quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A CLASSE TRABALHADORA SOB O NEOLIBERALISMO

Prabhat Patnaik [*]

Um regime neoliberal implica por toda a parte uma mudança espontânea no equilíbrio do poder de classe contra a classe dos trabalhadores. Isto acontece por uma série de razões. Primeiro, uma vez que o capital se torna globalmente móvel enquanto o trabalho não o é, este capital globalmente móvel tem uma oportunidade de colocar a classe trabalhadora de um país contra a de outro. Se os trabalhadores de um país entram em greve, então o capital tem a opção de deslocalizar a sua produção à margem para outro país; e a própria ameaça de o fazer serve para manter baixa a militância dos trabalhadores em todos os países.

Se os trabalhadores tivessem estado organizados internacionalmente, para que as ações de greve não fossem apenas organizadas a nível nacional mas pudessem ocorrer simultaneamente em vários países, então uma tal ameaça por parte do capital não teria funcionado; mas as ações coletivas da classe trabalhadora infelizmente ainda não são coordenadas internacionalmente, razão pela qual tais ameaças funcionam. É verdade, mesmo que os trabalhadores tivessem estado organizados internacionalmente, o capital ainda poderia ter ameaçado transferir a produção para alguma localização inteiramente nova, mas isto teria sido mais difícil do seu ponto de vista. O facto de os trabalhadores mesmo nos atuais locais de produção de capital não estarem organizados internacionalmente, atua em favor do capital e mantém baixo o nível de militância em cada localização.

Isto é simplesmente um exemplo do facto bem conhecido de que a centralização do capital é um meio de subjugar a militância dos trabalhadores: uma vez que a centralização do capital está tipicamente associada à instalação desse capital centralizado através de um conjunto de atividades dispersas ou através de localizações geográficas dispersas, a ação militante dos trabalhadores em qualquer local ou ramo de atividade em particular enfrenta a ameaça de transferência do capital para outro ramo ou localização. A globalização neoliberal implica a centralização do capital, mas com uma dispersão global e, por conseguinte, impõe uma contenção efetiva à militância dos trabalhadores.

O segundo fator que atua na mesma direção é isto: mesmo quando atividades se deslocam da metrópole para alguns países da periferia, enfraquecendo assim a força de negociação dos trabalhadores e a força da greve nas metrópoles, as vastas reservas de trabalho da periferia não se esgotam, de modo que os trabalhadores na periferia não adquirem maior força.

O facto de os trabalhadores das metrópoles serem restringidos por estarem ligados às vastas reservas de trabalho da periferia, que é o que o neoliberalismo assegura, é bem reconhecido. O fosso crescente entre as condições dos trabalhadores metropolitanos e os da periferia que havia caracterizado o capitalismo no período anterior, quando este havia segmentado a economia mundial em duas partes, através das quais nem o trabalho nem o capital se deslocavam, já não pode mais ser prolongado. Mas o neoliberalismo sempre mantivera a promessa de que a deslocalização – que ajudou o crescimento rápido da economia periférica – consumiria as reservas de trabalho ali existentes, ou seja, que estas reservas, as quais são uma herança do colonialismo e do semi-colonialismo (embora a ideologia neoliberal não reconheça este facto), iriam finalmente diminuir.

Esta promessa, no entanto, é desmentida. De facto, ao invés de reduzir a magnitude das reservas de trabalho na periferia, o regime neoliberal realmente aumenta-as. O neoliberalismo está ali associado a um aumento do desemprego, embora este facto possa manifestar-se como uma redução do número de dias de trabalho de cada trabalhador e não como uma diminuição do número de trabalhadores empregados.

Este aumento do desemprego decorre de duas características do neoliberalismo. Uma é a retirada do apoio do Estado à pequena produção e à agricultura camponesa tendo em vista abrir este sector à invasão do grande capital e do agronegócio. A segunda característica é a abertura da economia a fluxos transfronteiriços mais livres de bens e serviços, o que aumenta grandemente a compulsão de cada produtor a introduzir o progresso tecnológico a fim de defender fatias de mercado contra importações. Uma vez que a poupança na mão-de-obra é a forma típica do progresso tecnológico sob o capitalismo, isto significa um aumento da taxa de crescimento da produtividade laboral e, portanto, um declínio da taxa de crescimento do emprego. Assim, à medida que os camponeses e artesãos deslocados ampliam o número de pessoas à procura de emprego no sector capitalista da economia, o crescimento do número de postos de trabalho contrai-se nesse sector, causando um inchaço da dimensão relativa das reservas de trabalho. Isto de facto enfraquece a posição da classe trabalhadora em todos os países.

