domingo, 2 de junho de 2024

O «Partido colonial» francês ainda não digeriu a perda do seu Império

Thierry Meyssan*

Contrariamente a uma ideia feita, os Franceses nunca foram partidários da colonização, mas um grupo de pressão, auto-proclamado «Partido Colonial», conseguiu utilizar o seu Exército para se lançar à conquista de oportunidades económicas. Este grupo de pressão, ressuscitado pelos Presidentes Valéry Giscard d’Estaing, François Hollande, Nicolas Sarkozy e Emmanuel Macron, definiu os elementos da actual crise na Mayotte e na Nova Caledónia. Se a política que impuseram continuar, as populações destes territórios serão forçadas à guerra para recuperar a sua dignidade, como foi o caso da Indochina e da Argélia.

A revolta canaque na Nova Caledónia e a insegurança crescente na Mayotte põem em evidência as dificuldades da França com o seu antigo Império.

AS DUAS FRANÇAS E A COLONIZAÇÃO

Para compreender o que se passa, é preciso ter em mente que a colonização francesa não tem nenhuma semelhança com as formas de colonização do Reino Unido, de Portugal, da Espanha ou dos Países Baixos. O ideal republicano, que é o da França desde o século XVII (Henrique IV foi o primeiro monarca a declarar-se republicano), interditava-a de colonizar exclusivamente para enriquecer. Todos os arautos franceses do colonialismo pretendiam estar « a fazer uma obra civilizacional ». Por “república” entendo o facto de se governar no interesse geral e não no de uma casta ou de uma classe social.

Do século XVI ao XIX, a maior parte dos povos colonizados não dispunha da educação dos Europeus nem das suas técnicas. Alguns desejavam colmatar este fosso, outros, pelo contrário, pensavam em explorá-la. Ao longo da epopeia colonial, duas correntes enfrentaram-se em França, uma pela emancipação, a outra pela colonização. Esta batalha interna teve a sua grande expressão no debate parlamentar opondo o socialista Jules Ferry ao radical republicano Georges Clemenceau, em 31 de Julho de 1885, na Assembleia Nacional.

Vejamos por um instante o discurso de Georges Clemenceau:

« As raças superiores têm sobre as raças inferiores um direito que devem exercer, e este direito, por uma transformação particular, é ao mesmo tempo um dever de civilização ».

Eis os termos próprios da tese do Sr. Jules Ferry e vemos o governo francês exercer o seu direito sobre as raças inferiores, indo guerrear contra elas e convertê-las pela força aos benefícios da civilização. Raças superiores! Raças inferiores, está quase dito! Pela minha parte, desconfio de forma clara disso desde que vi cientistas alemães demonstrando cientificamente que a França devia ser vencida na guerra franco-alemã [1870] porque o Francês é uma raça inferior ao Alemão. Desde então, admito, penso duas vezes antes de me voltar para um homem e para uma civilização e de pronunciar : homem ou civilizações inferiores (…) Raça inferior, os Chineses! com essa civilização cujas origens são desconhecidas e que parece ter sido levada, antes de mais, aos seus limites extremos. Inferior, Confúcio ! Na verdade [...] podemos ver ali documentos que provam seguramente que a raça amarela [...] não é em nada inferior [à dos europeus].

De um ponto de vista económico, a colonização francesa visava encontrar mercados para exportar a produção industrial, enquanto a colonização britânica visava, pelo contrário, encontrar fontes de matérias primas e em utilizá-las ao serviço da indústria do Reino Unido.

De um ponto de vista filosófico, a colonização francesa foi justificada pela teoria das raças e da sua hierarquia. Mas estava claro desde o início que nenhum Francês podia acreditar nisso. Este argumento destinado exclusivamente à comunicação política. Além disso, ao contrário de outros povos coloniais, os Franceses sempre tentaram compreender a civilização dos países onde se estabeleciam e de se misturar com outros povos. Ao contrário, os Britânicos criavam clubes exclusivos para si próprios nas suas colónias, enquanto os Alemães proibiam os «casamentos inter-raciais» (1905).

