Empresas estabeleceram controle
orwelliano sobre necessidades e desejos das populações. Em resposta, busca-se
agora a experiência social compartilhada
William Mebane, em Other
News | Outras Palavras | Tradução: Marianna Braghini|Imagem: Banksy, Caçadores
de Carrinhos (2004)
Os primeiros bens genéricos foram
aqueles baseados em um único modelo universal. O modelo preto T, da Ford, é o
exemplo clássico. A produção em massa permitiu uma enorme economia de escala e
com redução de custos nunca antes realizada. A função básica do transporte
rodoviário de pessoas foi satisfeita.Mas empresas temiam que, com produtos
genéricos, todas as necessidades seriam logo satisfeitas e pouco restaria para
produzir. Um primeiro passo para superar isso foi a introdução de mais
escolhas, de acordo com a capacidade de compra. Uma grande diferenciação de
produtos foi introduzida por meio das diferenças de preço e qualidade.
Os bens serviam a uma mesma
função básica, mas uma média muito superior de preços foi possível pela
introdução de bens de luxo (de classe alta). Os psicólogos ensinaram a
empresários e marqueteiros como condicionar e manipular as emoções e
necessidades de consumidores, conseguindo que eles comprassem coisas de que não
precisavam. Os produtos poderiam ser propagandeados como se prometessem maior
status social, ou sugestionassem uma ansiedade na mente do consumidor e
apresentassem um produto que a aliviassem.
As empresas, interagindo com as
observações da pirâmide
de Maslow, começaram a suprir necessidades mais secundárias por meio de uma
variedade de qualidades e preço. Isso seria mais socialmente aceitável se todos
tivessem já satisfeito suas necessidades primárias de alimentação, vestimenta,
moradia e educação. Obviamente, não era e nem é o caso. Mas com a desculpa de
que a maré crescente da economia “levantaria todos os barcos”, foi dada uma
atenção limitada ao excesso de bens não primários e serviços que eram
produzidos e consumidos. Além disso, as empresas procuravam impulsionar a
ascendente mobilidade de bens, passando dos básicos aos extraordinários, como
num espelho da mobilidade social crescente. Isso funcionou bem quando de fato
existia mobilidade social, do pós-II Guerra Mundial até os anos 1970.
Com o avanço dos processamentos
informatizados, e mais tarde da Internet, os hábitos, compras, preferências e
psicologia de indivíduos puderam ser identificados, medidos e classificados.
Agora, os produtos podiam mirar um indivíduo único, de acordo com suas
necessidades particulares e com grande precisão. Ao mesmo tempo, a produção,
com a ajuda da automação, pôde introduzir uma ampla variação dentre os próprios
produtos. Como as preferências eram extremamente diversas e uma necessidade
secundária poderia sersatisfeita de infinitas maneiras, o potencial de demanda
explodiu. As empresas não mais temiam um excesso de oferta. Os consumidores
cedem seus dados de consumo e aos indivíduos são constantemente fornecidas
(bombardeadas) propagandas e produtos que mais se adequam a eles. É difícil
resistir à compra, e muitas famílias se envolvem em considerável dívida para
que isso se viabilize. O consumismo triunfou, satisfazendo precisamente desejos
individuais únicos. É claro que há a importante questão de renda e desigualdade
de renda, mas a satisfação de consumo parece tão completa que o problema de
salários estagnados do rendimento médio da família trabalhadora veio à baila apenas
nas últimas décadas.
Esse novo consumismo evoluiu em
favor de uma satisfação instantânea, de curto prazo: exemplos incluem todos os
computadores e videogames, entretenimento de todos os tipos que estão
disponíveis no Youtube. Há um interesse renovado em séries de TV
superdramáticas com uma direção bem profissional, que oferecem episódios curtos
(30 minutos) mas satisfatórios, como a NCIS e House of Cards. A
própria televisão evoluiu para serviços on demand (sob demanda) e
compete com programas e filmes, disponíveis de imediato, ofertados pela
Netflix. O interesse em produtos mais difíceis e exigentes — como livros –
declinou particularmente na geração mais jovem. Livrarias e pequenos cinemas
estão fechando em todos os lugares.
