domingo, 21 de maio de 2023

O QUE ESTÁ EM JOGO NA REVOLTA FRANCESA -- Negri

As ruas recuperam – e ressignificam – as consignas da Revolução. Podem ir adiante, em nome do Comum. Minoritário, Macron apela à brutalidade e escancara o fio que une o neoliberalismo à ultradireita. Algo se gesta em meio à primavera

Toni Negri e Marco Assennato, no CTXT | em Outras Palavras | Tradução: Rôney Rodrigues | # Publicado em português do Brasil

1. Em seu discurso à nação francesa em 17 de abril, o presidente Macron deu a si mesmo um trimestre para sair do atoleiro em que meteu seu Executivo após a aprovação forçada da reforma da previdência. No discurso, ele anunciou três “áreas de atuação” até o final de seu mandato de cinco anos: Trabalho, Segurança e Serviço Público. Depois das aposentadorias, é hora do Trabalho e, portanto, a educação — que provavelmente será adaptada definitivamente às necessidades do mercado (deste ponto de vista, é espantosa a reintrodução de formação profissional para empregos pouco qualificados); e, depois, para a Saúde, cuja “reforma” poderá ser trocada por algumas vagas adicionais nas emergências hospitalares. Não é possível dizer de outra forma: tudo isto se passa num quadro já declaradamente autoritário: “Renovar a ordem republicana”, diz Macron, porque “não há liberdade sem lei”! É por isso que o presidente prometeu solenemente recrutar “mais de 10 mil magistrados e polícias e criar 200 novas brigadas de polícia militar para as zonas rurais” e, claro, “reforçar o controle da imigração ilegal”. Isto leva-nos a pensar que as razões do conflito político generalizado em torno do aumento da idade de aposentadoria se confirmaram plenamente: o ato de força em relação às aposentadorias indicava claramente um horizonte mais amplo. Em outras palavras, serviu como o primeiro rolo compressor de uma ofensiva sistemática aos direitos sociais e civis, desafiando abertamente os sindicatos e sua capacidade de luta. Não surpreende que o discurso do presidente foi acompanhado pela eclosão imediata de panelaços, de manifestações selvagens e de confrontos com a polícia na maioria das áreas metropolitanas: de Paris a Nantes, Lyon, Bordeaux, Angers, Grenoble, Caen, Saint-Etienne, Estrasburgo. A noite francesa se iluminou-se com mil fogos que sinalizam o esgotamento da hipótese política neoliberal. Abriu-se, assim, um abismo político que corre o risco de roubar todo o espaço de quem, depois de Macron, almejava disputar terreno com a extrema direita no próximo pleito presidencial – e fazer ressurgir o enésimo projeto centrista. A partir de agora, entra na ordem do dia a consolidação de um perfil reacionário-autoritário, senão explicitamente neofascista, no grupo dirigente dos países da UE.

2. No entanto, pode-se afirmar que o declínio da presidência de Macron e da hipótese neoliberal não é apenas político, mas diz respeito também a uma dimensão institucional. Esta aposta afeta diretamente a estrutura democrática do país. Como se sabe, o parlamentarismo racionalizado da Constituição de 1958 previa um conjunto de dispositivos emergenciais destinados a reduzir a influência do Parlamento sobre as necessidades de governabilidade. Esses dispositivos foram acionados em diversas ocasiões e de forma cada vez mais trivial nas últimas legislaturas. Porém, com a presidência de Macron, o recurso reiterado nos artigos 47.1 (que limita o tempo do debate parlamentar); 44.1 (que permite o voto em bloco no Senado) e 49.3 (que permite a aprovação de um projeto de lei sem o voto da Assembleia Nacional) chegou a um ponto de ruptura. Segundo Pierre Rosanvallon [historiado francês], esta é “a mais grave crise democrática que a França já atravessou desde o fim do conflito argelino”. Por um lado, a prepotência do poder presidencial, bem como a decisão do Conselho Constitucional de confirmar a aprovação da reforma da previdência (apesar da presença de inúmeros argumentos técnicos que poderiam ter levado o Conselho a emitir outro parecer), criaram precedentes extremamente perigosos para as futuras estruturas governamentais. Por outro lado, podemos lê-los como resquícios de um poder tecnocrático que certamente prevalece, mas, ao mesmo tempo, não é mais capaz de extrair benefícios dos movimentos da sociedade. Ou seja, parece-nos que o que tem sido atropelado por esta crise é o sistema institucional da Quinta República como um todo, ou seja, a possibilidade de verticalizar a decisão para contrapor a instabilidade estrutural da dinâmica política. Daí a ruptura, a separação entre uma esfera política cada vez mais autorreferenciada e as formas cada vez mais difundidas e capilares de insurreição de massas.

