As eleições
municipais condenaram os dois anos de inexatidão, de cacofonia governamental,
de uma política fiscal que açoitou as classes médias.
Eduardo Febbro –
Carta Maior
Paris - O
socialismo francês sofreu uma derrota histórica. Pau, Reims, Saint-Etienne,
Roubaix, Limoges, Tourcoing, Anglet, Chambéry, Belfort, Toulouse ou Quimper, o
abecedário das cidades em que a direita francesa ganhou no segundo turno das
eleições municipais se estende como numa sinfonia vitoriosa. Junto a esta
orquestra triunfal se elevam também os cantos da extrema direita da Frente
Nacional. As listras “Azul Marinho” da líder do FN, Marine Le Pen, consolidaram
as promessas do primeiro turno e conquistaram ao menos 10 cidades – entre elas,
Béziers, Fréjus, Havange, Beaucaire, Villers-Cotterêts, Le Luc y Cogolin, às
quais se soma Hénin-Baumont, em que venceu no primeiro turno.
As abstenções do primeiro turno não pouparam o Partido Socialista da tunda
eleitoral: com uma abstenção recorde de mais de 38%, a mais alta da história da
Quinta República para este tipo de eleição, o PS no poder há dois anos não
conseguiu mobilizar os eleitores que poderiam salvá-lo da derrocada. Cidades
como Limoges, administradas há um século pelos socialistas, passaram para o
controle da direita. Nem sequer uma cidade como Quimper se salvou do abismo. O
prefeito, Bernard Poignant, é amigo e conselheiro do presidente socialista
François Hollande. Pagou nas urnas a impopularidade do mandatário francês e o
desapego das classes populares. O PS conseguiu salvar Paris, onde a candidata
Anne Hidalgo venceu a rival conservadora, Nathalie Kosciusko-Morizet, mas
perdeu Toulouse, a chamada “cidade rosa”.
A história se escreveu em vários cadernos nesta consulta local, que adquiriu
uma dimensão nacional, dada a amplitude da punição oficial. O ecologista Eric
Piolle ganhou do PS a prefeitura de Grenoble. Ele se converteu no primeiro
ecologista a dirigir uma cidade de mais de 160 mil habitantes. A França passou
da onda Rosa à onda Azul. A única pérola que os socialistas tiraram da direita
foi Avignon, a cidade sede do festival internacional de teatro e onde, no
primeiro turno, o candidato da extrema direita tinha chegado à frente.
A consequência previsível dessa derrota política, segundo adiantou o Ministro
delegado para a Economia Solidária, Benoît Hamon, neste 31 de março será
anunciada a reforma do governo, o que implica o quase certo alijamento do atual
chefe do executivo, Jean-Marc Ayrault. Dois nomes circulam há dias para
substituí-lo: o do atual Ministro do Interior, Manuel Valls e o de Relações
Exteriores, Laurent Fabius. Um intelectual brilhante e criativo – Fabius – que
conta com o respaldo da esquerda do PS e dos ecologistas, e um representante da
direita socialista – Valls -, detestado pela mesma ala esquerda e pelos verdes.
Ambos são os ministros mais populares do governo. A mudança urge. As eleições
municipais condenaram os dois anos de inexatidão, de cacofonia governamental,
de uma política fiscal que açoitou as classes médias, de uma transformação
brutal da mensagem e da orientação da política presidencial com relação à campanha
eleitoral de 2012, dois anos de renúncias ou maquiagens de promessas que foram,
em seu momento, o pilar do retorno ao poder do socialismo após três derrotas
consecutivas nas presidenciais; dois anos também em que a política social
passou a ser um títere que se exibia nos discursos.
O que as eleições municipais mostram é um espelho implacável do corte entre o
PS e as classes populares, que amiúde votaram pela extrema direita. “Somos o
primeiro partido da França”, proclamou Jean-François Copé, o atual dirigente da
conservadora sigla UMP. A frase remete à façanha socialista, de ter chegado à
condição de partido sem prestígio, manchado pela corrupção e pelas
irregularidades em seus próprios processos internos, dinamitado pela herança
nefasta que a direita – Nicolas Sarkozy – lhe deixou, converteu-se no partido
emblema do país.