Em vez disso, os armazéns e a
entrega rápida da Amazon estão revolucionando o comércio com uma ampla seleção
de produtos, preços baixos e entregas em um ou dois dias. O consumo instantâneo
é possível. Também a maneira de produção e marketing de produtos da moda
evoluiu com a Zara (Inditex), testando o mercado nas lojas e por meio de uma
produção acelerada, provendo, em algumas semanas,os modelos aceitos.
Finalmente, temos mídias sociais na forma do Facebook, WhatsApp, Instagram e
Twitter, que realizam contato instantâneo, envio de mensagens e serviços.
Obviamente, a internet e os
celulares revolucionaram as comunicações, tornando as conexões com pessoas, as
informações e os produtos/serviços extremamente fáceis. A Nokia, que produziu
inicialmente o celular mais vendido, tinha imaginado ofertar apenas serviços
essenciais; entretanto, a decisão da Apple, de se abrir para aplicativos de
terceiros, desencadeou centenas de milhares de novos serviços online,
disponíveis nos smartphones. Isso somado ao ascenso da Amazon, que propôs uma
rapidez até então desconhecida de entregas (até no mesmo dia) de milhões de
produtos, combinado com a propaganda individualizada, constitui um nível de
consumismo sem precedentes e extremamente individualizado.
Ao mesmo tempo, para conseguir
mais compradores em potencial, essas mídias tiveram que entreter mais, ser
melhor modeladas, chocantes e, em uma única palavra, viciantes. E o futuro
de realidade virtual irá nos mergulhar em mundos artificiais convincentes, não necessariamente
de nossa escolha. Novamente, o potencial é enorme, sem excluir as novas formas
de arte, mas a oportunidade em propaganda é gigantesca, já que esta terá
controle da realidade.
Mesmo adultos, não conseguimos
ficar fora do telefone dia e noite. Talvez não seja surpreendente que os país
que trabalham em empresas de tecnologia do Vale do Silício tenham se tornado
mais restritivos ao uso de serviços móveis por seus filhos, numa indicação do
excesso. A própria Apple começou a introduzir aplicativos para monitorar e
limitar o uso.
Ainda está para ser visto qual
tipo de relações de longo prazo entre pessoas este novo sistema irá favorecer.
E, mais importante, a questão é qual controle podemos ter – enquanto
consumidores e cidadãos – sobre o design dos novos sistemas. Iremos deixá-los,
como sempre, sob controle das empresas?
Essa evolução de consumismo
ocorreu dentro do contexto de globalização, onde economias de escala
extremamente grandes são possíveis para países com grandes mercados internos e
portanto com a possibilidade de produzir para estes – e então exportar para o
resto do mundo a baixos custos. Até produtos complexos como o iPhone, com mais
de 300 componentes, são produzidos por intermédio de terceirização da produção,
nas melhores fábricas do mundo todo. Quanto a produtos menos complexos, como
painéis solares, quase todos podem ser produzidos e exportados do maior mercado
interno, a China. O controle de tecnologia e do acesso aos mega mercados
internos dificulta a competição por atores mais limitados, como a indústria
italiana. Milhões de postos de trabalho italianos foram perdidos por meio da
realocação das fábricas no Oeste Europeu e Ásia. Por consequência da
concentração de centros de produção, a partir dos quais se exporta e controla a
tecnologia, a globalização definiu um novo conjunto de ganhadores e um grande
conjunto de perdedores; criando desemprego em muitos setores e países onde
atores minoritários não conseguem competir.