3. Evidentemente, Étienne Balibar [filósofo francês] tem razão quando observa que seria simplista afirmar que, de agora em diante, o poder político se mantém graças ao “fio que o une à polícia” e quando nos convida a não subestimar a força de uma extrema direita cada vez mais aceitavél pelas esferas do governo. No entanto, não há dúvida de que, no quadro francês, o uso extremo da polícia é hoje é o tampão da excepcionalidade-verticalização tecnocrática. De fato, só a polícia permite o ato da força política, a tal ponto que cada vez mais se ouve falar em democracia policial: “Uma forma híbrida – declarou Sébastien Roche [ator francês] ao Libération – em que o poder governa através da polícia, asfixiando os corpos com gás lacrimogêneo”. Com isto queremos sublinhar o fato de o uso da força e os abusos por parte da polícia adquiriram características anômalas diante de outras democracias europeias. Mas, outra vez, a arrogância de usar a força parece responder a um sentimento de medo generalizado no perímetro da governabilidade, como mostra a repressão ao movimento ambientalista em Sainte-Soline e a dissolução do coletivo Les Soulèvements de la Terre: praticamente um ataque preventivo para impedir a difusão de respostas organizadas à violência policial. Não podemos afirmar se estamos lidando com formas insurrecionais de revolta, com uma rebelião que responderá à violência com violência, ou com lutas que assumirão formas pacíficas. No entanto, podemos dizer com certeza que, ao contrário da catastrofização geral que animou as discussões dos anos de pandemia, a França dá sinais de um formidável despertar democrático. Trata-se de uma social-democracia incipiente, que deve encontrar suas formas autônomas de organização. Assim, a pergunta é a seguinte: este ciclo de lutas será capaz de produzir uma alternativa democrática dentro do colapso da Europa soberana(recentemente descrito com maestria por Ángela Mauro)? Em outras palavras: as lutas francesas poderão interromper a espiral que liga a crise do neoliberalismo à consolidação da extrema direita?

4. Claro, não podemos ter ilusões quanto às relações de poder nesta seara (que, de outra forma, estão nas garras de procedimentos tecnocráticos e repressão policial). Da mesma forma, é bastante provável que fatores exógenos – a crise do macronismo também afeta seriamente a França no contexto do colapso da Europa e no que diz respeito à posição face à guerra – possam contribuir ainda mais para a deslocamento do quadro político para a direita. No entanto, parece-nos que este novo ciclo de lutas está transformando o lema republicano de liberté, égalité, fraternité. Esses velhos princípios aparecem transfigurados como novos poderes multitudinários: liberdade significa participação direta no poder de decidir; a igualdade, já não apenas fiscal ou quantitativa, é hoje igualdade na comunidade, na reprodução, na organização da vida; a fraternidade é o espaço concreto de uma ontologia que reúne os elementos constitutivos das lutas. Assim, temos, de um lado, a hipótese reacionária. Por outro lado, um caminho que diz: não se trata mais de tomar o poder, mas de estar no poder, de ter peso e de ser protagonistas da construção política, interromper a dimensão separada do poder de comando e abrir caminho para um projeto comum sobre os grandes temas do trabalho, da ecologia, da vida. Deste ponto de vista, é manifesta a continuidade com a experiência dos Coletes Amarelos. No entanto, ousamos afirmar que a experimentação atual não é a cauda desse ciclo, mas que aproveita seu legado, renovando-o com novas figuras da luta de classes. Até agora, o conflito político generalizado na França encontrou um eixo organizacional na ação sindical e sua energia no apoio maciço dos cidadãos. No entanto, o Executivo parece ter descartado qualquer espaço para negociação. Você deve se perguntar então: o que vai acontecer agora? As estruturas sindicais, as instâncias de movimento, as diferentes formas de representação social e política, serão capazes de construir um órgão de contrapoder unitário, efetivo e constituinte, capaz de acabar com a excepcionalidade do poder?

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