A necessidade de uma nova
Lei de Bases da Saúde tem sido defendida sobretudo para introduzir uma visão
sistémica diferente da adoptada na Lei de 1990, a qual estará na
origem de um crescimento das prestações de serviço privadas à custa dos
recursos públicos alocados ao Serviço Nacional de Saúde, cujo primeiro “S” para
muitos já não significa “Serviço” mas sim “Sistema”.
Nuno Ivo Gonçalves
| Jornal Tornado | opinião
Do conflito ao acordo, ou melhor,
à trégua
No entanto será erróneo
responsabilizar pela Lei vigente, como já vi escrito, apenas Cavaco Silva /
Arlindo de Carvalho[i] e mais tarde Durão Barroso / Luís
Filipe Pereira. É que os Governos do Partido Socialista de António Guterres e
José Sócrates comungaram plenamente das virtualidades do modelo, a ponto de a
antiga Ministra Maria de Belém, mesmo enquanto Presidente do PS, ter vindo a
ficar ligada a um grupo privado de saúde e do antigo Secretário de Estado
Óscar Gaspar presidir agora à Associação Portuguesa de Hospitalização
Privada. As oscilações do Partido Socialista durante o ultimo ano parlamentar
poderão assim dever-se menos a divergências ideológicas internas do que à
influência do que tenho vindo a denominar “Partido Socialista dos Negócios”.
A ponto de, perante a
necessidade de expansão / aumento de capacidade da rede hospitalar, se colocar
sempre a questão de ela dever ser ou não assegurada através do recurso a
Parcerias Público-Privadas (PPP), e de o Presidente da República em funções ter
ameaçado com a não promulgação da nova Lei, caso viesse a pôr em causa não os
interesses empresariais privados já instalados, mas as futuras novas
oportunidades de negócio.
Aparentemente a solução agora
encontrada, após um conflito que mostrou a profunda desconfiança reinante entre
o PS e os partidos à sua esquerda, serve a todos os stakeholders, na
medida em que adia a decisão sobre o recurso às parcerias público
privadas no domínio da saúde.
Ironia das ironias, o recurso às
parcerias público-privadas ganhou popularidade entre os decisores políticos
porque, face às limitações orçamentais, aparecia como uma forma de empurrar
para o futuro o registo da despesa pública, e pergunta-se se hoje em dia
os Centenos continuam a ver aí uma vantagem, e assegurava uma maior
flexibilidade de gestão na contratação de recursos, designadamente humanos, o
que face ao esquema ultra-centralizado actualmente mantido pelos Centenos,
ganhou hoje em dia ainda maiores atractivos.
Sem ser um apologista das PPP
hospitalares já tive ocasião de aqui no Jornal Tornado em 11 de Abril de 2018,
em artigo intitulado “Investimento Público. Resgate de PPP. Privatização.”
defender que, a realizar investimentos financeiros na recuperação de activos
alienados ou simplesmente concessionados o Estado desse prioridade a outras
áreas.
"A ir-se para uma estratégia desse tipo julgo que será preferível que o Estado recupere prioritariamente o controlo dos negócios que sabe efectivamente gerir, como o das vias de comunicação, em que os parceiros privados são sobretudo construtoras e bancos, deixando para mais tarde a situação das parcerias hospitalares em que a parte privada tem criado soluções organizativas próprias que o Estado pode ter dificuldade em fazer substituir a meio do contrato."[ii]Continuo a pensar o mesmo.
De como o ISCTE aderiu à
solução Pedro Passos Coelho para o financiamento da Saúde
Quando estavam em curso as
eleições legislativas de 2011 Pedro Passos Coelho concedeu uma entrevista à
Revista do Expresso onde, entre outros aspectos, explanou o seu
pensamento sobre a ADSE que defendeu se mantivesse e até se generalizasse como
forma de assegurar o funcionamento do Sistema de Saúde. Depois disso, como se
sabe, foi primeiro-ministro, deputado da oposição e agora é professor
catedrático convidado do ISCSP e da Universidade Lusíada, e talvez tenha já
escrito os seus cursos, como recomendei publicamente em artigo aqui publicado
em 12 de Setembro de 2018 com o título “Os catedráticos convidados”[iii].
Ora há dias, quando percorria os on
lines deparei-me com vários títulos que davam conta da publicação de
um estudo sobre Políticas Públicas “Menos reformas, melhores políticas”,
Instituto para as Políticas Públicas e Sociais, ISCTE-IUL, 2019, a que estavam ligados
Ricardo Paes Mamede e Pedro Adão e Silva[iv] e do qual a comunicação social
destacava uma proposta de abertura da ADSE a não-funcionários públicos.
Trata-se efectivamente de um
trabalho colectivo, coordenado por aqueles dois autores, mas o estudo produzido
sobre a saúde é assinado por Tiago Correia e tem o título “SNS ainda não
encontrou forma de garantir a universalidade e a generalidade de cuidados”. E
sim, a hipótese encontra-se de facto lá tratada.
"Uma possibilidade é um Seguro universal obrigatório que permita afectar o orçamento do SNS exclusivamente à sua actividade, organizar o financiamento público da prestação privada evitando concorrência e falta de transparência na relação público -privada, reforçar a regulação do Estado sobre a prestação privada coberta pelo seguro e fazer uso das valências privadas já instaladas no país. A actual configuração da ADSE prova o conceito de cedência de parte do vencimento para acesso a uma cobertura ampla de serviços e do agregado familiar e com custos pouco significativos no ato de consumo. Os desafios estão em assegurar a regulação pública das práticas e preços do mercado e a participação da segurança social no financiamento da população desempregada e de baixo rendimento."
Não conheço pessoalmente Tiago
Correia, embora já tenha tido ocasião de me apoiar num trabalho seu
e de outro investigador sobre negociação colectiva no sistema de saúde. Creio
perceber o que quer dizer, embora, no que se refere à ADSE, esta
esteja muito longe de um Seguro uma vez que, por um lado, se é certo que
já se pode dela sair, não é possível nela reentrar, e que o desconto de uma
parte proporcional do rendimento não faz muito sentido no contexto de um seguro.[v] Impor a conversão da ADSE em Seguro
obrigatório para toda a população tendo o financiamento das prestações privadas
em mente equivaleria a um agravamento da carga fiscal ou, se quisermos, para-fiscal,
em benefício do sector privado.
Enfim, se formos para essa via
talvez Pedro Passos Coelho acabe por encontrar no ISCTE a sua terceira cátedra.
Notas:
[i] A autoria política e intelectual,
como uma simples consulta dos diplomas publicados no Diário da Repúblicadesde
1988 permite facilmente comprovar é de Leonor Beleza.
[iv] IPPS / ISCTE 2019 – Menos Reformas, Melhores Políticas.
[v] Declaração de interesses: dada a
extrema instabilidade na formulação de políticas e na evolução legislativa
nesta área, acumulo o desconto para a ADSE de uma parte elevada do meu
rendimento com o pagamento de um seguro de saúde que subscrevi já numa idade
relativamente madura.
Sem comentários:
Enviar um comentário