Os maoires perdedores continuam a
ser as nações emdesenvolvimento, que na verdade não estão se desenvolvendo: a
fome aumentou de 460 milhões de pessoas, em 1974, para 800 milhões atualmente e
a pobreza é a mesma medida em 1984: aproximadamente 1 bilhão de pessoas sem
nenhuma melhora em mais de 35 anos. Quase todos os ganhos na redução da pobreza
relativa estiveram em um lugar, a China. Se uma linha mais alta de pobreza for
utilizada – a de cinco dólares ao dia –, o número de pessoas pobres chega a 4,3
milhões, ou mais de 60% da humanidade. A saída líquida de recursos financeiros
do mundo em desenvolvimento foi negativa em 26,5 trilhões de dólares entre 1980
e 2012, como confirma o relatório de 2016 da Global Financial Integrity
and Center for Applied Research na Escola Norueguesa de Economia. Os
países desenvolvidos são a rede de devedores das nações em desenvolvimento, o
que exacerba bastante a situação de fome e pobreza. Justamente o oposto do que
seria de esperar. O modelo de “desenvolvimento” proposto pelos ricos aos pobres
na verdade ajuda os ricos. A pobreza tem mais a ver com a relação entre os
pobres e os ricos e evoluiu para novas formas desde o passado colonial. Para
superar a fome e pobreza no Sul global, este mecanismo precisa ser radicalmente
mudado. “Por décadas nos contaram uma história: que a pobreza é um fenômeno
natural e será erradicada por meio de ajudas. É um conto confortante, mas
ignora as forças políticas mais amplas em jogo. Os países pobres são pobres porque são
integrados no sistema global em termos desiguais e as “assitências” apenas
ajudam a esconder isso.” Hickel, J. (2017).
Depois de décadas de intensa
produção e consumo individualizados, talvez alguns de nós estejamos buscando
alguma coisa. Há algo esquecido nas trocas e experiências sociais. É a intensa
interação humana, geralmente entre muitas pessoas, que é compartilhada e
altamente valorizada. Pode ser, por exemplo, uma viagem a um local primitivo e
a chance de conversar e trocar ideiascom os que lá vivem. Pode ser um grupo da
aula de culinária para norte-americanos na Toscana. A experiência é construída
em torno das relações que podem ser estabelecidas localmente. Uma experiência
muito importante é o compartilhamento direto de culturas diversas, da música à
dança, à arte, à arquitetura, à antropologia. É claro que esta cultura pode ser
compartilhada indiretamente e vendida como um produto ou vídeo. Existe um continuumentre
a experiência direta e uma experiência indireta menos envolvente. Geralmente, a
experiência direta é sentida como mais única, e enriquecida por inúmeros
detalhes e acontecimentos locais. Há uma diferença entre subir os degraus da
Torre de Pisa e ver a fotografia. Há muita diferença entre experienciar o Palio
de Siena e assistir ao vídeo. O turismo é defato uma área onde a oferta de
experiências pode reforçar seu valor. O que é requerido são mais programas
locais, atividades e trocas pessoais. Outro exemplo de experiência é a educação
colaborativa. Todos somos experts em algo, ou queremos conhecer mais
de algo: esta é a base de criar valores por meio de seminários e compartilhar
variadas formas de cultura entre amigos e conhecidos.
É claro que a experiência pode
envolver muitas contradições e problemas. Geralmente em concertos de música
clássica ou sessões de jazz, há uma alegria compartilhada entre os músicos e
ouvintes. Este pode não ser sempre o caso; o provedor ou facilitador da
experiência compartilhada pode não necessariamente compartilhar da alegria. Ele
ou ela deverá ser adequadamente recompensado. No melhores casos, o facilitador
da experiência deverá estimular os participantes a um nível profundo de troca,
que deverá também ser satisfatório ao facilitador. Isso requer habilidades
consideráveis em psicologia. É necessário treinamento para prover um nível alto
de experiência. Há também uma parte da psicologia que investiga os picos de
experiência dos indivíduos.
Uma característica chave da
experiência, é que envolve quase sempre uma troca entre pessoas e portanto nos
leva pra longe da forma individualista de consumismo. Outro elemento chave da
experiência é que pode ser aplicada a qualquer atividade ou interesse. Isso
possui uma variedade de formas, como os produtos individualizados. Significa
que o espaço para experiências sociais é também infinito. E, é claro,
experiências sociais não são uma novidade cultural e histórica. Os gregos
valorizavam-nas bastante por meio de seu amor pela música, dança, histórias
épicas, tragédia, comédia, filosofia e sua participação na democracia direta.
