domingo, 22 de dezembro de 2024

MÃOS AO ALTO PELO NATAL (parte de uma quadra inventada)

João Oliveira* | Diário de Notícias | opinião

1 - Convencera o filho de que a vida seria melhor. Mudariam de país e deixariam tudo o que conheciam, mas teriam uma vida nova que lhes daria aquilo que, de outra forma, seria impossível ter.

Revelou-se mais difícil do que pensava. Trabalhava sem descanso e tentava enxertar no horário o tratamento da burocracia que ainda restava por resolver. Pensava no filho, nas promessas que lhe fizera e na alegria que lhe via agora nos olhos. Lá continuava a insistir em organizar a vida.

2 - Agora ali estava, de pernas abertas e mãos ao alto, encostado a uma parede. De uma ponta à outra da rua, gente na mesma situação. A polícia vigilante. Os moradores, sobressaltados, filmando à janela com os telemóveis. Às escondidas, não fosse isso metê-los em problemas.

Perguntou o que tinha feito. Responderam-lhe que fizesse o que lhe diziam para que não houvesse problemas.

Cumpriu a ordem, mas insistiu nas perguntas. Que mal tinha feito? Porque o obrigavam a encostar-se à parede? Porque o revistavam? Responderam-lhe que também a polícia cumpria ordens. Fazendo o que lhe diziam, não haveria problemas. Se não tinha feito nada de mal, nada tinha a temer.

Insistiu que só ali estava de passagem, que apenas procurava ajuda de um amigo, que ia arranjar problemas por se atrasar no regresso ao trabalho. Responderam-lhe que podia não ser nada com ele e insistiram que, se fizesse o que lhe diziam, tudo havia de se resolver rapidamente.

3 - As notícias sucediam-se. Somavam-se as explicações, as justificações, as opiniões especializadas.

Repetiam-se, em ciclo, as imagens dos acontecimentos. E lá estava ele, demasiado longe para poder ser memorizado por quem nunca o tinha visto antes, mas suficientemente perto para ser reconhecido por quem o conhecia bem.

Essa noite não se ligou a televisão em casa. Ouviu, demoradamente, o filho fazendo o relato das aventuras com os novos amigos portugueses e das brincadeiras que, juntos, faziam na escola. Quis saber de todos os pormenores de cada história e da forma como contornavam as dificuldades quando as palavras de português que aprendera não lhe chegavam ainda para se entenderem plenamente.

Fez o filho acreditar que também ele tinha tido um dia bom, ainda que não tão entusiasmante.

4 - Dias depois, apareceu-lhe pela frente uma mensagem de Natal de um político com grandes responsabilidades.

Registou partes que lhe pareciam importantes pelo tom em que eram ditas. Solidariedade. Fraternidade. Justiça. Segurança.

As palavras e o tom em que eram ditas não se entrelaçavam com a realidade, nem com os seus sentimentos.

Ecoavam-lhe na cabeça memórias de uns dias antes. Mulheres grávidas sem serviços hospitalares. Imigrantes com acesso mais apertado aos serviços de saúde. O sentimento de segurança criado com a humilhação e o abuso que, a custo, havia conseguido ocultar aos olhos do filho.

Aquietou-se com a ideia de que a discrepância era irrelevante.

Afinal, tinham-lhe dado ordem de pôr as mãos ao alto pelo Natal.

* Eurodeputado do PCP eleito na lista da CDU

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