José Goulão* | opinião
Parece encontrado um sucessor de
Donald Trump na Casa Branca, com ou sem o impeachment que tantos
prometem sem que nada aconteça. Claro que falta muito tempo, o ciclo terrorista
do actual presidente norte-americano mal começou, muitas tragédias e trapaças
há que esperar ainda dele; nada impede, porém, que alguém pense, desde já, em
sentar-se no gabinete oval de onde se comanda o mundo, sobretudo quando tem as
ferramentas e os meios necessários e suficientes para atingir esse objectivo.
Sabedoria política, convicções e
virtudes democráticas? Qual quê! Quem é que está a falar nessas coisas? É de
eleições – e norte-americanas – que se trata; os utensílios precisos são
outros.
Mark Zuckerberg, o fundador do
Facebook, apronta essas ferramentas hoje consideradas indispensáveis e
decisivas. Qual o seu passado político? Nenhum ou desconhecido; quais as
convicções ideológicas? Nenhuma ou a única que conta para o efeito, a ideologia
da não-ideologia injectada nos robots humanos ou humanos robots; por qual
partido irá concorrer? A definir, na verdade tanto faz o rótulo democrata como
republicano; em última instância tudo dependerá do estado em que Trump deixar a
organização republicana.
Nenhuma das perguntas enunciadas
incomoda verdadeiramente Zuckerberg. Pelo sim, pelo não, nesta altura
madrugadora do campeonato rodeou-se de ex-conselheiros de Barack Obama, Hillary
Clinton e George W. Bush, no fundo todos diferentes e todos iguais.
O que alimenta verdadeiramente a
ambição presidencial de Mark Zuckerberg, assumida sem alarido, mas com raízes,
é o êxito crescente do colossal polvo propagandístico e manipulador do seu
Facebook, sobretudo desde que, durante os últimos anos, foi equipado com uma
célula política secreta que fabricou numerosos resultados eleitorais com os
quais estamos a lidar – de Obama, «primeiro presidente Facebook», a Trump; do
fascistóide presidente argentino Maurício Macri ao sanguinário ditador filipino
Rodrigo Duterte; do nazismo renascido da Alternativa para a Alemanha (AdF) ao
populista primeiro ministro indiano Narendra Modi.
Sem esquecer casos em que também
a manipulação de consciências e emoções na qual o aparelho do Facebook se tem
especializado desempenhou papel preponderante, como a corrupção das
chamadas «primaveras árabes», a conspiração permanente da extrema-direita
contra o governo da Venezuela, o golpe de Temer no Brasil, a ascensão do
extremismo nacionalista polaco e as súbitas irrupções políticas de fenómenos
como Macron, a coligação fascista que tomou o poder em Viena ou o regresso do
pupilo de Pinochet, Sebastián Piñera, no Chile.
É importante notar, entretanto,
que a este nível deixou de se falar no Facebook tal como o entendemos, uma rede
social onde pessoas e instituições podem relacionar-se de boa-fé, atraídas por
afinidades, actividades e princípios diversificados que abrangem praticamente
todos os aspectos da vida em sociedade.
O Facebook a que o próprio
Zuckerberg recorre para seguir as pisadas de Obama e Trump, e que actua em
espaço próprio, está montado de maneira a proporcionar cooperações
institucionais capazes de fabricar presidentes e primeiros-ministros desfazendo
oposições e rivais políticos; um processo conduzido através de uma célula política
secreta que pode ser contratada por quem tem meios e ambições para moldar a
«moderna democracia» segundo os seus interesses e conveniências, seja em
que parte do mundo for.
No comando dessa célula secreta
está, há três anos, Katie Harbath, antiga responsável pela estratégia digital
do Partido Republicano e que se envolveu directamente, em 2008, na campanha do
nada recomendável ex-presidente da Câmara de Nova Iorque, Rudolph Giuliani.
O método básico da estratégia
estabelecida sob o comando de Harbath, aplicada pela
vertente «política» do Facebook em benefício de quem contrata os seus
serviços, é o da falsa informação, as tão faladas fake news, das quais os
principais queixosos são sempre aqueles que mais proveito extraem delas, o que
não acontece por acaso.
Assim sendo, e de acordo com
artigo publicado em Dezembro passado pela multinacional mediática Bloomberg,
insuspeita nesta matéria, a célula de Harbath recolhe pretensos elementos
informativos voláteis e avulsos sobre determinado objectivo a alvejar e com
eles monta conteúdos falsos direccionados através da rede e segundo diferentes
áreas de interesse, idades, género, actividades, religião ou profissões, de
modo a atingir universos tão amplos quanto possível; daí o processo transita
para os sectores mediáticos convencionais, uma vez alcançado o clamor
suficiente do qual brotam verdades que cilindram qualquer dúvida.
Para tal, a célula de Harbath usa
uma teia de milícias de agentes digitais de propaganda, ou trolls, no
léxico do sector, que se infiltram através dos inocentes e bem intencionados
espaços de convívio comuns nas redes sociais, cumprindo as missões de que foram
encarregados por um monstruoso e oculto aparelho de propaganda política e
manipulação.
