sábado, 6 de abril de 2024

Angola | Barbaridades e Justiça Premeditada -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O Poder Judicial é a trave metra do regime democrático. Garantia de Justiça para os injustiçados. Defesa dos indefesos. Abrigo dos perseguidos. Onde os Tribunais não funcionam prospera a ditadura. Onde não há separação de poderes a sociedade fica nas mãos do ditador e seus servos de vileza. Ainda há mais. Mas estas razões são suficientes para todos respeitarmos os operadores da Justiça. E confiarmos mesmo quando há abundantes razões para desconfiarmos e não acreditarmos.

As sentenças e acórdãos só são definitivos quando transitam em julgado. Antes vale a presunção de inocência. As sentenças de todas as instâncias são passíveis de recurso. Só o Tribunal Constitucional tem a última palavra. É assim e o resultado dos recursos não representa vitórias nem derrotas, apenas realização da Justiça. 

No ano de 2020, cidadãos angolanos foram julgados e condenados no Tribunal Supremo. Recorreram. Quatro anos depois o Acórdão 883/2024 do Tribunal Constitucional dá provimento ao recurso porque foi violada a legalidade. Violado o princípio do contraditório. O julgamento não foi justo. O direito de defesa foi violado. Assinaram este Acórdão os Juízes Conselheiros Laurinda Cardoso (Presidente), Vitória Izata, Carlos Burity da Silva, Carlos Teixeira, Gilberto Magalhães, João Carlos Paulino, Josefa Neto, Júlia Ferreira, Maria de Fátima Silva e Vitorino Hossi.

O julgamento de Valter Filipe, antigo governador do Banco Nacional de Angola, Jorge Sebastião, José Filomeno dos Santos, que foi responsável do Fundo Soberano, e António Bule Manuel foram vítimas da Violação de princípios da legalidade. Foi-lhes vedado o acesso ao Direito. Roubaram-lhes a presunção de inocência. Não tiveram um processo justo e equitativo. A sentença condenatória teve na base decisões judiciais infundadas. Foram agredidos com a violação do princípio do contraditório.

Os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional lembraram que o número 2 do Artigo 67º da Constituição da República afirma que se presume inocente “todo o cidadão até trânsito julgado da sentença de condenação”. Chegámos à barbaridade de condenações com base em ilegalidades gritantes, inconstitucionalidades e graves violações do direito de defesa.

A ferida é profunda, purulenta, jorra pus fétido e ameaça apodrecer todo o Poder Judicial. Chegou ao processo uma carta do Presidente José Eduardo dos Santos na qual o então Chefe de Estado e Titular do Poder Executivo dava instruções para que se realizasse a operação financeira, que levou ao julgamento dos quatro arguidos. O documento não foi admitido. Se fosse, nem sequer tinha existido julgamento! Aqui está o problema. Falharam rotundamente os titulares da investigação e acção penal. Nada de novo.

Valter Filipe, governador do Banco Nacional de Angola, ao ser envolvido neste processo, foi vítima de um assassinato de caracter. Riscado do mapa. No exigente mundo financeiro ninguém mais lhe confia seja o que for. Destruíram um alto quadro num país que tem pouquíssimos. José Filomeno dos Santos sofreu ainda mais. Nem o deixaram ir a Barcelona dar um beijo de despedida ao pai, Presidente José Eduardo. Porque o consideravam um criminoso perigoso! Os outros dois arguidos sofreram as mesmas barbaridades. Quando não há separação de podres o resultado é a barbárie. Quando Miala e Pita Grós mandam no Poder Judicial o resultado é uma catástrofe. João Lourenço dita as ordens. Eis a ferida e a podridão.

Pita Grós, ainda o processo de Carlos São Vicente estava na fase de investigação, em segredo de justiça, disse aos jornalistas: “No processo há provas abundantes que vão dar uma condenação!” Em vez de ser demitido, continua no cargo depois do próprio ter anunciado que ia embora. 