Os dados até agora disponíveis indicam que a UMP totaliza 49% dos votos nos
municípios de mais de 3500 habitantes, contra 42% do PS e 9% da ultradireita.
Os percentuais vitoriosos ou negativos não são suficientes para ocultar um fato
significativo: os dois principais movimentos políticos do país, UMP e PS, são
partidos feridos, quase espelhos de si mesmos, ou das ideias que, em seu tempo,
puderam encarnar. Entre ambos, o empreendimento de normalização de Marine Le
Pen trouxe às urnas da extrema direita o voto popular e um recorde
absoluto de prefeituras ganhas e de vereadores eleitos (80 em 2008 e mais de
1000 em 2014).
Algum correspondente disparatado da imprensa internacional ousou dizer que
Marine Le Pen pretendia ser um tipo de “Eva Perón”. Numa entrevista publicada
no Le Monde, com Marine Le Pen, o diário assegura que a dirigente francesa não
recusa o termo “peronismo à francesa” para qualificar a sua conquista popular e
o seu projeto de formar um movimento “patriota, nem de esquerda, nem de
direita”.
Os europeus, que sempre veem o populismo como um mal que gangrena os sistemas
políticos dos países do sul, lambem os beiços com essas definições. Com isso
confundem o popular com o populismo e, de passagem, esquecem os seus próprios
populistas com gravatas de seda, óculos Rayban, relógios de ouro e falsos
discursos humanistas.
O Primeiro Ministro Francês, Jean-Marc Ayrault, assumiu o custo da derrota: “a
responsabilidade pelo fracasso é coletiva, e eu assumo a parte que me cabe”,
disse Ayrault. O chefe do governo admitiu que as eleições municipais foram
“marcadas pelo desapego daqueles e daquelas que deram sua confiança à esquerda
em maio e junho de 2012”. François Hollande quis fazer da França um dos
melhores alunos da Europa liberal. Pagou caro por isso e fez a sociedade também
pagar muito. A ala progressista do PS, agrupada na corrente “A Esquerda agora”,
recordou, com um chamado público que circulou assim que os resultados se tornaram
conhecidos: “há que mudar de rumo”, disse o texto, que também ressalta que “o
problema central (...) é o rechaço da austeridade”. Não há melhor balanço dessa
pseudo esquerda no poder que uma frase do mesmo texto: “os atos desmentiram as
palavras”. Há um grande passo entre a poesia política que se emprega para
ganhar eleições e os cortes massivos pelos quais se decidiu, na hora de
governar.
O líder da Frente de Esquerda, Jean-Luc Mélenchon, responsabilizou o chefe de
Estado por esta derrota: “a política de Hollande, seu giro à direita, sua
aliança com o patronato e sua submissão às políticas de austeridade europeias
desembocaram num desastre”. O socialismo francês é, de fato, um partido de
pequenos burgueses urbanos, totalmente divorciado da histórica base popular
construída ao largo dos anos no país profundo. As pesquisas eleitorais
mostravam como o PS tinha perdido apoio, inclusive o voto dos franceses ditos
imigrados. A socialista Anne Hidalgo, nascida na cidade espanhola de Cádiz,
descendente de exilados republicanos que vieram para a França durante a Guerra
Civil, converteu-se na primeira mulher que dirige os destinos da capital
francesa.
O socialismo conserva as rédeas da Cidade Luz, ontem bastião da direita, mas
pede ao mesmo tempo um século de história em Limoges. Esta cidade dirigida pelo
PS desde 1912, tem um movimento operário denso e estruturado, uma história
exemplar de movimentos operários em fins do século XIX e princípios do XX, e
que tem dois apelidos que dizem tudo: “A Cidade Vermelha” e a “Roma do
Socialismo”. Um membro da Câmara de Vereadores de Limoges costumava dizer:
“aqui, a gente nasce com um cromossomo de esquerda”. O austericídio da
socialdemocracia no poder mudou o cromossoma da agora ex-fortaleza do
socialismo francês.
Tradução: Louise Antônia León
Créditos da foto:
Arquivo
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