O fantasma da inflação salarial tem sido agitado ad nauseam pelos governadores dos bancos centrais. Pouco se importam com o facto de os salários e pensões serem ajustados em menos de metade da inflação.
Francisco Louçã* | Esquerda.net | opinião
O Banco Central Europeu é, mais do que a Comissão, o governo da zona europeia (e não só do euro). O seu poder tem três pilares: o que está nos tratados, o que não está nos tratados e o que adiante se dirá. O que está nos tratados é a sua vinculação a uma política de restrição anti-inflacionista, que foi aplicada com rara exceção mesmo quando não havia inflação, amparando as autoridades de Bruxelas na vigilância e punição dos infratores (exceto quando fossem a Alemanha e a França a ultrapassar os limites; talvez ainda haja quem se lembre que só por um voto de diferença na Comissão é que Portugal não foi o primeiro e único país a ser sancionado por um desvio de 0,3% no défice). Pensar que uma grande zona económica pode (ou deve) viver sob a restrição de inflação sempre abaixo de 2% é uma aberração que não tem nem suporte histórico nem lógica teórica, muito menos prática, e cuja única justificação substancial é o favorecimento do sector financeiro, de há algumas décadas hegemónico no pensamento e na ação das instituições e dos Governos.
O que não está nos tratados, o segundo pilar do poder do BCE, é tudo o resto, um poder discricionário que não se vincula a resultados económicos nem, muito menos, sociais. Nada que seja exceção na União, onde funcionam instâncias sem mandato nem lei, aliás irmanadas com o BCE, como o Eurogrupo. O poder é sempre mais forte onde não há regras, como é bem sabido. Em função desta arquitetura institucional, a incoerência é considerada uma virtude e o mando exibe-se mesmo, sobretudo quando se orgulha de provocar devastação económica.
Lagarde, Centeno e os salários
Para este mister, o Banco não precisa de coerência. Requer, aliás, o contrário: em vez do que um dia nos Estados Unidos se chamou a “banca aborrecida”, que devia ser previsível e confiável, o BCE precisa da surpresa, entendendo que é assim que se gerem as expectativas — desde que não afete a única certeza da pressão sobre os rendimentos laborais. Nisso, o Banco não falha.
Se ouvirmos Mário Centeno, a conversa é a mesma. Propunha ele já há meses que os salários ficassem pelos 2%, por ser esse o objetivo mirífico do BCE para a inflação. Sublinhou depois o mesmo alerta, o problema são os salários — constatação curiosa de um economista que, verificando a inflação a 10%, aponta o risco de salários que, no mesmo ano, subiram na Função Pública 0,9% e no privado cerca de 4%, provando a evidência de que não há o tal vínculo causal salário-inflação. Assim, com a virtude da franqueza, explicava que quem trabalha deveria continuar a perder rendimento, pois esse seria o instrumento de ajustamento dos preços, por via da degradação das condições de consumo e de vida da maioria da população. Este fantasma da inflação salarial tem sido agitado ad nauseam pelos governadores dos bancos centrais, que pouco se importam com o facto de os salários e pensões serem ajustados em menos de metade da inflação, pois querem fazer dessa perda a batuta do achatamento dos preços.
Para demonstrar este empenho em gerar a recessão, Isabel Schnabel, do BCE, disse há dias que “temos de subir as taxas até território restritivo”, provocando uma “recessão suave”. O linguajar dos banqueiros centrais é sempre melífluo, e, nisto, Schnabel só repete Lagarde: uma “redução da procura”, como ela propõe, é a forma amável de dizer recessão, a tal “recessão suave”. Será então essa a “suave” receita que o BCE promove e que nenhum Governo questiona, como se o destino celestial fosse responder a uma dificuldade criando mais sofrimento social.
Draghi e Lagarde
No entanto, o paradoxo evidente é que o BCE tem não só poder mas também usa um novo prestígio, seja por ser visto como o Olimpo de decisões irrecusáveis e, aliás, mesmo incontestáveis, seja por ter tido a capacidade de, por um tempo, não ter cumprido as suas próprias normas. Foi o “momento Hamilton” de Draghi, quando forçou o início dos programas de monetarização da dívida pública e privada comprando títulos financeiros dos Estados-membros e das suas empresas. Conseguiu assim evitar a crise do euro e estabilizar a dívida pública dos países mais vulneráveis. Forçada a reduzir estes programas, Lagarde reclama agora um mecanismo de intervenção que entregue à sua administração o poder de decisão sobre a gestão da dívida de cada Estado, apoiando-se neste precedente. No entanto, enquanto Draghi quis evitar uma depressão, Lagarde quer agravar a recessão, a doutrina voltou ao seu redil. Há em tudo isto um perigo e a criptoderrapagem é um alerta: a subida dos juros criará ainda mais riscos financeiros. Os banqueiros centrais jogam à roleta-russa.
Independentes e políticos
Finalmente, o terceiro pilar do poder do BCE é ser um decisor político incontrolável pela vida democrática. Não está acima dos Governos, está acima da democracia, e a hagiografia recente de Carlos Costa veio reclamar esse estatuto. Aliás, um dos inventores deste mecanismo, tão eficiente a proteger os interesses financeiros antes de todos, tinha a honestidade de avisar para o perigo: “Um banco central independente vai, quase inevitavelmente, dar uma ênfase indevida ao ponto de vista dos banqueiros”, escrevia Milton Friedman em 1962, num capítulo de um livro sobre uma “Constituição Monetária”. Antigamente, de um poder absoluto sem controlo democrático dizia-se uma ditadura.
*Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 2 de dezembro de 2022
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