Pedro Ivo Carvalho* | Jornal de
Notícias | opinião
Provavelmente, já tropeçou,
enquanto percorre o feed do Facebook, na imagem retocada de um familiar ou
amigo subitamente transformado numa estrela de cinema. Já respondeu a um ou
mais questionários inócuos sobre assuntos de lana-caprina. Já se sentiu tentado
a descobrir a sua aparência daqui a 50 anos. Provavelmente, já interagiu com
terceiros sobre tais conteúdos. Mas o que provavelmente desconhece é que essas
"inocentes" aplicações são um poderoso instrumento para dissecar o
seu perfil, usando as informações para os mais variados fins - comerciais e
políticos.
A revelação de que a Cambridge
Analytica, uma empresa de tratamento de dados do Reino Unido, terá usado de
forma ilegal informação de mais de 50 milhões de contas do Facebook para
manipular a opinião pública e ajudar a eleger Donald Trump na presidência dos
Estados Unidos da América (além de poder ter tido um papel determinante no
desfecho do Brexit) constitui, talvez, o maior ataque à credibilidade (à que
ainda resta, pelo menos) da rede social que dá guarida ao melhor e pior do
Mundo. A tal ponto que o movimento #deletefacebook rapidamente se propagou, com
múltiplos apelos aos utilizadores para se desligarem. "Se tu não pagas
pelo produto, tu és o produto".
A verdadeira extensão da
descoberta ainda está por assimilar, mas há, para já, um ganho óbvio para a
democracia: o poder político acordou finalmente para o problema. A tal ponto
que o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, instou o fundador do Facebook,
Mark Zuckerberg, a prestar contas aos eurodeputados. Ora, de que forma pode
atuar esse poder político? Legislando, proibindo, impondo sanções milionárias?
Pisando as fronteiras escorregadias do livre-arbítrio e da liberdade de
expressão e informação? E como é que se "pune" uma rede que censura a
imagem de uma estatueta com mais de 25 mil anos por causa de dois mamilos, mas
é incapaz de travar a disseminação do discurso do ódio que esteve na base do
genocídio de milhares de rohingyas em Myanmar?
À medida que se percebe que os 50
milhões de usuários cujas contas foram violadas podem, na realidade, ser
centenas de milhões um pouco por todo o Mundo, ganham força as suspeitas da
existência de um "mercado negro" de dados do Facebook usado sabe-se
lá por quem. Se pensarmos bem, não há forma mais eficaz de manipulação:
conduzir a vítima a entregar-nos, gratuita e voluntariamente, toda a informação
que define a sua personalidade para depois a podermos reorientar na exata
medida dos nossos propósitos e das suas fraquezas. Fazer um "like" na
imagem de um gato fofinho não define o que somos. Mas pode ajudar a definir
aquilo que os outros querem que sejamos. Porque o produto somos nós. O alvo
somos nós. Agora, ninguém pode dizer que não foi avisado.
*Subdiretor do JN
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