JOÃO MANUEL ROCHA – Público –
foto SEYLLOU/AFP
Liga Guineense dos
Direitos Humanos considera que Estado e cidadãos estão “reféns” das Forças
Armadas. E que com o golpe do ano passado o país foi empurrado para a sua
"fase mais obscura" desde a liberalização política.
A Guiné-Bissau
tornou-se um país onde “o pânico e o terror caminham de braços dados” e a
população vive “entrincheirada” no receio de “novas violências”. A sociedade
guineense vive num “clima de insegura e amargurada impotência e refém de uma
classe política e castrense dividida, imprevisível e violenta”.
O quadro é traçado
pela Liga Guineense dos Direitos Humanos no seu relatório bienal, apresentado
esta quinta-feira em Bissau. É o primeiro retrato que a organização faz do país
desde o golpe de Estado de Abril do ano passado. Mostra uma Guiné em que “os
cidadãos e o Estado” estão “reféns de uma estrutura armada obsoleta, repressora
e violenta” – as Forças Armadas.
No período que
decorreu desde a apresentação do anterior relatório, o país sofreu duas alegadas
tentativas de golpe, em Abril de 2010 e em Dezembro de 2011, e o golpe
consumado de 12 de Abril, antes da segunda volta das eleições presidenciais.
Foi um tempo “marcado mais uma vez pelos assassinatos de índole política como
consequência da crónica instabilidade”.
São historiados
episódios de violência, assassinatos e detenções arbitrárias, quer antes quer
depois do golpe que afastou o Governo de Carlos Gomes Júnior, num contexto de
“impunidade generalizada” e de “abuso de poder” por militares. Os “desmandos”
levam a Liga a considerar as Forças Armadas como a “principal ameaça à paz e
estabilidade”.
O golpe de 12 de
Abril, “expressão máxima da intriga política e da tutela militar sobre o poder
político”, “empurrou o país para a fase mais obscura e de imposição de terror
da sua existência enquanto Estado após a liberalização política” iniciada com
as eleições multipartidárias, em 1994. “Instalou-se no país um clima de
autêntica afronta aos direitos humanos”, denuncia a Liga. O tráfico de droga,
que se tornou marca da Guiné, “aumentou significativamente atingindo proporções
alarmantes”.
Para os defensores
dos direitos humanos, o golpe, liderado pelo chefe de Estado Maior, António
Indjai, “traduziu-se no maior retrocesso social dos últimos anos”. Levou a que
se tivesse instalado um “clima de autêntica afronta aos direitos humanos e de
ameaças sérias à consolidação da paz e do Estado de direito”.
A situação
“agravou-se ainda mais” com o anúncio de um “suposto ataque” de militares a uma
unidade de elite, os pára-comandos, a 21 de Outubro, que provocou a morte de
seis pessoas. Esse episódio “serviu como pretexto para as autoridades militares
e os seus comparsas políticos desencadearem acções de execuções extrajudiciais,
detenções ilegais, espancamentos e torturas dos cidadãos e adversários
políticos com o objectivo de silenciar as vozes críticas”. Dois políticos
anti-golpe, Iancuba Indjai e Silvestre Alves, foram raptados e brutalmente
espancados. Cinco civis e militares, acusados de participação no alegado ataque,
foram assassinados. A Liga diz ter informações, “de fontes fidedignas”, de que
os seus dirigentes, particularmente o presidente, Luís Vaz Martins, constam de
uma “lista negra”.
Medo e impunidade
“Vive-se um clima de tensão, de medo generalizado, de terrorismo do Estado
contra os seus próprios cidadãos”. O relatório denuncia alterações ao nível dos
comportamentos. “As pessoas, que outrora defendiam de forma intransigente e
imparcial os direitos cívicos, estão relegadas ao silêncio, pois paira sobre
elas a ameaça, por parte de um esquadrão de morte e tortura, [de] acabarem
inutilizadas por causa dos espancamentos desumanos ou acabarem na morgue”.
As forças da CEDEAO
(Comunidade Económica de Estados da África Ocidental), um efectivo de mais de
600 militares instalados em Bissau após o golpe, “não protegem ninguém a não
ser os golpistas”, denuncia a Liga.
O estado a que a
Guiné-Bissau chegou tem raízes profundas. A Liga considera que a “impunidade
foi institucionalizada” desde o conflito político-militar de 1998, como prova o
facto de “os autores morais e materiais das sucessivas convulsões políticas e
militares”, que na maior parte dos casos culminaram com perda de vidas,
continuarem impunes. Exemplo disso são os casos dos assassinatos do Presidente
da República, João Bernardo Vieira, e do chefe de Estado Maior, Baptista Tagme
Na Waie, em Março de 2009.
“A corrida
desenfreada ao poder, o enriquecimento ilícito decorrente do tráfico de drogas,
a não subordinação das forças armadas ao poder político e consequentes
atentados recorrentes à ordem constitucional criaram bases para a anarquia e
desordem que têm desestruturado claramente os alicerces do Estado”, denuncia a
Liga.
Tornaram-se comuns
as “sucessivas interferências” dos militares que, “aliadas ao clientelismo, à
corrupção e à impunidade foram e continuam a ser obstáculos à consolidação das
instituições”, agravaram o clima de segurança e fizeram fracassar
substancialmente os esforços internacionais para a estabilização”.
O “contrabando de
estupefacientes”, que, segundo diferentes denúncias, incluindo das Nações
Unidas, se generalizou “com o cunho e protecção de alguns efectivos ao mais
alto nível das Forças de Defesa e Segurança” é considerado o “principal factor
da instabilidade política”. As ligações entre “certos elementos das forças
armadas e as redes de tráfico de droga, servem de mecanismos adicionais pelos
quais oficiais superiores têm vindo a consolidar o seu poder”.
Os problemas que
preocupam a organização de direitos humanos vão além do campo político-militar.
Os indicadores “alarmantes” na saúde, educação e justiça no país africano de
1,5 milhões de habitantes são analisados detalhadamente. Bem como os efeitos da
“inoperância” das autoridades face a situações como a mutilação genital
feminina, o casamento precoce, a violência sexual e doméstica, o tráfico de
seres humanos ou o desrespeito dos direitos das crianças.
Para a Liga, “a
única saída” para a quebrar o “ciclo vicioso” da instabilidade e das “violações
sistemáticas” de direitos humanos passa por “reformas sérias” nas forças
armadas.
Carmelita Pires, ministra
da Justiça da Guiné-Bissau entre 2007 e 2009, membro da Liga Guineense dos
Direitos Humanos, disse ao PÚBLICO que o relatório procura identificar os
“entraves ao funcionamento das instituições democráticas”. Questionada sobre o
tipo de reacção que a organização espera do actual poder em Bissau disse:
“Espero que não suscite outra que não seja a de considerar o relatório um
elemento de protecção dos direitos humanos, que sirva de motivação para a
comunidade internacional e para o próprio Estado da Guiné nesta fase de
transição e no período de normalização da vida democrática”.
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