Martinho Júnior, Luanda
(APONTAMENTOS DE LÓGICA COM SENTIDO DE VIDA, UMA IMPRESCINDÍVEL ESSÊNCIA DA PRÓPRIA HISTÓRIA QUE NOS HAVIA DE TOCAR)
01- Quarenta e cinco anos depois, recordo aquela saga decisiva, desde a aba leste da batalha de Quifangondo, pelas serranias verticais dos Dembos, ali onde a história, década a década, gota a gota, foi sempre um pungente virar de página, ao longo de todo o século XX…
Com as embrionariamente heterogéneas Forças Armadas Populares de Libertação de Angola, naqueles Novembros húmidos, por quentes caminhos lamacentos, acabava-se de cruzar o passo mágico de Quibaxe, reconquistada aos invasores que haviam chegado pelo norte, veladamente a coberto do etno nacionalismo da ocasião, um dos que tanto queriam e fizeram para subverter e frustrar a independência anunciada!...
Prevalecia a adaptação ao terreno e era indispensável a capacidade humana local, numa frente de plasticina que se foi alterando, mas cumpriu seu papel de “barragem”, respondendo ao poder de penetrante máquina do inimigo…
Naqueles tempos queriam esses agoirentos das trevas, uma Angola atrelada a um regime que estava ele próprio amarrado a um inquinado estendal que só foi possível fazer-se acontecer e suceder, sobre o sangue heróico e ainda fresco de Patrice Lumumba…
… Tinham de passar por cima de nossos corpos para chegar a Luanda pelo leste, desde a linha sonora do Úcua, Cacamba, Gombe ya Muqiama, Pango Alúquem, Cazuangongo, forte de João de Almeida (atravessando um sempre turbulento Zenza) e providenciar a aproximação à planura solarenga, mar de capinzais flutuantes, da Cerca e de Maria Teresa, para tomar o bastião de Catete e por fim, esquivando dispersos embondeiros de entre Cuanza e Bengo, alcançar a capital…
Era demasiado para eles, foi demasiado para eles e não passaram da pequena aldeia de Quiqueza (entre Pango Aluquém e Quibaxe), nem do primeiro degrau da Cacamba…
Dizem alguns entendidos que esse era um plano necessariamente secundário, mas a presença de Santos e Castro à frente do “spinolista” Exército de Libertação de Portugal no eixo de Ambriz, não dava garantia que assim fosse e só não se tornou provavelmente alternativo por que o relógio acabaria por ser o maior inimigo para a artificiosa invasão prevista desde a Ilha do Sal, numa altura em que em sofreguidão e sobre brasas, queriam mesmo assim, teimosamente, reverter o tempo e o modo a seu favor…
Foi essa uma das muitas tarimbas ardentes do transitório Grupo de Operações Especiais da Segurança do Estado-Maior das FAPLA, também naquele passo mágico e disjuntivo de Quibaxe: a independência anunciada se tudo corresse bem, ou a emergente resistência, não anunciada, se houvesse o reverso…
02- … Quibaxe foi por fim um relâmpago a cavalo nas vassouras diluvianas que naquela época varriam desde o sudoeste a região pejada de verde luz e de sombra verde, entre os exclusivos contrastes dos Dembos, nublados de vocação e força atlântica…
As vozes que sussurravam do passado próximo, meio escondidas nos liames que se uniam às frondosas árvores das densas florestas, ainda ecoavam, entre as névoas, os vendavais, a estridência das cigarras e as explosões longínquas…
Vozes espinhosas da resistência longínqua, emergindo dos zunidos dos insectos voadores, desde a intrépida Gombe ya Muquiama, da exterminada Gimbo Aluquém que se adivinhava desde o chão encharcado das picadas, da humanamente esvaziada Cazuangongo… vozes sussurrando entre folhas cadentes, em estremecidos cemitérios germinais, vozes que de seus subterrâneos húmus, faziam brotar as heranças com memória, connosco por dentro nos intrépidos passos que se haviam verticalmente de dar…
Nessas vertentes escorregadias e viscosas, mas tornadas decisivas, forjaram-se amores resolutos e secretamente altivos, incensados por um fugaz odor a pólvora: decididamente não passarão!...
… É escusado partirem para as lavras amores campesinos, minhas vidas, com as trouxas à cabeça e os filhos que apenas tinham começado a caminhar, pela mão, às costas, ou ainda adivinhados em vossos ventres envoltos em panos crus, onde afinal se recolhiam tantas esperanças que não se queriam nem desejavam vãs!...
… É escusado esconderem-se entre caminhos de insegurança, voltem para as vossas frescas cabanas de pau-a-pique, a cheirar a fumo, a capim seco e a roupa lavada, para o aconchego certo e seguro da vossa pobre aldeia, Benza, terra-mãe, terra vermelha… foi a resposta dada com um sorriso, um calafrio meio trémulo, meio emocionado, mas terno e numa resoluta profissão de fé, perante os olhos silenciosamente inquiridores dessas inocentes crianças quando ao longe eram perceptíveis os estrondos dos combates que volatilizavam os ares dos pináculos tisnados de flutuantes névoas horizontais…
… E mesmo que tivessem passado, mesmo que tivessem vencido os Dembos, ou transposto a ponta do armadilhado funil de Quifangondo chegassem a tomar a capital, com as vozes e as sombras do passado os do Grupo de Operações Especiais iriam permanecer entre a verde luz e a sombra verde, iriam embrenhar-se então sim nas lavras de recurso secreto, florestas adentro, por que outra resistência, com todo o caudal de imponderáveis, iria inexoravelmente ressurgir e regurgitar…
03- … Com toda a humildade que é permitida aos que com memória fértil interpretam a história húmida e consentida, indelevelmente mesclada de saudade, de sangue, de pólvora e também de lágrimas, assim lembro o que foi possível salvar daquele passo resolutamente mágico e disjuntivo de Quibaxe, por dentro de tantos outros Novembros pré-natais!...