Depois da Guerra Franco-Prussiana de 1870, os nacionalistas sonhavam libertar a Alsácia-Mosela: Assim, durante 48 anos, cobriram com um crepe negro a estátua que adorna a Place de la Concorde. Pelo contrário, os partidários da colonização pretendiam desviar os exércitos da sua missão de defesa da nação e transformá-los em «forças de projeção», capazes de conquistar horizontes distantes.

É por isso que hoje é injusto julgar a colonização francesa como um todo, que seria bom ou mau em si mesmo, porque por toda a parte as duas correntes deixaram as suas marcas. Lembro-me com emoção do Presidente da Assembleia Popular Síria que me mostrou os edifícios da sua instituição. Primeiro, explicou-me que eles tinham sido bombardeados duas vezes pelo «Partido Colonial» francês. A primeira, em 1920, para impor o mandato da SDN (Sociedade das Nações-ndT), a segunda em 1945, quando a Síria era já independente há quatro anos e participava na criação das Nações Unidas. Depois de nos curvarmos perante o memorial dos mortos do Parlamento, o Presidente contou-me a história do julgamento de um líder revolucionário que apelava à expulsão do ocupante francês. Perante o tribunal militar, o seu advogado defendeu que este Sírio mais não havia feito que o seu dever patriótico, em plena conformidade com o ideal da República Francesa. Os jurados, escolhidos ao acaso entre os soldados franceses, decidiram por unanimidade libertá-lo. Ao que os generais responderam transferindo-os para outras colónias e colocando-os na linha da frente, na esperança de que caíssem no campo de batalha. O Presidente da Assembleia partilhou então comigo o seu pensamento : em última análise, muitos de nós morreram, vítimas do «Partido Colonial», mas vocês em França também pagaram o preço pelo mesmo ideal que nos anima a ambos. Em muitos aspectos, a colonização francesa é um horror, mas não era a vontade da França, uma vez que não apenas um, mas todos os jurados que ele citou, fizeram causa comum com os revolucionários sírios, e que o bombardeamento de 1945 foi uma iniciativa do General Oliva-Roget à revelia do governo provisório de Charles De Gaulle que o demitirá de imediato.

No entanto, quando a descolonização chegou, os militares franceses que acabavam de libertar o seu país da ocupação nazi decidiram prolongar o sonho imperial. O bombardeamento de Damasco anuncia os massacres de Haiphong (Indochina) e Setif (Argélia). Então eles travaram guerras atrozes pela grandeza do Império. Estes homens estavam convencidos que não deviam abandonar os povos conquistados e parcialmente integrados na República. O seu compromisso nada tinha a ver com partidos políticos, alguns eram de direita, outros de esquerda. Simplesmente eram incapazes de ver pelo ponto de vista dos povos colonizados.

A NOVA CALEDÓNIA

Este bloqueio intelectual manifesta-se hoje ainda a propósito da Nova Caledónia e da Mayotte. Muitos franceses são incapazes de considerar os fundamentos das independências. O «Partido Colonial» – que jamais foi um partido político, mas sim um lóbi transpartidário– está ainda em acção. Para convencer os indecisos, basta-lhe esconder certas peças do puzzle. Mas, em geral, logo que são informados, os Franceses tomam posição pelas independências e apresentam desculpas por até aí não as ter apoiado.

Os Franceses têm uma vaga lembrança do referendo nacional de 1988, que aprovou os Acordos de Matignon. Eles sabem que um processo de descolonização tinha começado na Nova Caledónia e que, em trinta anos, os Canaques descolonizados poderiam decidir, entre permanecer na República, ou em tornar-se independentes. A ideia de que os povos colonizados, uma vez instruídos, podiam integrar-se em plena igualdade no seio da República ainda apareceu no texto da Constituição até 1995, sob o nome de «Comunidade Francesa» (Título XII).

