuras catástrofes. Corremos contra o
relógio.
*
Investigador e professor universitário
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