terça-feira, 1 de abril de 2014

SOCIALISTAS FRANCESES SOFREM DERROTA HISTÓRICA




As eleições municipais condenaram os dois anos de inexatidão, de cacofonia governamental, de uma política fiscal que açoitou as classes médias.

Eduardo Febbro – Carta Maior

Paris - O socialismo francês sofreu uma derrota histórica. Pau, Reims, Saint-Etienne, Roubaix, Limoges, Tourcoing, Anglet, Chambéry, Belfort, Toulouse ou Quimper, o abecedário das cidades em que a direita francesa ganhou no segundo turno das eleições municipais se estende como numa sinfonia vitoriosa. Junto a esta orquestra triunfal se elevam também os cantos da extrema direita da Frente Nacional. As listras “Azul Marinho” da líder do FN, Marine Le Pen, consolidaram as promessas do primeiro turno e conquistaram ao menos 10 cidades – entre elas, Béziers, Fréjus, Havange, Beaucaire, Villers-Cotterêts, Le Luc y Cogolin, às quais se soma  Hénin-Baumont, em que venceu no primeiro turno.
 
As abstenções do primeiro turno não pouparam o Partido Socialista da tunda eleitoral: com uma abstenção recorde de mais de 38%, a mais alta da história da Quinta República para este tipo de eleição, o PS no poder há dois anos não conseguiu mobilizar os eleitores que poderiam salvá-lo da derrocada. Cidades como Limoges, administradas há um século pelos socialistas, passaram para o controle da direita. Nem sequer uma cidade como Quimper se salvou do abismo. O prefeito, Bernard Poignant, é amigo e conselheiro do presidente socialista François Hollande. Pagou nas urnas a impopularidade do mandatário francês e o desapego das classes populares. O PS conseguiu salvar Paris, onde a candidata Anne Hidalgo venceu a rival conservadora, Nathalie Kosciusko-Morizet, mas perdeu Toulouse, a chamada “cidade rosa”.

A história se escreveu em vários cadernos nesta consulta local, que adquiriu uma dimensão nacional, dada a amplitude da punição oficial. O ecologista Eric Piolle ganhou do PS a prefeitura de Grenoble. Ele se converteu no primeiro ecologista a dirigir uma cidade de mais de 160 mil habitantes. A França passou da onda Rosa à onda Azul. A única pérola que os socialistas tiraram da direita foi Avignon, a cidade sede do festival internacional de teatro e onde, no primeiro turno, o candidato da extrema direita tinha chegado à frente.
 
A consequência previsível dessa derrota política, segundo adiantou o Ministro delegado para a Economia Solidária, Benoît Hamon, neste 31 de março será anunciada a reforma do governo, o que implica o quase certo alijamento do atual chefe do executivo, Jean-Marc Ayrault. Dois nomes circulam há dias para substituí-lo: o do atual Ministro do Interior, Manuel Valls e o de Relações Exteriores, Laurent Fabius. Um intelectual brilhante e criativo – Fabius – que conta com o respaldo da esquerda do PS e dos ecologistas, e um representante da direita socialista – Valls -, detestado pela mesma ala esquerda e pelos verdes.
 
Ambos são os ministros mais populares do governo. A mudança urge. As eleições municipais condenaram os dois anos de inexatidão, de cacofonia governamental, de uma política fiscal que açoitou as classes médias, de uma transformação brutal da mensagem e da orientação da política presidencial com relação à campanha eleitoral de 2012, dois anos de renúncias ou maquiagens de promessas que foram, em seu momento, o pilar do retorno ao poder do socialismo após três derrotas consecutivas nas presidenciais; dois anos também em que a política social passou a ser um títere que se exibia nos discursos.
 
O que as eleições municipais mostram é um espelho implacável do corte entre o PS e as classes populares, que amiúde votaram pela extrema direita. “Somos o primeiro partido da França”, proclamou Jean-François Copé, o atual dirigente da conservadora sigla UMP. A frase remete à façanha socialista, de ter chegado à condição de partido sem prestígio, manchado pela corrupção e pelas irregularidades em seus próprios processos internos, dinamitado pela herança nefasta que a direita – Nicolas Sarkozy – lhe deixou, converteu-se no partido emblema do país.

