Artur Queiroz*, Luanda
Em Angola tudo é possível e tudo vai acontecer se é que não aconteceu já. Um dia apareceu no Negage o senhor Caras Lindas, nome de verdade, não é alcunha. Chegou encavalitado na carga do camião Tamestrader tripulado pelo camionista Olhos de Cão, nome herdado porque era bóer e tinha olhos clarinhos como o meu cão Rubi, um portentoso Baía dos Tigres. O viajante estava coberto de poeira e só os olhinhos estavam limpos. A barba longa coberta de poeira. O cabelo escondido sob uma capa de pó amarelado. E capengava, sinal trágico de uma paralisia infantil, doença muito em voga nesses tempos.
João Bernardo Pinto Caras Lindas era o nome do viajante que desembarcou em frente ao hotel do meu pai, coberto de poeira na roupa e no corpo, excepto nos olhos. Pediu alimentação e alojamento a crédito, até arranjar casa e montar escritório, pois era solicitador encartado.
O meu papá torceu o nariz mas minha mãe pediu ao Alexandrino, gerente da unidade hoteleira, para o instalar no anexo que tinha quarto, uma divisão onde podia instalar o escritório e casa de banho! Uma hora depois o hóspede apareceu limpinho, barba aparada e bem vestido. Soube mais tarde que na sua maleta tinha duas mudas de roupa, uns livros de poesia e pouco mais. Branco pobre. Apareceu no Negage vindo do Lobito. Sua esposa faleceu e deixou dois filhos ainda crianças. Queria juntar a família, o mais depressa que pudesse. E conseguiu.
O Caras Lindas declamava poemas de Guerra Junqueiro e Gomes Leal. Deste dizia com estremecida emoção “A Duquesa de Brabante” que começava assim: Tem um leque de plumas gloriosas,/na sua mão macia e cintilante,/de anéis de pedras finas preciosas/a Senhora Duquesa de Brabante.
Como solicitador fazia
requerimentos ao governador do distrito no Uíge e ao geral
No dia 15 de Março de 1961 rebentou a Grande Insurreição. Mas a família do Caras Lindas já tinha regressado ao Lobito, nunca soube porquê. O gerente do Costa do Bungo foi a Luanda vender café e levou o seu braço direito. No regresso, o patrão trazia o bornal cheio de dinheiro e o empregado, uma menina espanhola com a qual amigou numa noite de cabaré. Diz quem sabe que eram muito felizes. Mas pouco tempo.
Os guerreiros da UPA atacaram no Lukunga e uma unidade da tropa portuguesa estava cercada. O alferes que comandava as tropas do Bungo pediu voluntários para ir ajudar os colegas. Ninguém se acusou. Mas o Caras Lindas ofereceu-se para a operação de resgate dos cercados. E lá foi capengando. Morreram todos junto à ponte. A senhora espanhola estava grávida e viúva. Um a tragédia.