Em Luanda a voz de Agostinho Neto proclamou finalmente a independência num parto tão fértil quão imponderável, mas em torno desse Quibaxe e por dentro dele, a vida havia que garantir e continuar… desde a aba leste da batalha de Quifangondo, uma batalha entre mais duas outras irmãs iguais!...
Em qualquer delas do lado da nascente República Popular houve um dado novo, a alvorada da chegada do primeiro batalhão das Forças Armadas Revolucionárias de Cuba, lançada que foi a operação com nome de escrava, a operação Carlota…
Sabíamos assim irmãmente, solidariamente, o que éramos e ao que íamos…
Espreitou-se a travessia do Dange: se a ponte para o Uíge ainda estava lá, na sinuosa estrada do café… (sempre a apelativa atracção à água a escapar-se entre os dedos das montanhas)!
A água ansiosa de mar estava lá, mas a ponte não e por isso a rota oferecia-se aberta junto à costa, até ao Loge, ao Lifune e ao caudaloso MBridge, passo a passo, rio a rio, para norte, até à fronteira de onde aquele inimigo não iria mais ameaçar!...
04- A criança que nasceu a 20 desses Novembros de há quarenta e cinco anos confirmou apenas essa saga decisiva, conferiu mais vigor ainda à lógica de luta com sentido de vida, inerente à substância plasmada de libertação e dos amores inesgotáveis que era proibido olvidar, porque assim se haviam tornado irrevogáveis, como todos os cinquentenários amores da terra fecunda e das horas decisivas… a renúncia impossível dos poetas abissais que encaravam o futuro olhos nos olhos, mesmo que eles estivessem toldados de tempo, de lágrimas, de verdes múltiplos entregues às neblinas matinais e prenhes de tão impregnada saudade!...
Havia um privilégio: estar por dentro das horas decisivas, por dentro do seu compasso, do seu compromisso, no miolo do seu tempo feito pão, quando múltiplos partos ocorriam simultaneamente no singular e no colectivo, como se uma feliz osmose acabasse por ditar as regras do jogo vital e dos mais profundos enlaces e convicções a partir da própria terra-mãe…
Saber ao que se vinha, implicava o homem total e sua projecção em relação ao equilíbrio do momento e do futuro e isso marcava a contrastante diferença na formulação dos projectos colectivos comuns de uns e no contrarrelógio de outros, sobre brasas e num frenesim de tão mau agoiro…
Dum lado havia a cadência de corações humanos latejando no fragor das escaramuças, entre arvoredos, com sopros de vida… no outro até os gestos eram automáticos, conduzindo a maquinados improvisos, a grotescos adestramentos e a compulsivas aventuras, sem horizonte… e sem remissão!…
05- … Agora o tremor furtivo da emoção é outro, sem deixar jamais que essa lógica deixe de prosseguir a fecundidade do amor, uma lógica amadurecida no cadinho de tempos cada vez mais coerentemente telegráficos e substantivos…
É uma memória reflexiva ainda ávida de futuro, fluindo de intensas brumas, da girândola de verdes sacudidos de ventos insuspeitos ou até de vendavais, de homens tropicais, tornados escravos, ou sombras, ou paradoxalmente homens resistentes… emergindo de recicladas águas vitais!...
Que a memória desses redentores libertários reflua para dar vida e fulgor e sopro às crianças que vão nascer, por que essa fecundidade há que multiplicar e intensamente continuar a sublimar, arrancando os vindouros ao crónico passado que os poderosos queriam e querem atávicos às suas próprias trevas, por que desde aqueles Novembros, nós, afinal somos nós mesmos, ainda que eclodindo de cinquenta em cinquenta anos!...
… Nos intrépidos Dembos, nos inconfundíveis Dembos, a resolução da idade diz ainda que de pé, largas décadas depois, cem anos depois, por muito que a aparente solidão dos ermos apague as marcas e as contingências dos que desapareceram indeléveis na voragem saudosamente húmida dos tempos, há que continuar, passo a passo, testemunho a testemunho, geração após geração…
Como um evasivo e cadenciado tambor, ciclópico e ponderado tambor que se vai adivinhando insubmisso, percutido por hábeis mãos seculares, tambor-vulcão feito ecoar nas ondas dos espaços e dos tempos tropicais, de elevação em elevação e por dentro de memórias fluidas de múltiplas plataformas silenciadas, mesmo assim os bárbaros ao serviço das trevas, tal qual naquele mágico Quibaxe tornado avulso, tornado ignoto, mesmo que tentem apagar a história, decididamente não passarão!...
Martinho Júnior -- Luanda, 11 de Novembro de 2020
Quatro imagens fotográficas da aproximação a Pango Aluquém, a partir do Úcua, segundo registo de 5 de Dezembro de 2013.
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