Os dados até agora disponíveis indicam que a UMP totaliza 49% dos votos nos municípios de mais de 3500 habitantes, contra 42% do PS e 9% da ultradireita. Os percentuais vitoriosos ou negativos não são suficientes para ocultar um fato significativo: os dois principais movimentos políticos do país, UMP e PS, são partidos feridos, quase espelhos de si mesmos, ou das ideias que, em seu tempo, puderam encarnar. Entre ambos, o empreendimento de normalização de Marine Le Pen trouxe às urnas  da extrema direita o voto popular e um recorde absoluto de prefeituras ganhas e de vereadores eleitos (80 em 2008 e mais de 1000 em 2014).
 
Algum correspondente disparatado da imprensa internacional ousou dizer que Marine Le Pen pretendia ser um tipo de “Eva Perón”. Numa entrevista publicada no Le Monde, com Marine Le Pen, o diário assegura que a dirigente francesa não recusa o termo “peronismo à francesa” para qualificar a sua conquista popular e o seu projeto de formar um movimento “patriota, nem de esquerda, nem de direita”.
 
Os europeus, que sempre veem o populismo como um mal que gangrena os sistemas políticos dos países do sul, lambem os beiços com essas definições. Com isso confundem o popular com o populismo e, de passagem, esquecem os seus próprios populistas com gravatas de seda, óculos Rayban, relógios de ouro e falsos discursos humanistas.

O Primeiro Ministro Francês, Jean-Marc Ayrault, assumiu o custo da derrota: “a responsabilidade pelo fracasso é coletiva, e eu assumo a parte que me cabe”, disse Ayrault. O chefe do governo admitiu que as eleições municipais foram “marcadas pelo desapego daqueles e daquelas que deram sua confiança à esquerda em maio e junho de 2012”. François Hollande quis fazer da França um dos melhores alunos da Europa liberal. Pagou caro por isso e fez a sociedade também pagar muito. A ala progressista do PS, agrupada na corrente “A Esquerda agora”, recordou, com um chamado público que circulou assim que os resultados se tornaram conhecidos: “há que mudar de rumo”, disse o texto, que também ressalta que “o problema central (...) é o rechaço da austeridade”. Não há melhor balanço dessa pseudo esquerda no poder que uma frase do mesmo texto: “os atos desmentiram as palavras”. Há um grande passo entre a poesia política que se emprega para ganhar eleições e os cortes massivos pelos quais se decidiu, na hora de governar.
 
O líder da Frente de Esquerda, Jean-Luc Mélenchon, responsabilizou o chefe de Estado por esta derrota: “a política de Hollande, seu giro à direita, sua aliança com o patronato e sua submissão às políticas de austeridade europeias desembocaram num desastre”. O socialismo francês é, de fato, um partido de pequenos burgueses urbanos, totalmente divorciado da histórica base popular construída ao largo dos anos no país profundo. As pesquisas eleitorais mostravam como o PS tinha perdido apoio, inclusive o voto dos franceses ditos imigrados. A socialista Anne Hidalgo, nascida na cidade espanhola de Cádiz, descendente de exilados republicanos que vieram para a França durante a Guerra Civil, converteu-se na primeira mulher que dirige os destinos da capital francesa.

O socialismo conserva as rédeas da Cidade Luz, ontem bastião da direita, mas pede ao mesmo tempo um século de história em Limoges. Esta cidade dirigida pelo PS desde 1912, tem um movimento operário denso e estruturado, uma história exemplar de movimentos operários em fins do século XIX e princípios do XX, e que tem dois apelidos que dizem tudo: “A Cidade Vermelha” e a “Roma do Socialismo”. Um membro da Câmara de Vereadores de Limoges costumava dizer: “aqui, a gente nasce com um cromossomo de esquerda”. O austericídio da socialdemocracia no poder mudou o cromossoma da agora ex-fortaleza do socialismo francês.

Tradução: Louise Antônia León

Créditos da foto: Arquivo

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