Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
No discurso do 10
de junho, o Presidente da República concentrou a sua intervenção no "pós-troika".
Já aqui disse o que pensava sobre o assunto: discutir o que fazer depois
ignorando o que se está a fazer agora é uma forma habilidosa de demissão das
responsabilidades políticas de cada um. O futuro de Portugal está a decidir-se
agora e não é indiferente ao que se possa fazer no futuro os erros que, numa
altura tão sensível, sejam agora cometidos.
Cavaco Silva
concentrou grande parte da sua intervenção na agricultura. A agricultura é um
excelente tema para discutir o futuro próximo e o passado recente de Portugal.
Porque foi nela que sentiu de forma mais violenta os erros cometidos na
integração europeia - de que Cavaco Silva foi apenas o estreante que deu o mote
para os governos seguintes -, a função cumprida pelos fundos estruturais, a
cegueira do poder político e do modelo de desenvolvimento em que apostou, os
efeitos do mercado único europeu para os países periféricos e os efeitos devastadores
do euro na nossa economia. E é também o melhor exemplo de como sair desta crise,
já que tem como principal característica a fraca incorporação, para a produção,
de bens importados. Recordo que as exportações nacionais incorporam, em média,
40% de importações. Na agricultura e nos sectores ligados à floresta incorporam
apenas 27%. Diria mesmo, apesar de não ser esse o tema desta crónica, que seria
o sector que mais ganharia com o fim do euro ou a saída de Portugal da moeda
única.
Mas o que Cavaco
Silva queria era "contrariar algumas ideias feitas". E percebemos
imediatamente ao que vinha. É ao que vem sempre: defender-se de críticas, falar
dele próprio fingindo que fala do País. É sabido que uma das maiores críticas
que se faz ao legado cavaquista é exatamente no sector da agricultura e pescas,
cujo peso na economia era visto, na altura, como sinal de um país atrasado. E
Cavaco quis pintar um retrato diferente. Escolhendo cirurgicamente os números
que o poderiam socorrer e os indicadores que pudessem contrariar o que se nota
à vista desarmada.
Concentro-me nos
dados que nos são exibidos pelo recente estudo "25 anos de Portugal Europeu" (cuja leitura aconselho),
do insuspeito Augusto Mateus e da ainda mais insuspeita Fundação Francisco
Manuel dos Santos. Aí, pode observar-se que, ao contrário do que aconteceu
noutros sectores, este foi o único cuja produtividade divergiu em relação à
média comunitária. Entre 1986 e 2008 o Valor Acrescentado Bruto gerado pelo
sector primário passou de 10% para 2%. Portugal passou de 7º para 12º lugar na
representatividade económica do sector (agricultura, silvicultura e pescas).
Houve uma queda do volume de mão obra usada (que Cavaco quis traduzir numa
maior competitividade que não se verificou) para metade. Entre 1989 e 2009 o
número de explorações agrícolas caiu 50%. Muito bem, ficaram maiores. Mas a
superfície agrícola utilizada também caiu 9%. A capacidade da frota pesqueira
caiu para metade e desapareceram quatro quintos das embarcações de pesca sem
motor.
Entre 1986 e 2008,
o aumento real da produção agrícola ficou abaixo dos 25% e na pesca caiu 7%.
Portugal manteve-se a meio da tabela europeia no crescimento de produção
alimentar mas agravou bastante a taxa de cobertura das importações pelas
exportações de bens alimentares. Ela era de 43% em 1990 e passou para os 32% em
2010. Na Europa dos 27, só o Reino Unido está pior. Em 1986 importávamos 35% do
que comíamos. Em 2007, importamos 50%. Porque, com as alterações do consumo,
passamos a consumir coisas que não produzíamos? Não. Porque passamos a importar
produtos em que éramos praticamente autossuficientes: hortaliça, fruta, carne e
leite. E em 2007, Portugal importava mais de quatro quintos do peixe,
oleaginosas e cereais que consumia.
Sim, o tema da
agricultura é excelente para discutir porque aceitámos ser financiados para não
produzir, numa visão distorcida do que deveria ser a modernização deste sector.
Sim, é excelente para falarmos do que foi o desastroso ordenamento do
território, a destruição do mundo rural e a desertificação do interior. Sim, é
excelente para provar o crónico desequilíbrio de poderes na União Europeia, de
que a PAC é apenas um dos exemplos mais escandalosos. Sim, é excelente para
discutir os efeitos de uma moeda forte, que torna a importação mais
interessante do que a produção para exportar e que arrasou com a
competitividade externa de um País que ainda tinha de fazer muito para viver
num mercado aberto. Sim, é um excelente tópico para discutir os efeitos que a
nossa permanência no euro, nas atuais circunstâncias, terá para a nossa
economia. E para determinarmos quais são os sectores onde temos de apostar.
A agricultura só
não é um bom tema para Cavaco Silva puxar dos galões dos seus 10 anos de tempo,
oportunidades e dinheiro perdidos. Não foi, longe disso, o único responsável
pelos números que aqui deixei. Mas foi o primeiro a ignorar a insustentabilidade
de um País que desistia de produzir bens transacionáveis. Que se entregava a
uma insuportável dependência alimentar. Que se virava quase exclusivamente para
os serviços (muitos deles sem acrescentarem valor ao que era produzido) e para
a construção em obras públicas (que, sendo precisa, foi muito para além das
nossas necessidades quando o dinheiro que chegava em barda nos permitiria
desenvolver as nossas atividades produtivas) e na habitação (que, através do
financiamento público aos pedidos de empréstimos para compra de casa por jovens
e ao absoluto desprezo pelo mercado de arrendamento e a reabilitação, contribui
de forma decisiva para o endividamento privado). Foi o primeiro, mas não o
único, a ter uma posição acrítica das políticas europeias, que ainda hoje
domina a vida política portuguesa. A resumir toda a discussão do papel de
Portugal na Europa aos montantes dos fundos estruturais que se encarregou de
estourar como se não houvesse amanhã.
Com habilidades
estatísticas, Cavaco Silva quis que nos esquecêssemos das suas
responsabilidades políticas. De como o que diz hoje é em tudo o oposto do que
fez ontem. Escolheu mal o tema. O que aconteceu à nossa agricultura é o melhor
retrato de todos os erros que cometemos na nossa integração europeia. E Cavaco
Silva, que teve uma década para fazer as escolhas certas, o seu principal
protagonista.
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