Ana Paula Azevedo e Felícia Cabrita - Sol
O Ministério da
Justiça de Timor-Leste decidiu cessar as comissões de serviços de dois juízes
portugueses que desempenham funções no Tribunal Superior e que são acusados de
terem sido permeáveis a pressões para condenar e prender uma antiga ministra
daquele país. Mas a situação está num impasse, uma vez que o Conselho Superior
de Justiça de Timor quer renovar os contratos aos dois magistrados.
Este é mais um
episódio de uma guerra envolvendo os juízes portugueses em Timor, que se
arrasta desde o início do ano, tendo no centro a conduta dos referidos
magistrados, Rui Penha e Cid Geraldo, denunciada aos conselhos superiores da
magistratura (CSM) português e timorense. Em Portugal, o CSM tem em curso há
vários meses uma averiguação disciplinar, segundo informação que confirmou ao SOL.
Em causa está a
actuação daqueles magistrados no processo em que é arguida Lúcia Lobato,
ex-ministra da Justiça de um anterior Governo de Xanana Gusmão, condenada em
Junho de 2012, no Tribunal Distrital de Díli, a cinco anos de prisão, por crime
de participação económica em negócio, no âmbito de uma compra de fardas para a
guarda prisional. A arguida recorreu da condenação para o Tribunal de Recurso -
onde um colectivo integrado por Cid Geraldo e outros dois juízes, Guilhermino
da Silva e Deolindo dos Santos, manteve a condenação.
A defesa de Lúcia
Lobato interpôs então um recurso, invocando inconstitucionalidades - recurso
que veio a ser apreciado e indeferido pelos mesmos juízes, quando deveria ter
sido convocado outro colectivo. Sem que tivesse passado o prazo do recurso,
foram emitidos mandados de captura e a ex-ministra presa de imediato, a 22 de
Janeiro deste ano.
'Erros técnicos
graves’ e 'independência em causa'
Lúcia Lobato
avançou então com um habeas corpus, alegando prisão ilegal - que foi apreciado
e indeferido por um colectivo composto pelos juízes José Luís Goia (português),
Natércia Gusmão Pereira e Cláudio Ximenes (português). Este, que é também
presidente do Tribunal de Recurso, votou vencido, invocando que a prisão da
ex-ministra é ilegal precisamente por lhe ter sido negada a apreciação das
eventuais inconstitucionalidades por um colectivo diferente.
A meio do folhetim,
Margarida Veloso, uma juíza-desembargadora portuguesa que esteve em Timor como
inspectora judicial, recebeu um e-mail de um dos intervenientes no processo.
Rui Pena, amigo da magistrada, narrava-lhe um complô judicial, que a fez
denunciar o esquema ao Conselho Superior de Magistratura. Nesse e-mail, Penha
revelava que o juiz José Goia (que seria inicialmente a favor da arguida)
decidira indeferir o habeas corpus “sob ameaça de não ver o seu contrato
renovado”. Além disso, relatava que ele próprio redigira a decisão do habeas
corpus e que Goia a assumiu como sua. E a outra juíza do colectivo, Natércia
Pereira Gusmão, “acabou por integrar o colectivo por influência de Cid Geraldo
e José Góia”, para que a decisão não fosse tomada apenas por juízes
internacionais.
Por detrás da
alegada congeminação haveria a intenção de afastar o presidente do Tribunal de
Recurso. O autor do e-mail - que apesar de este ter sido enviado do seu
computador negou que tenha sido por si redigido - dirá mesmo que “foi uma
novela com final feliz” e que “foi pena que o Dr. Cláudio (Ximenes) esteja cada
vez mais isolado dos juízes nacionais”. “Mas eu e o Cid estamos mais
credibilizados sendo esta a parte boa da situação” acrescentou.
Foi após a leitura
da missiva e, depois do balanço entre a ética e a amizade que unia Margarida
Veloso a Rui Penha, que a magistrada terá decidido escrever a carta aos
conselhos das magistraturas dos dois países, denunciando que no processo de
Lúcia Lobato foram cometidos “erros técnicos graves”, em que a “independência
dos tribunais é posta em causa”. Margarida Veloso relatou então o que qualifica
como “um comportamento inadmissível” por parte dos juízes Cid Geraldo e Rui
Penha. Tudo “decisões ao revés da independência e livre arbítrio dos
julgadores” e que “comprometem de forma irremediável o sistema judicial no seu
todo, sobretudo num país em que o sistema judicial está numa fase embrionária”.
A denúncia de
Margarida Veloso acabou também por chegar às mãos da defesa de Lúcia Lobato -
que, desde Julho, a tem aproveitado para fazer sucessivos pedidos de revisão da
sentença, invocando a falta de independência dos magistrados. Todos os
incidentes de suspeição que suscitou contra os juízes em causa têm sido
indeferidos pelo Tribunal de Recurso - mas pelos mesmos magistrados visados
pela suspeição e que já antes se tinham pronunciado no processo.
Factos
'fantasiosos'
Nos acórdãos, estes
consideram os argumentos de Lúcia Lobato “considerações fantasiosas”, “sem
consistência” e sem provas. Mas estas decisões mereceram também o voto de
vencido do presidente do Tribunal de Recurso, Cláudio Ximenes, que, em vão,
lembrou aos seus colegas que estão impedidos de decidirem um incidente de
suspeição em que são visados, além de terem “violado os deveres deontológicos”
e “praticado crimes de coação sobre magistrado e denegação de justiça”.
Cláudio Ximenes
foi, por seu turno, também alvo de um incidente de suspeição por parte do
Ministério Público, tendo sido proibido de apreciar mais alguma questão que
surja no processo de Lúcia Lobato, devido a declarações públicas que fez - o
que foi decidido pelos juízes denunciados por Margarida Veloso.
O inquérito do CSM
português, que já nomeou um inspector, está a avaliar a conduta de todos os
juízes portugueses envolvidos nestes acontecimentos: “Essa exposição foi
objecto de apreciação no plenário de 7 de Maio de 2013 e foi deliberado
proceder a inquérito sobre todos os factos relatados”, diz ao SOL fonte oficial
do CSM. O inquérito “ainda se encontra em curso e, até ao momento, o senhor
inspector nomeado não se deslocou a Timor-Leste”. Segundo o SOL apurou, motivos
financeiros estarão a atrasar esta diligência.
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