O terceiro fator que enfraquece a posição dos trabalhadores por toda a parte é a privatização de unidades do sector público. Os trabalhadores das unidades do sector público estão invariavelmente melhor organizados do que os das unidades do sector privado, um facto evidente pela extensão da sindicalização nos dois sectores. Nos EUA, por exemplo, quase um terço dos trabalhadores do sector público (incluindo na esfera da educação) estão sindicalizados, em comparação com apenas cerca de 7% dos trabalhadores do sector privado. Daqui decorre que a privatização tem o efeito de subjugar a militância da classe trabalhadora. Isto, por sua vez, subjuga a militância dos trabalhadores na economia como um todo.

É por esta razão que a França, que ainda tem um sector público considerável, continua a testemunhar lutas militantes de trabalhadores. Na Índia, onde havia um sector público substancial com uma história de lutas gloriosas, a privatização gradual sem dúvida tornou essas lutas mais difíceis; levou a uma mudança no locus da sindicalização para o sector de pequena escala.

O que impressiona, porém, não é tanto o facto de o neoliberalismo enfraquecer a classe trabalhadora na sua luta contra o capital, mas que, apesar deste enfraquecimento do neoliberalismo assiste-se atualmente a um ressurgimento da militância dos trabalhadores. Na Grã-Bretanha, os ferroviários efetuaram várias greves este ano, incluindo, durante o Verão anterior, a maior greve já vista desde há décadas. Mesmo neste momento, os trabalhadores ferroviários rejeitaram a oferta salarial feita pelo patronato como sendo demasiado mesquinha e estão a ameaçar novas greves em Dezembro e Janeiro. Os trabalhadores ferroviários, contudo, não estão sozinhos. Trabalhadores dos correios, enfermeiros, ambulâncias e outros têm estado envolvidos em ações grevistas ou estão em vias de estar, de tal forma que o presidente do Partido Conservador no poder falou em trazer o exército para gerir "serviços essenciais". Na Alemanha, trabalhadores portuários, trabalhadores dos transportes públicos, trabalhadores da segurança aérea, trabalhadores da construção civil, e trabalhadores dos caminhos-de-ferro têm estado todos envolvidos em greves ou vão estar em breve. O mesmo se aplica a outros países europeus. Por outras palavras, a relativa aquiescência dos trabalhadores que até agora caracterizara a era neoliberal está a chegar ao fim.

A explicação típica para este ressurgimento da militância que a imprensa ocidental apresenta é atribuída à inflação. A inflação, por sua vez, acredita-se que tenha sido causada por fatores, como a guerra da Ucrânia ou as perturbações induzidas pela Covid nas cadeias de abastecimento, que supostamente são totalmente alheias ao funcionamento do capitalismo neoliberal.

Contudo, esta explicação é inadequada por duas razões óbvias: uma, nem o episódio de Covid nem a guerra da Ucrânia são alheios ao funcionamento do capitalismo neoliberal. Isto é evidente no caso da guerra da Ucrânia, cuja génese reside na tentativa de manter a hegemonia do imperialismo ocidental, que o capitalismo neoliberal também procura reforçar. Mas mesmo o episódio de Covid não é alheio ao capitalismo neoliberal: a sua varredura e intensidade devem muito à relutância ocidental em se separar do controlo monopolista sobre a tecnologia das vacinas; além disso, até mesmo a origem de Covid, parece agora, a partir do relatório de um comité nomeado pela [revista] Lancet, ter estado num laboratório que poderia muito bem cair numa investigação ligada a militares por conta do imperialismo.

A segunda razão pela qual a inflação atual não é estranha ao capitalismo neoliberal é a seguinte. As crises capitalistas têm a característica de que a tentativa de resolução muitas vezes conduz simplesmente a crises de uma forma diferente. A ultrapassagem da tendência para o excesso de produção que o capitalismo neoliberal tem gerado devido ao aumento da parte do excedente na produção da economia capitalista mundial como um todo, bem como em economias capitalistas individuais, tem sido procurada há muito tempo nos EUA, o principal país metropolitano, pela manutenção de taxas de juro próximas de zero e pelo bombeamento de enormes quantidades de liquidez para a economia através do que é chamado de "flexibilização quantitativa" (“quantitative easing”).

Agora, os capitalistas, ao decidirem qualquer curso de ação, avaliam os riscos associados a esse curso. A disponibilidade de enormes quantidades de liquidez a taxas de juro muito baixas reduz grandemente os riscos para as corporações associadas ao incremento das suas margens de lucro. É por isso que várias empresas americanas, na primeira oportunidade, aumentaram as suas margens, precipitando a atual inflação. Outros fatores desempenharam sem dúvida um papel, mas esta causa básica da inflação atual não deve ser esquecida.

É contra este assalto direto aos seus padrões de vida que os trabalhadores protestam veementemente por todo o mundo. Este assalto, por sua vez, é sintomático do beco sem saída do neoliberalismo.

11/Dezembro/2022

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2022/1211_pd/working-class-under-neo-liberalism. Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em resistir.info

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