quarta-feira, 9 de abril de 2014

2012 - POBREZA EM PORTUGAL: NADA DE NOVO MAS TUDO PIOROU



Maria João Behran* - Revista Rubra

Os recentes números sobre a pobreza em Portugal não trouxeram nada de novo do ponto de vista qualitativo: o estado da pobreza em Portugal já era escandaloso antes destes números. Um estudo liderado por Bruto da Costa[1] que abarcou 6 anos (1995 a 2000) mostrou que este retrato instantâneo da pobreza, que já nessa altura se situava nos actuais 18%, encobre o facto de quase metade (46%) dos portugueses ter passado pela pobreza pelo menos num dos 6 anos em análise e 6,5% ter sido pobre todo o período.

Em primeiro lugar, assinale-se o atraso com que estes dados chegam ao conhecimento público: o resultado de inquérito feito em 2013 sobre as condições de vida em 2012, é publicado no fim de Março de 2014. Acaba por distrair no relacionar desta informação com as medidas políticas que se vão tomando.

Depois, continuam os eufemismos no tratamento oficial desta questão: dizer “em risco de pobreza” em vez de pobre, quando nos referimos a um adulto que vive com menos de 409 euros mensais (para todas as despesas, habitação, alimentação, transportes, saúde, etc.) é ocultar com palavras a realidade[2]. Viver com menos do que essa quantia mensal não é risco de pobreza, é pobreza certa para 18,7% de portugueses, quase 2 milhões.

Para tornar mais fácil a interpretação dos dados, procuramos traduzir as taxas e proporções em números reais. Os cálculos não são difíceis de fazer seguindo as definições que o INE dá, e vale a pena perceber do que estamos a falar.

Os números mostram duas coisas: que o número de pobres aumentou em 2012 (de 18 para 18,7% da população) embora a fasquia para se ser considerado pobre tenha baixado: em 2011 era pobre quem vivesse com menos de 416 € mensais e em 2012 já é preciso viver com menos de 409€. Em resumo, há maior quantidade de pobres e eles são, simultaneamente, mais pobres. O que é confirmado pela taxa de intensidade da pobreza: metade de todos os pobres, quase um milhão de pessoas, viveram com menos de 297 € por mês sendo adultos, 99€ no caso de serem crianças. 

Agrava-se a situação das crianças, na continuação do que já vinha detrás: à excepção de casais com um filho único, as famílias com crianças são mais pobres que as restantes: 22,2% no geral, mas se o adulto estiver sozinho com as crianças a proporção sobe para 33,6% e se as crianças forem 3 ou mais, mesmo à responsabilidade de dois adultos, sobe para 40,4%. (Perante estes números, recorde-se o cinismo com que o governo nomeou há pouco tempo uma comissão multidisciplinar para tratar da questão da baixa fertilidade dos portugueses.)

Os desempregados também estão mais pobres: mais de 40% foi pobre em 2012. Há um ano o valor era de 38%, há dois era 36%. Mas aumentaram também os que estão empregados e se mantêm pobres: 10,5% trabalham e não saem da pobreza.

A evolução desde 2009 é pior do que à primeira vista aparece: se considerarmos a linha de pobreza ancorada a 2009, a proporção de portugueses pobres cresce para 24,7%: um quarto de todos nós. 

Um quarto dos portugueses (mais de 2,5 milhões) sofrem de privação material e para mais de 10% (1,1 milhão) a privação material é severa. Isto quer dizer que não conseguem aceder a 4 ou mais bens essenciais.[3]

Todos estes números são apurados tendo em conta as transferências sociais, pensões, abonos e prestações familiares. Sem estas medidas assistencialistas, quase metade de nós seriam pobres (47%). Há dois anos atrás eram 43%, há um ano eram 45%. A pobreza cresce sustentadamente, as medidas vão desaparecendo. 