No processo de Carlos São Vicente o Tribunal recusou-se ouvir os testemunhos do Presidente José Eduardo dos Santos e do antigo Presidente do Conselho de Administração da SONANGOL, Manuel Vicente. Se os magistrados judiciais não tivessem violado o direito de defesa, não havia condenação. Se quem investigou tivesse ouvido duas testemunhas chave, nem sequer havia julgamento. Mas como o nosso Mobutu quer sangue, a criadagem dá-lhe julgamentos onde reina a ilegalidade.

No processo de Carlos São Vicente não era necessária uma carta do anterior Presidente José Eduardo. Bastava que tivessem consultado o Decreto número 39/2001 de 22 de Junho, Regulamento das Atividades de Gestão de Riscos das Operações Petrolíferas. A Estratégia, desenhada por Carlos São Vicente, foi aprovada pela SONANGOL EP, pelo Presidente da República e convertida em lei pelo Conselho de Ministros. 

O Código Penal de 2020 não é aplicável no julgamento de Carlos São Vicente, uma vez que a aquisição e pagamento de acções da AAA Seguros SA aconteceram entre 2001 e 2004. Deixou a SONANGOL em 2002 ainda que só em 2005 o processo tenha sido oficializado. O novo Código Penal entrou em vigor após a publicação da Lei número 38/2020 de 11 de Novembro e foi aplicada no julgamento de 9 de Fevereiro de 2021. Foi violado gravemente o princípio da Não Retroatividade do Direito Penal (Artigo 65.º, números 2 e 4 da Constituição da República). 

Carlos São Vicente foi condenado pelo crime de Lavagem de Dinheiro. Efeito Miala e ordens superiores. Porque não existe precedente de crime principal e, mesmo que houvesse, teria prescrito (crime de peculato) ou foi amnistiado (crime de fraude fiscal). Barbaridades à Mobutu. Um cidadão é condenado por crimes que prescreveram ou foram amnistiados. Miala pensa que isso de amnistia e prescrição é sopa e almoço. Carlos São Vicente não podia ser acusado e condenado por tais crimes. Esta é a ferida putrefacta.

O Tribunal da Relação de Luanda e o Supremo Tribunal mantiveram a condenação por crimes amnistiados pela Lei nº. 11/2016, 12 de Setembro. De 2016 até hoje, a ENSA é líder dos quatro regimes de cosseguro (petróleo, aviação, diamantes e agricultura). Um verdadeiro monopólio mas todos fingem que não percebem. Alguém prendeu o PCA da ENSA? Alguém lhe congelou as contas? Alguém lhe confiscou os bens? Então expliquem por que prenderam Carlos São Vicente e lhe roubaram tudo.

A SONANGOL entrou no capital do Banco Comercial Português. Até que a administração de Manuel Vicente decidiu sair do negócio. E depois de assumir o compromisso de ir a um aumento de capital, recuou. Causou graves problemas ao banco. A posição accionista da petrolífera nacional encolheu. Várias administrações da SONANGOL recusaram participar no aumento de capital da AAA Seguros SA. A posição accionista encolheu até aos dez por cento. Se há crime nisto, então procurem os criminosos entre os gestores da petrolífera nacional. 

Mais grave ainda. A administração da SONANGOL saiu do Fundo de Pensões da AAA Seguros causando gravíssimos problemas à seguradora e ao sistema financeiro angolano. Ninguém foi acusado ou condenado. Meteram na prisão um inocente. E lá continua, apesar do relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU que considera a sua prisão ilegal e que o julgamento foi um festival de ilegalidades.

Mudam-se os tempos, mudam-se os á vontades. No recurso de Carlos São Vicente para o tribunal Constitucional, as condenações foram confirmadas e foram cometidas as mesmas irregularidades processuais, as mesmas violações, as mesmas barbaridades agora reconhecidas pelo mesmo Tribunal Constitucional no processo de Valter Filipe, Jorge Sebastião, José Filomeno dos Santos e António Bule Manuel.

* Jornalista

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