Os Franceses não compreendem por que é que um repentino surto de violência custou a vida a cerca de dez pessoas e provocou mil milhões de euros de prejuízos.

A imprensa continua a jogar aqui um papel propagandista mascarando muita informação. Certo, através de três referendos locais sucessivos, os Neo-Caledónios rejeitaram a independência. O último (2021) rejeitou-a pela esmagadora maioria de 96,5%. Certo, os independentistas boicotaram massivamente esta consulta, mas acontece, dizem-nos, porque estavam seguros de perder. Nem por isso ! Eles pediram o adiamento do escrutínio primeiro por um ano, depois num espírito de compromisso, apenas por dois meses. O arquipélago estava assolado pela Covid 19. Muita pessoas idosas tinha morrido. Na cultura Canaque, é requerido um ano de luto após cada morte. Era pois impossível aos independentistas levarem a cabo uma campanha eleitoral nesse período, tal como era impossível ao seu povo, durante este luto, decidir sobre a independência dentro ou fora da República. Em última análise, propuseram reduzir o adiamento da votação em dois meses a fim de poderem realizar os seus ritos fúnebres. A recusa pelo Presidente Emmanuel Macron de qualquer acordo foi tida como uma recusa da sua cultura. Não apenas os independentistas boicotaram, pois, este referendo, mas com eles quase todos os Canaques. Não era uma questão política, mas sim cultural. O respeito e a confiança que tinham sido forjados ao longo de trinta anos foram varridos em três anos.

Como se isso não bastasse, o processo do Acordo de Matignon previa uma transferência irreversível de certas competências de Paris para Nouméa. Além disso, no fim do processo de descolonização e dos três referendos locais, o eleitorado da Nova Caledónia seria alargado às pessoas que se haviam estabelecido no território após 1988. Os partidários da união à República, ou para ser mais claro, os partidários da colonização, fizeram um forcing para levar a cabo o mais rápido possível esse reajustamento. Assim, demograficamente, os Canaques tornaram-se de facto minoritários na sua própria terra. Os « lealistas » (sic) organizaram diversas manifestações às quais os Canaques responderam com contra-manifestações reunindo duas vezes mais gente. O Presidente Emmanuel Macron incluiu então na agenda da Assembleia Nacional e do Senado a convocação de duas assembleias em Congresso (reunião de deputados e senadores numa única assembleia- ndT) para inscrever na Constituição uma nova definição do corpo eleitoral da Nova Caledónia. Foi isso que chegou fogo à pólvora.

Os « lealistas » e o Presidente Emmanuel Macron são, pois, os únicos responsáveis da paragem do processo de descolonização e dos motins que se seguiram. A viagem relâmpago do Presidente Macron à Nova Caledónia nada trouxe de novo. Pelo contrário, confirmou, pela sua ausência de propostas, que ele irá continuar a não escutar os Canaques e a desprezar a sua cultura. É, pois, certo que a situação nos três próximos anos apenas irá agravar-se. É pouco provável que o sucessor de Emmanuel Macron consiga reparar os seus danos. Todos os Estados vizinhos consideram que a Nova Caledónia conquistará a sua independência pela força. Assim para proteger os seus cidadãos da violência da revolução que acaba de começar, eles começaram a repatriá-los.

A principal fonte de riqueza da Nova Caledónia é a exploração de níquel. O que é dividido entre duas empresas, SLN e Prony Resources. Elas têm uma organização à inglesa que permite mascarar a identidade dos seus accionistas. Antes do Acordo Matignon (1988), o sector era inteiramente controlado pelos Rothschild, antigos patrões de Emmanuel Macron.

MAYOTTE

O caso da Mayotte é muito diferente, na medida em que não há movimento independentista, mas sim um desejo por parte das Comores de refazer a sua unidade, tal como a França refizera a sua, recuperando a Alsácia e Mosela. Este ponto, indiquei acima, não era desejado pelos partidários da colonização.