Ainda que tivessem escravos, a maioria dos gregos não proclamava ou buscava uma
acumulação excessíva de riqueza material.
O ponto é que nós podemos
substituir consumismo frenético de produtos e serviços individualizados com as
experiências criadas emgrande parte localmente e com uma pegada ecológica muito
mais leve. Isso irá nos beneficiar como indivíduos e globalmente. Podendo ser
uma parte essencial da evolução da sustentabilidade.
As experiências e trocas sociais
podem ser um antídoto parcial ao globalismo. Não precisam ser produzidas em
massa para exportação nos mega mercados. Elas satisfazem um das maiores
necessidades da pirâmide de Maslow, ao passo que provêm ocupações e as
necessidades primárias de todos os facilitadores locais.
Entretanto, isso requer uma
mudança cultural significativa ao reconhecimento da importância fundamental das
relações sociais. Um exemplo pode ser encontrado no turismo, que pode ser, e
frequentemente é, uma jornada de hotel em hotel, com contato limitado com a
população local. “É quinta feira, devemos estar na Bélgica.” Ou pode evoluir,
contando com guias locais, diálogo com as populações e hospedagem com famílias
locais, para aprendere compartilhar suas culturas.
Nas cidades, isso implica
desenvolvimento amplo de oportunidades sociais e habilidades. Pode tomar a
forma de amizade, em atividades como clubes de livro, grupos de discussão e
viagens coletivas. Pode envolver ativismo político, educação adulta contínua ou
trabalho em organizações voluntárias. Implica escutar seu cônjuge, vizinhos,
amigos e conhecidos.
A evidência empírica apoia os
benefícios de experiências e relações sociais. Nos estudos internacionais sobre
felicidade, argumentou-se (Bjornskov 2003; Vermuri and Constanza 2006;
Bjornskovet al 2008) que países felizes têm alto capital social e fortes redes
de amizade. Um estudo notável por DiTella e MacCulloch (2008) explora o
Paradoxo de Easterlin, referindo-se ao fato de que os dados sobre felicidade
são tipicamente estáveis, independentemente de aumento considerável de renda.
Eles aferiram as respostas sobre felicidade, dadas por aproximadamente 350 mil
pessoas vivendo nos países da OCDE. Apesar das vastas mudanças concretas no
padrão de vida, entre 1975 e 1997, muito poucas contribuições à felicidade
podem ser atribuídas ao aumento na renda. Em compesação, elas estão
negativamente correlacionadas com o número médio de horas trabalhadas,
degradação ambiental (medida pelas emissões de óxido de enxofre), crime,
abertura ao comércio, inflação e desemprego.
O famoso estudo de Harvard sobre
Desenvolvimento Adulto, sumarizado por Mineo L. (2017), relata: “a pesquisa,
que durou quase 80 anos, provou que abraçar a comunidade nos leva a viver mais
e ser mais felizes. As relações próximas, mais do que o dinheiro ou a fama, são
o que mantém as pessoas felizes em sua vidas, o estudo revelou. Aqueles laços
protegem as pessoas dos descontentamentos da vida, ajudam a atrasar algum
declínio físico ou mental e são melhores preditores de vidas longas e felizes
do que classe social, nível de QI ou até mesmo genes. Essa descoberta provou-se
verdade tanto entre os membros de Harvard quanto entre participantes das
cidades do interior”. Em animais, a sociabilidade é uma reação de sobrevivência
às pressões da evolução. Talvez o ser humano deva ser considerado um animal sob
pressão evolucionária.
A conclusão é que o
reconhecimento da importância de experiências e relações sociais pode nos
ajudar a refrear o consumismo individualista e permitir que mais recursos sejam
dedicados a necessidades primárias e sociais. Os consumidores, empresários e
governos precisam ser mais inteligentes e entender as escolhas em jogo, o que
pode apoiar uma resposta mais efetiva ao risco das mudanças climáticas.
* William Mebane, foi dIretor
do Ente Nacional de Eficiência Energética da Itália
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