Pegue-se na questão por onde se queira, há mais pobres e os pobres estão mais pobres. Mas os ricos estão mais ricos: os dados publicados pelo INE e Eurostat descriminam pouco, apenas nos dizem que os 10% mais ricos vivem com 11 vezes mais dinheiro que os 10% mais pobres. Tratando-se de médias, num e noutro caso, suavizam a verdadeira dimensão da desigualdade que conhecemos por outras fontes: a par do milhão que vive com menos de 409€ mensais existem os salários de topo de vários milhares de euros e remunerações de juros. Sabemos que os três homens mais ricos de Portugal aumentaram as suas fortunas.

Esta é a lógica do funcionamento do modo de produção capitalista. A acumulação de um lado não se faz sem a contrapartida da privação no outro extremo. A pobreza está longe de ser o sintoma da doença do sistema e menos ainda o sinal do falhanço das políticas sociais. Ela é, ao mesmo tempo, consequência e condição necessária do capitalismo: consequência da lei inexorável da acumulação da riqueza e condição para a sua manutenção, porque os pobres não são mais do que o exército de reserva (desempregados ou baixíssimos salários), que mantêm os salários nos níveis desejados, isto é, baixos, o mais baixo possível. 

Por isso, esperar que o governo (este ou qualquer outro dentro do sistema) resolva o problema é como acreditar no pai natal: era tão bom se existisse mesmo! Se olharmos para o mundo ocidental, se olharmos para as economias mais ricas e desenvolvidas, os países da OCDE, a UE, os relatórios e estatísticas mostram o mesmo: a desigualdade (aqui, eufemismo para persistência de pobreza) aumenta desde há 40 anos, ao mesmo tempo que o crescimento económico. Nas economias mais desenvolvidas e equilibradas da Europa (os nórdicos), a pobreza persiste em níveis entre 10 e 12%, [4] demonstrando que boas intenções e relatórios não bastam.

As chamadas políticas sociais têm-se revelado a prazo incapazes de fechar a chaga da pobreza, em Portugal e no mundo. Onde a competição impera não podemos esperar que a solidariedade vingue. Nem diminuição progressiva, erradicação muito menos. Mais do que um subproduto do funcionamento do sistema, os pobres são parte integrante dele e têm a função simbólica de materializar o cenário de caos com que nos acenam todos os dias. Mas se olharmos atentamente para eles e sobretudo se os olharmos como iguais, o que vemos é o caos que este sistema semeia e produz, inevitavelmente.

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* Investigadora, co-autora de A Segurança Social é Sustentável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal (coord. Raquel Varela, Bertrand, 2013) 
[1] Costa, AB (coord) et al. Um olhar sobre a pobreza: vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo. Gradiva Publicações, Lisboa, 2008.
[2] O Eurostat tem alterado, no decurso das últimas duas ou três décadas, tanto os valores de definição da pobreza como a própria designação dessa condição até à substituição da palavra “pobre” pela expressão higienizada e imprecisa “em risco de pobreza”.
[3] Condição do agregado doméstico privado no qual se verifica a carência forçada de pelo menos quatro dos seguintes nove itens, devido a dificuldades económicas: a) capacidade para assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada e próxima do valor mensal da linha de pobreza (sem recorrer a empréstimo); b) capacidade para pagar uma semana de férias, por ano, fora de casa, suportando a despesa de alojamento e viagem para todos os membros do agregado; c) capacidade para pagar atempadamente rendas, prestações de crédito ou despesas correntes da residência principal, ou outras despesas não relacionadas com a residência principal; d) capacidade para ter uma refeição de carne ou de peixe (ou equivalente vegetariano), pelo menos de 2 em 2 dias; e) capacidade para manter a casa adequadamente aquecida; f) capacidade para ter máquina de lavar roupa; g) capacidade para ter televisão a cores; h) capacidade para ter telefone fixo ou telemóvel; i) capacidade para ter automóvel (ligeiro de passageiros ou misto).
[4] Ver o Relatório da Primavera 2013 do Eurostat e Relatório 2008 da OCDE: “Growing unequal?”

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