Ao fim e ao cabo, tais práticas
vão fundindo insidiosamente a realidade e a ficção, a verdade e a mentira, o
rigor e a calúnia até que os alvos a abater por quem paga os serviços sujos das fake
news sejam de facto dizimados – de preferência em nome da democracia e da
vontade popular.
Já existem dados sobre os efeitos
deste terrorismo que provoca multidões de vítimas não recenseadas. Um estudo
estatístico divulgado há menos de um mês pelo Pew Research Institute, um centro
norte-americano de investigação social, conclui que 88 por cento dos cidadãos
dos Estados Unidos se sentem confusos quando pretendem distinguir entre a
verdade e a mentira nas notícias da actualidade. A tragédia não é
exclusivamente norte-americana, como sabemos por experiências próprias.
Depois da primeira eleição de
Obama, dos triunfos obtidos através da participação directa na campanha de
Donald Trump, o caso considerado de maior êxito alcançado pelo sistema de
propaganda e manipulação implantado no Facebook foi a eleição de um não-favorito,
o populista Narendra Modi, nas eleições indianas de 2014.
Na ocasião, o vínculo
institucional com a célula secreta de Harbath foi estabelecido pela própria
Comissão Eleitoral Indiana, sob o pretexto de conquistar para o voto os
absentistas de fresca ou longa data. «Nenhum cidadão pode ficar por sua conta»,
proclamou a comissão ao anunciar o acordo com Zuckerberg. Este e a sua
directora de exploração, Sheryl Sandberg, deslocaram-se a Nova Deli para selar
o contrato; seguiu-se a própria Katie Harbath, para ministrar acções de
formação a mais de seis mil altos funcionários.
Modi venceu com esmagadora
maioria absoluta; a oposição foi cilindrada, descredibilizada e tornou-se quase
inexistente, uma vez que o contrato com o Facebook também inclui apoio à gestão
governamental, isto é, continua a ser aplicado; os linchamentos de rua para
silenciar vozes discordantes, incitados nas redes, vulgarizaram-se através do
território indiano. A Índia tornou-se um centro de desinformação, um local
perigoso para políticos de oposição e jornalistas independentes. Narendra Modi,
primeiro-ministro, reúne 43 milhões de seguidores no Facebook, o dobro de
Trump, número que deixa a grande distância qualquer outro «concorrente»
nas redes sociais. Não será exagero dizer que o ramo do Facebook dedicado à
conspiração por contrato governa a Índia, o mais populoso país do mundo, e com
mão de ferro.
Na montagem das «eleições»
indianas cooperaram com o Facebook e a comissão eleitoral empresas como a
American Microchip Inc e a japonesa Renesas, que foram acusadas de piratear as
bases de dados oficiais.
Hoje, qualquer uma das 17
agências de espionagem norte-americanas considera que o escrutínio meticuloso
dos posts do Facebook permite prever «turbulências» sociais com alguns dias de
avanço; chegaram a esta conclusão estudando, por exemplo, o período das
chamadas «primaveras árabes», fenómeno tão ambivalente como o do terrorismo de
fachada «islâmica», estabelecendo a correlação entre as movimentações no
Facebook e outras redes sociais e a concentração de multidões nas ruas.
Com menos de uma década de
actividade, o monstruoso sistema de condicionamento e manipulação do Facebook,
assente na exploração da mentira e da difamação, pode considerar-se ainda em
fase experimental.
Estágio intermédio que não impede
Mark Zuckerberg de pensar em altos voos sobre a nomenklatura do
complexo militar, industrial e tecnológico que governa os Estados Unidos, de
maneira a chegar a presidente. É um facto que em 2014 o Facebook decidiu pedir
desculpas quando foi confrontado com as provas de que usou 700 mil
frequentadores da rede, sem seu conhecimento, como cobaias de uma experiência
psicológica de contágio emocional.
Uma operação que, segundo as
conclusões divulgadas, demonstra que as emoções podem propagar-se através das
redes sociais, se bem que os seus efeitos continuem limitados. A par das
desculpas de conveniência, a directora de exploração da rede disse que houve
apenas um problema de «má comunicação» por parte da empresa, uma vez que o
estudo fora encomendado por entidades comerciais interessadas em conhecer as
reacções a determinados produtos.
O estudo foi feito e ficou feito,
com ou sem protestos e desculpas. Sucedem-se as intervenções em eleições ditas
democráticas um pouco por todo o mundo, mercê dos contratos estabelecidos entre
o sector subversivo do Facebook e, sobretudo, dirigentes ou organizações em
sintonia com nacionalismos, populismos, fascismos – articulando-se, assim, com
as necessidades cada vez mais prementes da sobrevivência neoliberal; ou mesmo
disseminando essas tendências. Como escreveu Charles Arthur no The
Guardian, «se o Facebook pode ajustar as nossas emoções e fazer-nos votar, que
mais será capaz de fazer?»
*AbrilAbril | José Goulão, jornalista
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