Em 1973, a França negociou um acordo com o Presidente do governo do território, Ahmed Abdallah Abderamane. Foi assinado pelo Ministro do Ultramar, o centrista Bernard Stasi. Paris comprometeu-se a organizar um referendo sobre a independência em todo o arquipélago e a não o dividir.

As Comores votaram de forma esmagadora pela independência, à excepção da ilha de Mayotte. Os partidários da colonização argumentaram então que o Artigo 53 da Constituição de 1958 especifica que « Nenhuma cessão, nenhuma troca, nenhuma adição de território é válida sem o consentimento das populações interessadas». Ora, a Mayotte foi comprada pela França antes do resto do arquipélago e a lei do referendo especificava que Paris aplicaria a vontade «das populações» e não da «população». O Presidente Valéry Giscard d’Estaing, que tinha sido partidário da Argélia Francesa, decidiu separar a Mayotte do arquipélago. A União das Comores entrou nas Nações Unidas sem a Mayotte. À época, quase todos os Estados-membros da ONU se indignaram com o desrespeito da França pelo seu compromisso escrito de 1973.

Posteriormente, o «Partido Colonial», que não havia digerido esta independência mais do que as outras, tentará recuperar o controlo do resto do arquipélago. As duas correntes que se haviam confrontado a propósito da colonização enfrentaram-se de novo. Mas desde o fim da guerra e após a independência da Argélia, o «Partido Colonial» já não podia contar com o Exército. Portanto, apoiou-se num antigo soldado que se passara para o sector privado, o «mercenário» Bob Denard. No fim, em 2009, o Presidente Nicolas Sarkozy transformou Mayotte num Departamento, tal como fora o caso da Argélia antes da independência.

Hoje em dia, o afluxo de Comorianos à Mayotte está a causar violência generalizada, embora não haja violência na União das Comores. De um ponto de vista francês, estes migrantes são ilegais, mas do ponto de vista comoriano, são os franceses no local que são ilegais. Em 2023, o Ministro do Interior, Gérard Darmanin, destacou 1. 800 policias, no quadro da Operação Wuambushu (retoma do controlo). O que é um pouco mais do que hoje na Nova Caledónia. No entretanto gritava-se em grandes manifestações em Moroni : «Não à França», «Não à presença francesa na Mayotte».

A Mayotte é necessária ao Exército francês. Lá, ele estaciona uma unidade da Legião Estrangeira que… controla as Ilhas Gloriosas (elas próprias território de Madagáscar ilegalmente ocupado pela França). Sobretudo, ele tem lá um centro de interceptação eletromagnética conectado à rede “Échelon”, dos «Cinco Olhos» (Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Reino Unido).

É por isso que os Estados que são alvo da espionagem ocidental apoiam já a adesão da Mayotte à União das Comores. É o caso, nomeadamente, da Rússia e da China.

Conclusão

Certos territórios e departamentos do Ultramar não foram alvo de colonização. Por exemplo, a ilha da Reunião estava deserta antes de se tornar propriedade da França. Outros, como a Guadalupe e a Martinica, foram colonizados e depois descolonizados. Portanto, a França pode de pleno Direito mantê-los, enquanto as populações autóctones o aceitem. No entanto, ela deve ter em mente que o abandono das populações locais irá levá-las a exigir a independência. Foi o que se passou na Nova Caledónia.

Noutros casos, como na Mayotte, a França quebrou a sua palavra ao dividir as Comores. Seja qual for o rumo dos acontecimentos, ela já não está em casa e terá um dia de restituir esta ilha ao arquipélago do qual a privou.

Thierry Meyssan* | Voltairenet.org | Tradução Alva

* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II.
Manipulación y desinformación en los medios de comunicación
 (Monte Ávila Editores, 2008)

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